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    Rui Miguel Tovar entrevista Óscar Duarte - Parte I

    «Fui preso político, torturado e ainda cheguei à seleção de Portugal»

    E2

    «Barrilete Cósmico» é o espaço de entrevista mensal de Rui Miguel Tovar no zerozero. Epíteto de Diego Armando Maradona, o nome do espaço remete para mundos e artistas passados, gente que fez do futebol o mais maravilhoso dos jogos. «Barrilete Cósmico».

    O intercidades treme por todos os lados, entre Lisboa e Covilhã. A carruagem do bar é a melhor de todas, há espaço para as pernas, bancos altos e ainda janelas generosas para acompanhar a paisagem verdejante. Às tantas, um senhor encosta-se ao balcão e pede um café. A silhueta é-me familiar. Parece o meu avô, com uma mala castanha de couro a tiracolo. Embora nunca tenha visto esta figura ao vivo e a cores, aproximo-me e pergunto-lhe (o resto é magia). Uma conversa perfeita, em dia de jogo de Cabo Verde no CAN. 

    É o Óscar Duarte?

    Sou, sim senhor.

    Nem imagina a alegria em vê-lo finalmente.

    Então?

    Entrevistei-o por telefone há uns 11 anos e sempre tive a curiosidade de o conhecer.

    Há 11 anos? Isso já foi na outra vida.

    Verdade. Por falar nisso das outras vidas, o meu fascínio com o Óscar tem precisamente a ver com essa lengalenga.

    Qual?

    A das sete vidas, o Óscar já bateu esse recorde.

    Ahahahahah.

    Verdade, então o Óscar nasce em Cabo Verde, estuda em Portugal, é preso político, volta a Portugal, joga futebol ao mais alto nível, chega à seleção portuguesa e depois ganha a Taça Amílcar Cabral por Cabo Verde? Isso é missão impossível.

    Ahahahahah.

    Não se ria, ó Óscar, é a mais pura das verdades. O seu currículo é invejável. Claro, há pessoas com mais títulos, outras com mais golos, outras ainda com mais títulos e golos, mas o Óscar tem uma riqueza de vida sem igual. Não conheço nenhum preso político que tivesse chegado à seleção portuguesa, ainda por cima em representação do Estoril. É obra, convenhamos.

    Ahahahahah. É verdade, fui preso político, torturado e ainda cheguei à seleção de Portugal.

    A sua existência é um desafio para qualquer ser humano, devia ter um livro.

    Estou a pensar seriamente nisso, ó Rui.

    Faça mesmo, força aí nas canetas. Se quiser ajuda, pode chamar-me.

    Vai ser duro.

    Bem sei bem sei, a sua vida é a mais dura que ouvi.

    Há momentos em que nem quero pensar mais, quanto mais passá-los para o papel.

    Nem imagino. E também há outros em que dá gozo recordar e descrevê-los para a posterioridade.

    Claro que há, tantos.

    Começo pelo último. Digo eu que é o último.

    Qual?

    q E a solitária? Só para ver, lá não era solitária, era a geladeira no Inverno e a fritadeira no Verão. Aquilo era… Não dá para descrever. Tinha três palmos de largura e cinco de comprimento. Uma vez, passei lá três meses
    Óscar Duarte
    O único título de Cabo Verde, a Taça Amílcar Cabral.

    Ahahahahah. Verdade, em 2000.

    Com quem?

    Senegal, ganhámos 1:0.

    Golo de quem?

    Toni, um goleador do Braga, a passe de Zezinho.

    E depois?

    Fiquei à frente da seleção por mais três anos, nunca recebi nada em troca. Fui selecionador a custo zero e ganhei uma competição. Os outros que se seguiram, a ganhar 600 contos, ganharam alguma coisa?

    Ah pois é, e o Óscar saiu em que momento?

    Em 2003, no início da qualificação para a Taça Africana das Nações, estávamos a jogar em casa com o Togo e ouvi tantos insultos.

    Do público cabo-verdiano?

    Exatamente. E ainda me atiraram garrafas. Uma delas passou a rasar a minha cabeça. Uma inconsciência. Virei-me para eles e fiz um manguito. Estavam lá o presidente do país e o presidente da federação, ahahahahah.

    E o resultado final?

    Dois-um para nós.

    Ai houve reviravolta?

    Sim, nem mais. Os adeptos estavam fora de si a meio de um jogo. Foi inacreditável, surreal, nunca vi isso. Mal acabou o jogo, os jornalistas aproximaram-se de mim com perguntas e disse ali umas verdades com asneiras à mistura.

    Estilo?

    Vão todos para tal parte.

    A sério?

    Nunca ofendi os jornalistas, ofendi quem me tentou acertar com garrafas. Ó Rui, garrafas. Se acertassem em mim, era perigoso. Perigo de morte, até.

    Claro.

    Disse aquilo e, pronto, fui afastado. Nunca mais quiseram nada comigo. Seja como for, o meu percurso tem aquela vitória na Taça Amílcar Cabral e um empate a zero com o Luxemburgo.

    Uauuu, boa boa.

    (Óscar ocupa o silêncio e assobia uma música alegre)

    Ò Rui, vamos sair daqui e sentamo-nos ali à frente, no meu lugar.

    Vamos a isso.

    Aqui é melhor, e a paisagem é a mesma.

    Ahahahah, verdade.

    Estávamos mesmo a falar de quê?

    Do passado recente, em 2000. E agora quero falar do passado beeeem lá atrás, pode ser?

    Claro, temos tempo. Já percebi que o comboio daqui até à Covilhã é o mesmo do meu tempo nos anos 70.

    Ahahahahahah. Para quê mudar se está tuuudo bem?

    Ahahahah.

    Quando chega cá a Portugal?

    Uyyyyy, isso é mesmo o passado lá atrás. Cheguei cá novo, muito novo, ainda com 16 anos incompletos.

    Para quê?

    O objetivo era estudar e frequentei o curso geral na Escola Agrícola D. Dinis. Lá, fiz amigos e um deles levou-me ao Belenenses.

    G’anda pinta.

    Ahahahahah. O meu pai não achou piada nenhuma.

    Como é que soube?

    Boa pergunta, sei lá eu. Só sei que soube e escreveu-me a dizer para desistir da ideia porque eu estava em Portugal para estudar, e não para jogar futebol.

    Ischhhhhh, que má onda.

    Ahahahah. O meu pai era tramado. Uma vez, foi ver-me jogar, às escondidas, e as coisas não me estavam a sair bem. Claro, ouvi de tudo. És isto, és aquilo. E o meu pai lá no meio, também a apupar-me. Cheguei a casa e agradeci-lhe o apoio, ahahahah.

    Má onda mesmo, que barraca. Portanto, nada de Belenenses. E o Óscar gostava de bola?

    Gostar, gostava, mas não sentia vocação para ser futebolista.

    Então?

    Dava uns toques, mas não estava a pensar naquilo de jogar futebol. E depois da carta do meu pai, menos ainda.

    Pois é, esqueci-me dessa parte: carta?

    Por carta, e ainda me escreveu que me viria buscar de propósito, se soubesse que eu andasse metido nos futebóis.

    Beeeeem, super-pai.

    Tranquilo, repito-me: nunca me senti tentado pelo futebol e nem fiquei com a pulga atrás da orelha. Esqueci facilmente o futebol e dediquei-me aos estudos. Acabei o tal curso em 1970 e voltei para Cabo Verde, conforme desejo do meu pai.

    E ia iniciar a carreira de agricultor?

    Era bom, era. Chegou a altura do serviço militar e, desde logo, tomei a decisão de não me sujeitar a ter de lutar contra os meus irmãos de raça, contra colegas de estudos, de rua, de família.

    E o que fez?

    Um amigo mais velho aconselhou-me a não dar os estudos.

    Não dar estudos?

    Driblar a verdade, dizer que não tinha completado os estudos. Era uma desculpa.

    E?

    Em vez de voltar a Portugal para frequentar o CSM.

    O CSM?

    Curso de Sargentos Milicianos. Em vez do CSM, assentei praça como soldado recruta em Cabo Verde, onde a guerra ainda não tinha chegado.

    Uffff.

    Não, nada disso, Rui. Descobriram a minha fuga, a minha habilidade.

    E?

    Expulsaram-me do exército.

    Caramba, e agora?

    Passei a ser controlado de perto por todos. Tudo era escrutinado e, poucos meses depois, fui preso.

    Daaaaamn.

    Um amigo meu foi detido e confessou todas as nossas ligações com o PAIGC.

    PAI…?

    PAIGC, Partido Africano para Independência de Guiné e Cabo Verde.

    Óscar Duarte
    Total
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    Mil-infinitas desculpas pelo desconhecimento da matéria.

    Sem problema, amigo Rui. Fica a saber a partir de agora e acredito que nunca mais se esquecerá.

    (Óscar volta a ocupar o silêncio a assobiar uma música alegre)

    E o que se passou a seguir?

    A polícia foi à minha casa e encontrou documentos / literatura do movimento.

    Estamos em que ano?

    Fui dentro em meados de 1972, enviaram-me para uma prisão subterrânea, onde estive meses. Depois andei por aí, a trocar de prisão em prisão até ao 25 de Abril.

    Como assim, de prisão em prisão?

    Cadeia civil em Cabo Verde, depois Tarrafal, depois Caxias, depois São Nicolau, depois Cuando Cubango e o fim do mundo na fronteira com a Namíbia. No dia 25 de Abril, estava num acampamento da PIDE em pleno deserto. Aquilo era o fim do mundo, chamava-se mesmo assim ‘as terras do fim do mundo’. Se alguém conseguisse escapar, não teria como encontrar refúgio nem saberia fugir para a salvação. Lá, não havia a salvação: estávamos a 150 quilómetros de uma cidade e, além disso, estávamos rodeados de vida selvagem entre hienas, jacarés e sei lá o que mais. Era esse o maior problema de todos daquela prisão.

    Qual?

    Era uma prisão em liberdade. Se fugíssemos, morreríamos à fome ou à sede.

    (em liberdade, digo em voz baixo para mim mesmo)

    Rui, quando digo liberdade – Óscar olha para a paisagem – nós jogávamos futebol perto do Rio Cunene, cheio de jacarés. Quando a bola ia parar à água, quem é que se atrevia ir lá buscá-la? Se fossemos todos das duas equipas, havia jacarés para nos limpar a todos.

    Dassssss (desculpe, Óscar)

    Dentro da prisão, sofri de tudo e conheci toda a espécie de torturas. Ainda hoje me espanto com o poder imaginativo daquela gente para chegar cada vez mais longe no campo do sofrimento físico e moral. Perdi 38 quilos em São Nicolau. Como nunca fui gordo, imagine como fiquei.

    Não imagino.

    Medo, sofrimento, inimaginável, indescritível, irreal. Nada destas palavras vale muito com o que passámos por lá. Tenho até um livro sobre isso. Só tenho um exemplar. Uma vez, fiquei sem o ver durante 21 anos por causa de um amigo que o levou e nunca mais o devolvia. Agora, quem o quiser ler, tem de o fazer aqui em casa. Acredita que já aconteceu isso mesmo, as pessoas passarem um dia e tal aqui em casa?

    O que conta o livro?

    A história verídica de um homem que conseguiu sair de São Nicolau e foi apanhado a cinco mil quilómetros dali.

    Sabe o que lhe fizeram?

    Crucificaram-no como Jesus, sabe? Mas também sabe que o corpo pesa mais quando está sem apoio, não é? Então está a ver, puseram-no lá em cima e o corpo foi-se despedaçando aos poucos: primeiro o ombro...

    «Apanhava marteladas nas mãos, nas nádegas...»

    E o Óscar?

    Aquilo era cá um sofrimento danado, num estabelecimento sem leis nem regras. A não ser as leis e as regras do diretor. Que mudavam muito, consoante a maré. Apanhei tanto que nem imagina. Apanhava marteladas nas mãos, nas nádegas. Um pesadelo permanente. Às tantas, entraram presos de delito comum na prisão dos presos políticos e tudo se agravou. Eu não falava com ninguém. Durante quase dois anos, não falei com ninguém. Pois então, se três em cada quatro presos eram informadores. E a solitária? Só para ver, lá não era solitária, era a geladeira no Inverno e a fritadeira no Verão. Aquilo era… Não dá para descrever. Tinha três palmos de largura e cinco de comprimento. Uma vez, passei lá três meses. Com outros presos. E a fazer lá as necessidades. Já para não falar das vezes em que se abriam as portas para tirar de lá um preso que nunca mais o víamos. Ai ai, cada vez que isso acontecia, dizia a mim mesmo ‘Óscar, chegou a tua vez’. E nunca chegou. Com o 25 de Abril, libertaram-nos. Que bom: sol, chuva, espaço, liberdade. Nem sei como consegui ser jogador de futebol.

    Sim, como?

    Às vezes, penso para mim: ‘Óscar, nasceste para o futebol no Tarrafal’. Porque os guardas de lá organizavam torneios e depois fui considerado o melhor. Ganhei o jeito.

    E?

    E nada.

    Então e nunca mais voltou a Portugal?

    Quando cheguei a Portugal, já depois do 25 de Abril, disseram-me para descansar.

    Disseram-lhe?

    Repare, tenho 40 de pulsação em repouso. Por isso, disseram-me para espairecer quando cheguei a Portugal. Nada de estudos, nada de aulas, faça outra coisa qualquer. Só depois é que retomei o curso agrícola no sentido de me atualizar. Fiz um curso de rações, outro de avicultura, andei na Escola Agrícola da Paiã, em Odivelas.

    (Óscar volta a ocupar o silêncio a assobiar uma música alegre)

    E o futebol?

    Um belo dia, o meu grande amigo Carlos Alhinho levou-me a um treino do Benfica.

    Assim, sem mais nem menos?

    A época já tinha começado e tal.

    G’anda classe. E que tal?

    Os gajos lá do Benfica estavam espantados e muitos diziam ao Carlos: ‘trouxeste um craque’.

    Boa boa.

    Só que foi um treino sem o treinador principal, o Pavic estava fora.

    Quem deu o treino?

    Fernando Cabrita.

    Simpático?

    Sim, sem dúvida. Disse-me que tinha valor, mas não havia hipótese. E sugeriu-me o Covilhã. Lá fui.

    Como?

    Neste comboio e a esta velocidade, ahahahah.

    Ahahahahah.

    Treinei, marquei uns quatro / cinco golos e assinei.

    Deu-se bem?

    Muito bem, encaixei bem ali. Lembro-me de falar com dois brasileiros do plantel, dois brasileiros bons de bola. Perguntei-lhes o que devia fazer quando falasse de valores com a direção e eles ‘aceita o que te derem’. Aquilo deu-me a volta ao estômago. Nem pensar, nunca. Então tinha uma enxada e ia deixar que negociassem o meu contrato sem dar luta? Não, nem pensar.

    Qual foi o resultado?

    Seis contos por mês, era bom dinheiro.

    E a malta?

    Porreira, o grupo era unido. Estou ansioso por vê-los.

    Vivia onde?

    Numa pensão, no centro. Eu e outros.

    E?

    Fomos campeões da 3.ª divisão em 1975.

    Maravilha.

    Fui o melhor marcador da equipa. Na época seguinte, também [já na 2.ª divisão, zona norte].

    Segue-se o salto para Estoril.

    Boa malta, boa camaradagem. A rapaziada era divertida, fazíamos almoçaradas e não nos pagavam durante três, quatro meses. Eram todos comunicativos e eu talvez fosse o mais fechado.

    Pelo seu passado recente?

    Já era tranquilo por natureza, mas tornei-me mais reservado com aqueles anos na prisão.

    Natural.

    Tanto o Covilhã como o Estoril tinham um grupo de pessoas generosas e rio-me bastante quando me lembro de todas as coisas que não se podem contar, ahahahah.

    E as que se podem contar?

    Sabe quem apanhei como jogador-treinador no Estoril? O Torres, bom gigante. E ela era um gozão. Sabe o que me fazia? Quando me dava boleia para o treino, parava o carro onde estava e, de repente, arrancava comigo ainda a abrir a porta. E, às vezes, fazia-me isso uma, duas e três vezes na mesma boleia: aproximava-me e ele arrancava, com a porta aberta.

    Ahahahahah.

    Houve dias em que nem fui treinar, porque desistia pura e simplesmente de correr atrás do carro e voltava para a minha vida.

    Mas cuidado consigo quando ia a jogo.

    Veja lá que o José Torres começou uma época a prometer-me que comprava roupa nas lojas do centro de Cascais por cada golo meu. Bem, às tantas, ele já estava a virar o bico ao prego, num tom muito divertido: ‘quer dizer, eu compro roupa nos ciganos e tenho de ir ao centro de Cascais para comprar-lhe roupa, não pode ser, não pode ser'.

    [A Parte II da entrevista a Óscar Duarte será publicada às 14 horas]

    Portugal
    Óscar Duarte
    NomeÓscar Vicente Martins Duarte
    Nascimento/Idade1950-12-05(73 anos)
    Nacionalidade
    Portugal
    Portugal
    Dupla Nacionalidade
    Cabo Verde
    Cabo Verde
    PosiçãoMédio

    Comentários

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    motivo:
    Entrevista
    2024-02-01 12h08m por DragonKing
    Bastante interessante.
    À espera da Parte II e do livro que o Óscar Duarte "terá" de escrever.
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