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    Gianluigi Buffon: o Gigi Superman

    Texto por Ricardo Miguel Gonçalves
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    Podia ser caracterizado pela longevidade, numa carreira profissional constituída por mais de 1100 jogos e quase três décadas como profissional, entre os 17 e os 45 anos de idade.

    Podíamos escolher a personalidade para destacar, uma vez que foi uma das figuras incontornáveisdo futebol italiano e mundial ao longo desse período, sempre comunicativo para o exterior e salientado como um farol de liderança para todos os que com ele jogaram.

    Ainda assim, esses são dois dados que estão inerentemente ligado à qualidade a que Gianluigi Buffon nos habituou. Um guarda-redes que rivalizou com avançados para as grandes distinções individuais, pois todos os que gostam de futebol sabiam estar perante um dos melhores de sempre nessa tão específica posição. Esta é a história...

    Um super-herói numa família de atletas

    Foi a janeiro de 1978 que nasceu. Em Carrara, pequena e pitoresca cidade aninhada entre as colinas da Toscânia, Maria Stella, três vezes campeã italiana de lançamento do disco, e Adriano Buffon, halterofilista, tiveram o seu último filho.

    @Getty / Alex Livesey
    Mais um ramo numa árvore genealógica rica em capacidade atlética, o pequeno Gigi cresceu rodeado de desporto. Para além dos pais, o tio Dante Masocco jogava o primeiro escalão italiano de basquetebol e as irmãs, Guendalina e Veronica, chegaram a profissionais de voleibol. No futebol havia apenas o distante tio-avô, Lorenzo Buffon, antigo guarda-redes internacional por Itália. Foram essas as pegadas que seguiu. 

    Desde muito jovem brilhou, mesmo que não necessariamente nessa posição, e aos 13 anos chegou a altura de dar o salto para uma das melhores academias do país. Por ele chamava Milão, capital do futebol, e também a inerentemente pedagógica cidade de Bolonha, mas a escolha provou-se fácil: Parma.

    Foi Thomas N´Kono, guarda-redes dos Camarões no Mundial disputado em solo italiano, que impressionou Gigi ao ponto deste optar permanentemente pela defesa das redes, já na base do Parma. Não muito depois, em 1994, foi chamado a treinar com a equipa principal, tal era a qualidade e promessa que apresentava.

    Pouco depois foi promovido em definitivo e estreou-se na Serie A, mantendo a folha limpa num empate sem golos com o eventual campeão, Milan, e destacando-se com defesas aos remates de Baggio e Weah. Nada de especial, apenas um miúdo de 17 anos a agarrar, com confiança, os pontapés de dois vencedores da Bola de Ouro.

    Fez mais oito jogos nessa temporada, ganhou o Euro sub-21 no verão, e na temporada seguinte, 1996/97, assumiu a titularidade com a maioridade acabada de atingir, o que para um guarda-redes é, no mínimo, raro. Estreou-se a nível europeu com uma derrota frente ao Vitória SC, em Guimarães, mas foi exemplar no resto da temporada e uma das figuras de uma campanha que viu o Parma terminar em segundo lugar na Serie A, qualificando-se para a Liga dos Campeões.

    qOs adeptos deram-me a t-shirt do herói das bandas desenhadas alguns dias antes do jogo. Estava com ela por baixo e, na alegria, tirei a minha camisola
    A campanha dos gialloblu na maior prova de clubes não foi brilhante, mas a equipa manteve-se forte a nível interno com um quinto lugar e meias-finais da Taça. Pelo meio Buffon, cada vez menos promessa e mais certeza entre os melhores guarda-redes do mundo, ganhou a alcunha de «Superman» quando defendeu a grande penalidade do Fenómeno Ronaldo, então o melhor jogador do Mundo, e celebrou ao levantar a camisola para revelar uma t-shirt do célebre super-herói. 

    O Parma europeu e o guardião mais caro da história

    Tinha apenas 21 anos quando, na sua quarta temporada como profissional, levantou os seus primeiros troféus como sénior. Em Itália ganhou a Taça, mas o que fica na memória é o 3-0 sobre o Marseille na final da Taça UEFA de 1999. Mítica equipa, com Cannavaro, Thuram, Verón, Asprilla, Chiesa e Crespo, mas a memória coletiva do futebol aponta Buffon como o grande nome, ainda assim.

    Melhor guarda-redes da Liga em anos consecutivos, novas qualificações para a Liga dos Campeões, e o número de internacionalizações já ia em duas dezenas quando a Juventus bateu à porta.

    Buffon tinha contrato e o Parma estava bem ciente do seu valor, pelo que pediu um valor impensável para o ano de 2001. Ora, o recorde para um guarda-redes tinha sido estabelecido dois anos antes, quando Peruzzi rumou ao Inter por 19 milhões de euros, por isso ninguém em Itália imaginava que a vecchia signora atingisse os 52 milhões que o Parma exigiu pelo seu super-homem.

    Atingiu, é claro, e o recorde durou nada menos do que... 17 anos, até Alisson trocar Roma por Liverpool por 62 milhões, no verão de 2018. Nesse mesmo período, o recorde geral (todas as posições) foi batido cinco vezes. Foi também o jogador mais caro da Juventus durante 15 anos, até à chegada de Higuaín em 2016.

    @Getty / Paul Gilham
    E porquê Turim? Ora, porque nenhuma equipa o aproximava mais rapidamente do tão ambicionado scudetto. Esse objetivo foi finalmente alcançado em 2003, no mesmo ano em que foi eleito melhor guarda-redes da Liga pela quarta vez consecutiva. A nível continental perdeu a Liga dos Campeões na final frente ao Milan, mas mesmo assim foi colocado na Equipa do Ano da UEFA, e tornou-se, até, no primeiro (e último) guardião a ser considerado Jogador do Ano para a UEFA, terminando em nono lugar da batalha pela Bola de Ouro.

    Já era uma lenda e continuou a trilhar caminho semelhante numa carreira que duraria mais 20 anos. Abriu 2003/04 com a vitória na Supercoppa, vingança sobre o Milan, defendendo penáltis no processo. Novamente entre os melhores do Mundo e também novamente batido pelo Milan na Liga dos Campeões e na Serie A.

    A glória do scudetto só chegaria novamente em 2005 e 2006, mas tão assombrada pelas trevas do futebol que acabou por ser mesmo apagada da história...

    O melhor guarda-redes do Mundo joga na Serie B

    Como em todas as boas histórias, o nosso herói cruza-se com tempestades no seu caminho. Ainda assim, no caso de Buffon, houve um elemento verdadeiramente perturbador.

    Quando a vida em Turim parecia brilhante, eis que os dias negros do Calciopoli fizeram a sombra sobre a Juventus e o seu reino. Em 2014/15, já com Capello ao leme, Buffon continuou a brilhar nos maiores palcos e a Juventus, embora não conseguisse a tão procurada glória europeia, voltava a sagrar-se campeã nacional em Itália.

    Na época seguinte Buffon sofreu com duas lesões distintas, mas regressou a tempo de ajudar a equipa a alcançar o scudetto novamente, o seu quarto em cinco anos, mas foi pouco depois que a bolha rebentou num dos maiores escândalos de que há memória no futebol. Para além das alegações de corrupção em torno do clube, Gigi esteve na lista de jogadores acusados de apostar em jogos. O guarda-redes cooperou com a investigação e admitiu ter apostado, mesmo sabendo que era proibido desde o ano anterior, mas negou apostas em jogos italianos e acabou por ser ilibado de maiores responsabilidades.

    @Getty / Alex Livesey
    Ainda assim, o calciocaos reinava em Itália e a vecchia signora, principal responsável pela desvirtuação da verdade competitiva no país, acabou severamente castigada. Os dois títulos mais recentes foram retirados pela federação e a Juventus foi despromovida à Serie B.

    Se Buffon já era dos elementos mais populares do plantel, então a decisão de ficar no clube e jogar o segundo escalão, numa altura em que já era considerado o melhor guarda-redes do Mundo, tornou-o numa verdadeira lenda. Outros, como o capitão Del Piero, Nedved ou Trezeguet, optaram por fazer exatamente o mesmo.

    Em 2006/07, a Serie B foi tomada por assalto pelas forças bianconeras. Nem os nove pontos deduzidos fizeram qualquer mossa no gigante italiano que garantiu matematicamente a promoção de volta ao principal escalão e, uma semana depois, o título de campeão.

    De volta à elite, a Juventus voltou a juntar-se à luta pelos principais troféus do país e da Europa, com Buffon a manter-se como um nome frequente nas conversas de melhor guarda-redes do Mundo, quiçá da história, e nas nomeações para a bola de Ouro. Ainda assim, a luta não era suficiente para a conquista dos títulos, que caíam quase sempre para os lados de Milão, e Gigi começou a sofrer com algumas lesões.

    176 jogos e, pelo meio, glória azzurra

    squadra azzurra, como tantas vezes é apelidada a seleção italiana, foi uma constante na vida de Gianluigi Buffon. Representou-a desde os sub-16 até à AA, passando por todos os escalões e conquistando o maior de todos os troféus que o futebol guarda: o Campeonato do Mundo.

    Tinha 19 anos quando se estreou pela seleção principal. Era jovem e ainda jogava no Parma, mas já tinha algum estatuto no país, até pela conquista do Euro de sub-21 no ano anterior, por isso poucos ficaram surpreendidos quando a sua convocatória se tornou algo frequente.

    Reforma-se como o maior internacional na história italiana
    Esteve no Mundial de 1998 como suplente de Pagliuca e, como tal, não se chegou a estrear nas grandes competições. Foi apenas quatro anos depois, no Coreia/Japão, que já atuou como titularíssimo, jogando todos os minutos de uma campanha que terminou, apesar de um penálti defendido, nos oitavos de final. No Euro 2004 a Itália voltou a desapontar, caindo na fase de grupos pela regra do confronto direto, e foi preciso esperar dois anos pela página mais brilhante da história internacional de Buffon.

    Foi com o misto de emoções de alguém que tinha sido campeão italiano e simultaneamente despromovido ao segundo escalão que Buffon, assim como outros membros bianconeros da seleção italiana, chegaram à Alemanha para disputar o Mundial de 2006. O guarda-redes tinha 28 anos e ia para o seu terceiro Mundial, depois de ilibado do escândalo de apostas em que esteve envolvido, e Marcello Lippi deu-lhe a titularidade.

    Foram apenas dois golos sofridos nas sete partidas que a Itália disputou até à conquista do troféu. Buffon estava em forma e o Mundo inteiro sabia disso, pelo volume e frequência das impressionantes defesas que apresentou nos relvados germânicos, incluindo uma defesa ao remate do alemão Poloski, nas meias-finais, que ficou recordada como uma das melhores de sempre.

    Por fim, no dia 9 de julho, final frente à França, foi a Itália que sorriu.

    O jogo, esse mítico Itália x França, ficará eternamente marcado por Zidane, que se despediu dos relvados com uma panenka perfeita e uma das mais memoráveis (e lamentáveis) agressões da história do desporto, mas para os italianos tudo isso foi secundário, já que foi um dia de festa inesquecível. Buffon, melhor guardião do planeta, esteve no centro da ação.

    O onze da final de 2006, em Berlim @Getty / picture alliance

    Nos jogos que seguiram essa sua maior conquista coletiva, Buffon assumiu a braçadeira de capitão da seleção. Integrou o melhor 11 do Euro 2008 para a UEFA, apesar da queda nas meias-finais, e quatro anos depois, já além de um problema ciático que lhe fez somar poucos minutos no Mundial de 2010, assim como a sua 100ª internacionalização, o guarda-redes levou a Itália até à final do Euro, mas foi a Espanha do tiki-taka que voltou a sagrar-se campeã.

    Foi ao Mundial pela quinta vez em 2014, já com o estatuto de jogador com mais internacionalizações em toda a história da seleção italiana. Em dois jogos disputados, Buffon apresentou-se a um bom nível e foi eleito homem do jogo, mas não conseguiu evitar a eliminação na fase de grupos. Em 2016, no Euro conquistado por Portugal, Buffon vingou-se dos espanhós nos oitavos de final, mas na ronda seguinte voltou a cair perante o campeão mundial em título, Alemanha, apesar de ter brilhado no desempate por grandes penalidades.

    Buffon já tinha anunciado que esse seria o seu último Europeu, pelo que o Mundial de 2018 seria o seu último torneio. Esse foi um plano que caiu por terra quando a seleção italiana falhou o apuramento para essa competição. Entre lágrimas, Buffon despediu-se dos adeptos, confirmando a sua reforma do futebol de seleções.

    Mas o espírito competitivo é mais forte que a promessa de despedida, por isso em março de 2018, convidado por Luigi Di Biagio, Buffon aceitou a convocatória para uma última dança, frente à Argentina. Foi a 176ª e última internacionalização, que deixou Gigi confortavelmente entre os jogadores com mais jogos internacionais na história do futebol.

    O renascer da Juve e a criptonite de Buffon

    Se Gianluigi Buffon era o Superman, então só uma coisa pode ser vista como a sua criptonite pessoal: o troféu da Liga dos Campeões.

    Esse ficou por vencer, apesar de inúmeras tentativas e algumas ocasiões em que ficou tão próximo. Foram, afinal, 17 participações na competição, com inúmeras quedas nos quartos de final, meias-finais e, as que mais doeram, três finais perdidas.

    A primeira já foi referida, em 2003, frente ao Milan, mas as outras duas chegaram bem mais tarde na carreira, já para lá do renascimento da Juventus como potencia no futebol italiano e europeu. Caiu na final de 2015, frente ao Barcelona, e dois anos depois, em 2017, foi o Real Madrid que se sagrou campeão, com Cristiano Ronaldo a bisar antes de se transferir para Turim.

    Saiu do futebol sem nunca levantar a olheruda, mas o coração fica bem remendado com a extensa lista de troféus que Buffon ostenta no palmarés. A partir de 2012, quando a vecchia signora  voltou às conquistas, foram oito títulos de campeão em Itália, cinco Taças, quatro Supertaças e, pelo meio uma Ligue 1 e uma Supertaça no ano singular que Buffon passou em Paris, interrompendo as 19 temporadas em Turim (17 antes e duas depois).

    No regresso a Turim, rejeitou a camisola 1 de Szczesny e a braçadeira de capitão de Chiellini. «Não voltei para recuperar nada nem tirar nada a ninguém», disse, quando chegou, «só quero fazer a minha parte pela equipa».

    @Getty / NurPhoto
    Assim o fez durante mais dois anos de conquistas, até que em maio de 2021, na sua 685ª partida pelo clube, levantou a Coppa Italia em jeito de despedida. O destino? Só o mais romântico possível...

    Regressou a casa, onde tudo começou, para voltar a defender a baliza do Parma. Equipa acabada de desperomover ao segundo escalão, o que significou, também, um regresso à Serie B. Não conseguiu a subida em 2022, nem em 2023, e foi nesse ano, no qual se tornou o primeiro guarda-redes na história do futebol a registar 500 clean sheets, que anunciou o fim da sua carreira de futebolista.

    Foram quase três décadas de bola, para o lendário guardião que se despediu aos 45 anos de idade. Algo como 1175 jogos, entre a seleção e os três clubes, o que o deixou, também, entre os 10 que mais vezes jogaram na história da modalidade. É sobre-humano, realmente.

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    motivo:
    NM
    Um senhor do futebol
    2023-08-02 16h42m por nmprongs
    Com algumas falhas como profissional e pessoa, mas ninguém é perfeito, contudo, alguém que fica para a história do futebol, como dos últimos grandes nomes do futebol
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