No dicionário do futebol, o significado de «oportunismo» é descrito como Pippo Inzaghi. Na lista dos marginais contra as regras do fora-de-jogo, em primeiro lugar aparece o nome de Pippo Inzaghi. Na selva futebolística, a pequena área era o habitat e a baliza a presa favorita de Pippo Inzaghi. Para Mourinho, o AC Milan «até podia jogar com 10 jogadores ofensivos, desde que Pippo Inzaghi não jogasse». E as defesas rezavam aos seres divinos para que tal acontecesse.
Golos seguidos de uma adrenalina incomum. Festejos loucos como se do último balançar das redes se tratasse. A imagem de um autêntico predador durante largos anos.
Natural de San Nicolo, uma vila perto de Piacenza, Pippo nasceu a 9 de agosto de 1973 no seio de um família humilde governada por Marina e Giancarlo Inzaghi, trabalhador na indústria têxtil. Três anos mais tarde, Marina deu à luz outro menino de seu nome Simone.
Pippo e Simone sempre foram meninos da mamã. Fosse «tortellini ou canelloni», a comida caseira era sempre bem-vinda, tal como uma clássica bola de futebol.
Marina preferia que fossem doutores, o destino ditou que ambos se graduassem em contabilidade. No meio estava o futebol e os irmão Inzaghi só tinham olhos para a bola.
«Em miúdo, eu era ativo, astuto e determinado. E louco por futebol, claro», disse Pippo à FourFourTwo. «Nasci com uma bola na minha cabeça. Estudei apenas para orgulhar a minha mãe e o meu pai, mas sempre soube que, com alguma sorte, seria um futebolista - um ponta-de-lança, para ser preciso».
Em cheio. Pippo já tinha tudo delineado na cabeça. Um rapaz decidido e ciente das suas prioridades. Nas peladinhas com os colegas, era sempre requisitado porque marcava muitos golos, mas Marina insistia: «Só se o Simone também jogar».
Simone, por sua vez, tinha uma enorme aptidão para a liderança, tanto que no clube da terra chegou a capitanear o irmão mais velho. Os dois rapazes de San Nicolo tinham queda. Cresceram com uma fisionomia quase idêntica. Eram altos, esguios e com cabelos escuros. Enveredaram pelo mesmo caminho e conseguiram concretizar o sonho de um dia serem futebolistas profissionais.Os anos passaram e Simone construiu uma carreira de respeito (sobretudo na Lazio), apesar de ter demorado mais a dar o salto. Parecia, a bem da verdade, estar sempre um passo atrás de Pippo, esse miúdo com um dom especial.
Tudo começou no Piacenza e a escalada até aos seniores não tardou. Em 1991, aos 18 anos já fazia parte, de forma temporária, da primeira equipa que acabou por perder a batalha contra a a promoção para a Serie A. Foram três jogos apenas, mas estavam dados os primeiros pontapés.
Em 1994/95, surgiu finalmente a oportunidade para Pippo no Piacenza. Antes disso havia vencido o Europeu sub-21 - final ganha a Portugal - ao lado de figuras como Christian Panucci, Fabio Cannavaro e Francesco Toldo e parecia cada vez mais preparado. Na época de afirmação, Inzaghi marcou 15 golos no campeonato, cinco atrás do melhor marcador, Giovanni Pisano, e festejou o título de campeão.
Irrequieto, eterno insaciado e com ligação direta às balizas adversárias, Pippo estreou-se no principal escalão a menos de 100 quilómetros de distância porque um Parma bem saudável financeiramente não duvidou em desembolsar 3 milhões de euros para adquirir o seu passe no mercado de transferências. De Stoichkov a Baggio, o plantel estava apetrechado de craques e, mesmo tendo-se intrometido entre os titulares, a produção foi desapontante, levando a que, numa questão de meses, fosse apontado à saída.
Pippo não queria estagnar e forçou uma mudança para a Atalanta que, por um montante baixo, conseguiu uma autêntica pechincha. Com isso, calou os críticos que decidiram aparecer: 24 golos, Capocannoniere [melhor marcador] de 1996/97 e Jovem Jogador do Ano à frente de avançados de alto gabarito. Um amor pelos golos que estava mais forte do que nunca: «Não é o Inzaghi que está apaixonado pelos golos; os golos é que estão apaixonados por ele. Ele nasceu para jogar futebol e pode ter sucesso também como treinador (...)», disse Emiliano Mondico, seu treinador na altura.
Os números vieram a calhar para a Juventus. A última peça do puzzle do ataque estava identificada, mas as características e o estilo de jogo causavam apreensão, uma vez que, a completar o trio, estavam virtuosos como Del Piero e Zinedine Zidane. Ao longo de três épocas, marcou 89 golos em 165 jogos, conquistou títulos e foi vital para o domínio doméstico e europeu e passou a estar nas bocas dos analistas como um dos avançados mais prolíficos do mundo.
Um dos assuntos mais debatidos era o egoísmo. A imprensa italiana, baseando-se nas reações de Del Piero durante os encontros - levantar os braços em desespero para receber um passe -, começou a suscitar questões sobre uma eventual má relação entre ambos.
«Gostaria de dizer que o Alessandro del Piero é meu amigo, uma pessoa que admiro muito. Muitos jornalistas escreveram que não somos amigos - isso é mentira», disse, anos depois, à FFT. Quanto às acusações de ganância... Não havia muito a fazer.
«A minha teimosia é famosa em Itália. A verdade é que eu vivo para marcar golos... Mas tenho de confessar que por vezes fui demasiado egoísta». Típico de um homem-golo.
As dificuldades técnicas eram evidentes. Não era muito participativo no jogo coletivo e o domínio de bola era defeituoso em muitas ocasiões. Era pouco ortodoxo para um ponta-de-lança, posição tão nobre e ao alcance dos maiores predestinados. Pippo não era um predestinado. Era precisamente o contrário. E tinha perfeita noção das suas debilidades.
O seu jeito desajeitado causava apreensão nas defesas. Medo. Pânico, até. Parar Inzaghi era uma tarefa tão árdua como a de impedir um habilidoso. Nem os melhores dos melhores estavam seguros porque o que tinham pela frente mais parecia um constante desafio à lógica: métodos pouco convencionais ou bonitos e, ao mesmo tempo, eficazes. Muito eficazes.
História... para ambos os lados. Para o universo rossonero foi como a queda de um meteorito. Enquanto Zenoni mostrava dificuldades para se cimentar como bianconero, no lado vermelho e preto da Cidade da Moda nascia uma parceria de sonho após a saída de Bierhoff. Com Shevchenko, a simbiose era perfeita: irreverência e técnica com oportunismo e (mais) veia goleadora.
Começou, assim, uma maravilhosa epopeia de 11 anos. Muitos altos, muitos baixos e lesões graves que atrapalharam temporadas. E o ponto mais contraditório é que Inzaghi, já Super Pippo, nunca acabou por ser um indiscutível, mesmo durante os anos dourados de Carlo Ancelotti. Jogou muitos jogos, inclusive ao lado de Sheva, mas era relegado quase sempre para segundo plano. Um plano que não era seu, definitivamente. Sempre que ficava no banco, segundo Carletto, «o seu olhar era assustador».
Mas todas essas épocas serviram para aprimorar um instinto incomum no futebol. Uma arte pouco valorizada. Aquele sexto sentido típico de um predador tinha uma razão de ser. E não era uma questão de sorte.
Ler, anotar e estudar o rival... Ser e pensar como um defesa: onde estou, como vou atacar a bola e como evitar o avançado de chegar a ela? Inzaghi tinha resposta para todas as questões porque as contornava. Um erro, um único erro cometido era fatal. Fatal como uma seta envenenada no coração ou uma bala disparada por um sniper.
Entre golos decisivos em fases adiantadas, frente a Lyon, Bayern Munique ou Estrela Vermelha, e em finais, para sempre na memória dos rossoneri ficou o bis na finalíssima da Liga dos Campeões em 2007, frente ao Liverpool, dois anos depois do Milagre de Istambul. E houve uma história muito curiosa na véspera que, no livro 'Liderança Tranquila' de Carlo Ancelotti, Adriano Galliani, braço direito do então presidente Silvio Berlusconi, fez questão de a recordar.
Dois golos plenos de oportunismo e um deles em que simplesmente se atravessou à frente de um livre de Andrea Pirlo e traiu Pepe Reina. Tudo propositado!
«Ele disse-me depois: 'Depois de trinta anos no futebol, desenvolvi um instinto e aprendi a confiar nele. Gilardino está em melhor forma, mas o Pippo é o Pippo'».
Mais do que estratégia, tática e detalhismos, para Pippo o importante eram os golos: e não é esse o fim do futebol?
As críticas vindas de cima nunca pararam e algumas foram proferidas por vários ilustres da história do desporto. Era «um dos jogadores mais sortudos do mundo» cujo fenómeno ninguém compreendia, a antítese do modelo ideal de avançado.
Pippo Inzaghi 15 títulos oficiais |
Ao todo, em 21 anos de carreira, foram 317 golos marcados em todas as provas. Foi Campeão do Mundo em 2006 a jogar 30 minutos contra a Rep. Checa, a quem marcou o único golo na prova. Esteve, também, no Mundial 98', 2002 e no Euro 2000. Para além disso, conquistou três Scudettos, um Mundial de Clubes, duas Ligas dos Campeões... e muito mais.
«Golos são como uma boa droga. Nunca fico satisfeito». Basta, por exemplo, recuar até 2002/03, para um duelo sem nada em jogo contra o Torino. Marcou um hat-trick, incluindo o sexto e último golo. Depois, deu-se o festejo. O festejo de Inzaghi. Os jogadores do Torino ficaram furiosos com aquela correria louca e gerou-se uma enorme confusão, levando a que tivesse que pedir perdão no fim. Para si, todos os golos eram «como uma experiência mágica».
E em boa verdade eram. Sempre no sítio certo e com um timing perfeito como se regulado por um relógio. Afinal, não é uma arte? Encontrar espaço onde ele não existe, pensar e executar mais rápido que o marcador direto, desdobrar defesas, estender guarda-redes no chão, viver na corda bamba do fora-de-jogo. E mesmo já trintão fazia tremer os oponentes.
Em Milão, viu passar Shevchenko, Ricardo Oliveira, Ronaldo, Alexandre Pato, Borriello, Huntelaar, Gilardino e trabalhou no limite para, mesmo partilhando balneário com alguns dos maiores nomes do futebol mundial, se tornar uma lenda. Fê-lo, também, para ser um dos melhores marcadores da história do clube (130), da Liga dos Campeões (70) e da seleção de Itália (25), onde, no primeiro treino, chocou os colegas pela «capacidade técnica horrível».«Se não nasceste um Ronaldo ou um Kaká podes-te tornar um grande jogador pelo comprometimento, serenidade, perseverança e amor pelo que fazes». Um ícone.