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    Gianluca Vialli: o burguês goleador

    Texto por Pedro Jorge da Cunha
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    Imaginemos o avançado perfeito. Elegante e mortífero, cavalheiro e besta, técnico e físico. Imaginemos o futebol de Gianluca Vialli, o cabelo cuidadosamente encaracolado, o olhar de um azul hipnótico e perturbador.

    Imaginemos o camarada de balneário ideal. Brincalhão e profissional, caloroso e exigente. Imaginemos o que foi Gianluca Vialli no calcio, na squadra azzurra, do pequeno Pizzighettone  ao afamado Chelsea

    Vialli morreu, demasiado jovem e demasiado vivo. 58 anos apenas, e uma marca fortíssima naquilo que é a história do futebol italiano nos últimos 40 anos.

    @Getty /
    Melhor marcador do Europeu de sub21 em 1986, maior goleador da Serie A em 1990/91, integrante da equipa-ideal do Euro88 e futebolista do ano de 1995 para a World Soccer; duas vezes campeão italiano, vencedor de quatro taças de Itália e de uma FA Cup, mais uma Liga dos Campeões, duas Taças das Taças, uma Taça UEFA e uma Supertaça Europeia. 

    59 vezes internacional por Itália, 16 golos, nove jogos nos Mundiais de 1986 e 1990, mais quatro no Europeu de 88, um percurso entre 1980 e 1999. 

    Paulo Sousa é o único colega de equipa português. Partilham 66 jogos oficiais na Juventus, de 1994 a 1996. O registo de títulos é notável: uma Liga dos Campeões, uma Serie A, uma Taça de Itália e uma supertaça. Através do zerozero, o antigo médio e atual treinador deixa uma primeira mensagem. 

    «Gianluca: o teu sorriso, as tuas piadas, as nossas conversas, a tua liderança... a nostalgia torna eterna a tua presença. O tempo vai aumentar o vazio que deixas, vai tornar-se o silêncio que espera pelos braços da vida e reunir-nos novamente um dia. Descansa em paz, meu amigo.»

    Morreu um dos melhores de sempre. Ciao, Luca! 

    Villa Affaitati, o campo de todos os golos

    Luca Vialli não tem a infância do futebolista comum. Não joga na rua, não passa por necessidades, não se agarra ao futebol para sobreviver e ajudar a família. 

    Filho de Gianfranco Vialli, empresário nas área do imobiliário e da construção civil, e de Maria Teresa - ambos ainda vivos, com 90 e 87 anos, respetivamente -, Gianluca nasce e cresce num castelo do século XV, a Villa Affaitati, em Cremona, Lombardia. A origem burguesa dos pais afeita-lhe os modos, encena-lhe as palavras, cria-lhe um raro ar de sofisticação no universo do planeta-futebol. 

    Os primeiros golos, os primeiros sonhos com bola, nascem nos relvados cuidadosamente tratados da propriedade da família Vialli, ao lado dos três irmãos. 

    Gianluca Vialli
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    Aos nove anos, o professor Franco Cristiani, mestre do pequeno Luca na escola primária, leva-o para o modesto Pizzighettone, onde é treinador. Vialli apaixona-se perdidamente pelo ecossistema do balneário, pela diversidade de estratos sociais, pela vida que lhe foge dos altos muros onde cresce. Não mais vai parar. 

    Em 1978, com 14 anos, mais um passo importante. A Cremonese ouve falar de um bad boy de boas maneiras no ataque e paga meio milhão de liras [258 euros] para ter Luca Vialli. Acerta em cheio. No campo, o avançado mostra-se agressivo, emocional. lutador. Fora dele, um encanto de rapaz. 

    O treinador Guido Vincenzi estreia-o na equipa profissional, que joga na Serie C, durante a época 80/81, mas é com Emiliano Mondonico que se mostra a toda Itália, de 1982 a 1984. A Cremonese sobe nesse ano à Serie A e Vialli parte para a Sampdoria e para a parceria com Roberto Mancini. São os Gémeos do Golo, almas inseparáveis, ligadas pela telepatia dos sobredotados. 

    O clímax da relação é atingido em 1991. O scudetto segue para o Stadio Luigi Ferraris, em Génova, para a Samp do treinador Vujadin Boskov, para uma equipa inesquecível: Pagliuca na baliza, Mannini, Vierchowod, Lanna e Katanec atrás, Dossena, Pari, Invernizzi e Lombardo, e no ataque os gémeos Mancini e Vialli. 

    Toto Schillaci, a grande frustração de Luca

    Até 1999, Vialli é um dos príncipes do futebol mundial. Boskov, o treinador-modelo do menino de Cremona, coloca-o acima dos melhores. «Se tiver de optar entre o Van Basten e o Vialli, opto sempre pelo Vialli. Ele é uma mistura de pai e amigo, capaz de educar e de abraçar. Fui a casa dele deprimido, muitas vezes, e a mulher fazia-me chá e pastéis. Conversávamos e saía de lá recuperado.» 

    Nem tudo são rosas, porém. Há a célebre final da Liga dos Campeões perdida para o Barcelona no prolongamento e há dois Mundiais amargos. Em 1986, no México, Vialli é apenas uma boa alternativa à dupla Altobelli-Galderisi (quatro presenças a sair do banco de suplentes) e em 1990, no torneio em Itália, perde a titularidade para o imprevisto Toto Schillaci. Conclusão: Vialli passa quatro dos sete jogos da Squadra Azzurra sentado no banco de suplentes. 

    E há 1994, ano da Itália vice-campeã. Vialli vive na Juventus uma era de rivalidade intensa e cruel contra o Parma, equipa treinada anos antes por Arrigo Sacchi. As vitórias caem, quase sempre, para os de Turim e Vialli tem a audácia de provocar Sacchi, já selecionador italiano. Pega numa faca, num queijo parmesão e barra-lhe o... guardanapo. Sacchi não gosta da brincadeira e uma lesão também não ajuda. 

    Vialli recupera a tempo, faz um hat trick à Lazio, mas fica mesmo de fora da prova nos EUA e não volta a vestir a azzurra. A despedida dá-se a 19 de dezembro de 1992, num tristonho 2-1 contra Malta. Para o Mundial dos EUA, Sacchi chama Roberto Baggio, Daniele Massaro, Pierluigi Casiraghi e Giuseppe Signori. 

    «O senhor Sacchi pediu aos meus colegas na seleção para fazerem uma votação. No final saberia se estava autorizado a voltar ou não. Se um grupo é isto, então algo está mal e eu fico contente por estar de fora», diz, anos mais tarde, Gianluca Vialli. 

    Euro2020, o círculo fecha-se

    1997 é um ano marcante. Gianluca conhece a esposa Cathryn, uma modelo sul-africana radicada em Londres, e casa-se. Do matrimónio nascem as filhas Olivia e Sofia, presenças obrigatórias até ao fim da viagem terrena.

    Vialli faz três anos no Chelsea e passa diretamente a treinador-jogador dos blues, com a saída de Ruud Gullit em fevereiro de 1998. Sai em 2001 para o Watford e afasta-se de papéis de relevo em 2002. Comenta na televisão, torna-se golfista de nível profissional, dedica-se à família, mas só até receber a chamada de Roberto Mancini para ser chefe de delegação da seleção de Itália. Os Gémeos do Golo voltam a juntar-se em novembro de 2019. 

    Nessa altura, Vialli já luta há dois anos contra o maldito cancro no pâncreas. Em 2018, abre o coração ao Corriere della Sera e fala do «companheiro de viagem», o maligno tumor. 

    @Getty / CLAUDIO VILLA
    «Espero que minha história possa ajudar outras pessoas a lidar com isto da maneira certa. Queri inspirar pessoas que estão na encruzilhada da vida. Gostaria que alguém olhasse para mim e dissesse assim: 'Também é por sua causa que eu não desisti'.» 

    Oito meses de quimioterapia e seis semanas de radioterapia roubam-lhe 15 quilos, mas não o bom espírito. Os sucessos no futebol ajudam e 2020 é um ano bom. Vialli anuncia-se curado do cancro e torna-se campeão da Europa. Emocionado, recebe o troféu das mãos de Mancini na final. Cenas maravilhosas, pungentes, a fazerem lembrar a Sampdoria de 1991

    As boas notícias acabam aqui. A doença volta a manifestar-se, Vialli anuncia em dezembro de 2022 a necessidade de se afastar do futebol. 

    «Ao final de uma longa e difícil 'negociação' com a minha fantástica equipa de oncologistas, decidi suspender, espero que temporariamente, o meus compromissos profissionais presentes e futuros. O objetivo é usar todas as minhas energias psicofísicas para ajudar o meu corpo a superar esta fase da doença, para poder enfrentar novas aventuras o mais brevemente possível e partilhá-las com todos vós. Um abraço, Gianluca Vialli.»

    Menos de um mês depois, num hospital londrino, o corpo de Gianluca sucumbe. Os muros altos não são os do castelo dos pais, a fortaleza já não o protege. Alessandro Zerbi, médico responsável pela unidade de cirurgia pancreática que opera Vialli na primeira vez, detalha a gravidade da maleita. 

    «O tumor pancreático é biologicamente mais agressivo do que os outros, além disso, a sua localização anatómica profunda no abdómen e o facto de não possuir cápsula fazem com que as células cancerígenas possam espalhar-se precocemente no corpo. A isso soma-se a dificuldade de diagnóstico, que na maioria das vezes é tardia em face da ausência de sintomas precoces. A investigação científica avança para melhorar o prognóstico da doença, nos últimos anos temos registado progressos tangíveis.»

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    Vialli - Juventus

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