Há três Kostadinov’s na minha vida.
O primeiro é o futebolista. Aliás, o goleador. Sempre que ia ao José Alvalade, toma lá disto: um golo do Kostadinov ao Ivkovic. Lembro-me dos dois, um para a 1.ª divisão e outro para a Taça de Portugal, no dia 3 Março 1992. Convivi com esse bilhete à frente da minha secretária durante anos e anos, daí o saber a data de cor e salteado.
E o terceiro, agora, é o entrevistado. O alerta é de Domingos, seu parceiro de ataque no FC Porto. ‘Ó Rui, o Kosta está aí em Lisboa, num congresso da UEFA.’ Palavra puxa palavra, marcamos um encontro às 19 o’clock à entrada do Hotel Corintia, à frente do Sete Mares, cuja mesa do Eusébio ainda está posta para Ele, ali na Avenida Columbano Bordalo Pinheiro. À chegada, vemos Luís Figo, vemos Fernando Gomes, nada de Kostadinov. Quinze minutos depois, ei-lo. Com a pochette debaixo do braço, tal como em 1992 na porta 10-A. É só rir. O homem sorri, sugere-nos um café lá fora e sentamo-nos. Ouçamo-lo.
(por cada asterisco, uma gargalhada; por cada cardinal, uma passa na sua cigarrilha)
És daqui?
Lisboa? Sim, sim, vivi os primeiros 11 anos aqui nesta rua, e tudo e tu?
Sofia. #
Que tal?
Muita confusão, a Bulgária. Muda-se muito de governo, aqui é mais tranquilo. E o Domingos, conheces o Domingos? #
Sim, estamos a editar um livro sobre ele.
Boa, boa. Quando é que ele volta a treinar?
Boa pergunta.
Vou fazer-lhe pressão alta. *
Faz, nunca se sabe.
O sucesso dele no Braga foi fantástico, chegar a uma final europeia não é para todos, porque é um longo caminho e o dele até começou na pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Tiro-lhe o chapéu, grande Domingos. E o resto da malta? #
Quem?
O bicho, onde anda?
É treinador do Académico de Viseu, está a jogar para subir de divisão.
A sério? Fantástico. E o Vítor Baía?
Pertence à estrutura do FC Porto.
Ahhhhh, então já sei. *
O quê?
Um dia, o Vítor é eleito presidente e mete o Domingos a treinar o FC Porto. Eles ainda se dão, certo?
Sempre, amigos desde sempre.
Sim, eles estavam sempre juntos, eles é que inventaram a palavra amizade. E o Rui Jorge?
É o seleccionador dos sub21.
Ainda é, ainda bem. Ele era engraçado, tinha sempre uma piada para dizer. E o André, continua a pescar?
Já desistiu, vendeu o barco e tudo. Gosta mais de estar em terra, a curtir a vida.
Já reformado?
Já saiu do FC Porto, sim. Foram uns 40 anos.
Muito, o André deu muito ao clube. Como jogador, porra, vi poucos assim como ele.
Agora é a minha vez, e o Kostadinov?
Aahahahah, cá ando.
Tranquilo?
Sim, muito. **
A minha imagem mais forte do Kostadinov é no José Alvalade.
Dei-me sempre bem com o Sporting, bons tempos.
E porquê?
Sei lá. Sorte, timing. Há muitos factores para um golo. #
É como o 2:1 no Parque dos Princípes?
Por exemplo, sim.
Como é que hoje ainda vê essa jogada?
Foi tudo muito rápido, livre para eles aos 89 minutos e o público estava a cantar, já a pensar no apuramento para o Mundial-94. A bola foi para o Ginola, o cruzamento sai longo demais e a bola foi para nós. O Balakov meteu com a parte de fora do pé para o Stoitchkov, acho, e o Hristo abriu para a direita, onde apareci eu. Ganhei o lance a um defesa e atirei cheio de convicção.
A bola ainda bateu na barra, certo?
Foi. É daqueles lances que podia ter corrido mal. Em cem remates daquele ângulo, metia quantos golos? Não sei. Só sei que aquele entrou, o Lama não teve hipótese. #
É um golo histórico.
Todos os anos há alguém da Bulgária a ligar-me nesse dia para comentar o golo. E; às vezes, até me ligam da França. Ahahahah. Eles ficaram de fora do Mundial-94 e, para mim, o meu golo fez-lhes bem porque fizeram algumas alterações que os conduziram ao título mundial em 1998. E sabes uma coisa? #
[pausa]
#
[suspense]
#
Cheguei a Paris um dia depois da selecção búlgara, na véspera do jogo, e sem saber se jogaria.
Porquê?
Não tinha o meu visto comigo em Portugal. Então tive de ir de avião para a Alemanha e entrar de carro em França, mas só depois de um polícia búlgaro ter-se encontrado comigo para entregar-me o visto esquecido na Bulgária. Quando entrei em França, senti-me relaxado e confiante de que tudo iria correr bem. E correu.
E essa selecção, búlgara, que tal?
Fenomenal. Já nos conhecíamos há muito tempo e havia talento ilimitado. Desde o guarda-redes ao avançado, muita qualidade. E isso viu-se no Mundial-94. #
Como foi jogar debaixo daquele sol?
O quê, 40 graus? Espectáculo, muito bom. ***.
Qual era o objectivo da Bulgária?
Ganhar um jogo na fase de grupos. Já tínhamos estado em outros Mundiais. Dois, se não me engano: o de 1970 e o de 1986. E nunca ganhámos. Por isso, aterrámos nos EUA e queríamos ganhar uma vez.
E chegaram à ½ final, uauuu.
Ahahahah, verdade. Foi uma viagem louca, até porque perdemos o primeiro jogo [Nigéria] e tivemos de dar a volta. #
Como?
O tal talento. Foi uma experiência única. Ainda hoje se fala dessa selecção e já passaram quase 30 anos. Aqueles que falam de nós dessa forma elogiosa vêem muito difícil uma geração igual nos próximos tempos. Vamos ver. #
Uma imagem muito minha do Kostadinov é aquele penálti do Costacurta.
Foi penálti, claríssimo. O que se pode dizer? Itália é Itália. Bulgária é um país mais pequeno e isso conta no futebol. Esse árbitro francês esteve mal.
Falou-me do Mundial-86. Viu?
Sim, acompanhei pela televisão. #
Essa Bulgária tinha muito jogador bom e nós, portugueses, vibrámos com eles.
Bem sei bem sei.
Guetov
Pffffff. Lindo, joguei com ele no CSKA Sofia. Livres directos com o pé direito, livres directos com o pé esquerdo. ##
Como é que ele fazia isso?
Não sei, génio. ##
Há mais, muitos mais.
Siiiim. Radi no Chaves. Depois o Chaves teve Tanev e Slavkov, não?
Exacto.
Fomos muitos para cá. Balakov, Sporting.
Dragolov, Torreense.
Mihaylov, Belenenses.
[puxo pela cabeça e nada me sai]
Iliev, Benfica.
Iordanov.
Iordanoooooov. Sabes que sou o responsável pelos sub21 e o Iordanov é o adjunto dos sub21? #
Nem ideia.
Pois é, ele ‘tá f***** comigo, dou-lhe muito na cabeça. Ahahahah, agora a sério: é bom rapaz. *
Como é que o Kostadinov chegou a Portugal?
Através de um empresário chamado Minguella. Havia uma proposta de Espanha, acho que era do Espanyol. E havia uma de Portugal, do FC Porto. E eu escolhi o FC Porto porque lembro-me de ver aquela final da Taça dos Campeões 1987. Quando cheguei cá, mais espantado fiquei.
Com o quê?
Tudo: a estrutura, o plantel, o profissionalismo, a amizade.
Tudo isso junto?
O FC Porto era uma família e tinha estabilidade porque havia homens como o André. #
Então?
O André era um craque dentro do campo e ainda organizava almoços para todos. Quando digo todos, é mesmo todos. Quando digo família, é mesmo família. Todos iam. Que tempos, espectacular.
Almoços, quando?
Todas as semanas. #
Onde?
Espinho, Leça, sei lá onde, apenas ia. Ia onde me levassem. **
E os treinos, e os jogos?
Ahahahahah. Eram à quinta ou sexta-feira, já não me lembro. Dependia também da agenda dos jogos europeus, mas sei que eram em dias mais suaves, quando dava para fazer uma folga no esforço físico semanal.
Entendeu-se logo com o Domingos?
Era um miúdo, o Domingos.
O Kostadinov é mais velho que ele?
O Domingos é de que ano?
1969.
Sou de 1967 ***, é só dois anos de diferença. Julgava-me mais adulto que o Domingos.
E que tal o Domingos?
Havia química, dentro e fora do campo.
Fora?
Íamos beber café ali perto das Antas, onde eu morava. E as nossas famílias também conviviam muito. Esse foi o segredo, as famílias unidas. Íamos aos aniversários uns dos outros e levávamos mulher mais filhos, cães, gatos. Tudo na mesma casa a conviver. Criou-se um ambiente óptimo para jogar e, claro, ganhar títulos. A minha dupla com o Domingos ficou famosa à conta de golos em jogos históricos, como aquele 3:2 na Luz. Eu era o agressivo, ele era o tímido. Eu mais mandava todos para o c******, ele estava sempre com aquele sorriso de menino bem-comportado.
Quem os lançou como dupla?
Primeiro foi o Artur Jorge, depois o Carlos Alberto Silva e, finalmente, Bobby Robson. Três treinadores muito diferentes, basta ver pela nacionalidade: um português, um brasileiro e um inglês. Todos excelentes, do melhor. Aprendi muito. #
Porquê o número 8 na camisola?
O 7 era o Magalhães?
Exacto.
Pronto, está explicado.
O seu número era o 7?
No CSKA, sim. Na Bulgária, também. Nesse jogo em Paris, era o 7. O 8 era o Stoitchkov, o 9 Penev, o 10 Balakov, o 11 Letchkov. No Mundial-94, sou o 7. No Mundial-98, sou o 7. No Euro-96, sou o 7. Em Toulon, sou 7. #
Toulon?
Ganhámos Toulon em 1986 e perdemos a final em 1987. Era o 7, Stoitchkov era o 10, Balakov o 8, Penev ainda e sempre o 9.
E marcaste algum golo?
# Isso já não me lembro. Sei que ganhámos à França, na final. E, verdade seja dita, perdemos a final do ano seguinte também com a França, nos penáltis. Aliás, nesse ano de 1987, ganhámos 2:0 a Portugal na fase de grupos. Acho que era frase de grupos. #
E lembras-te de alguém de Portugal?
Paneira. #
Porquê a saída do FC Porto em 1994?
Havia muitas equipas interessadas e assinei pelo Deportivo. Se quando cheguei às Antas encontrei Aloísio e Baltazar como estrangeiros, no Depor vi Donato, Mauro Silva, Djukic, Bebeto.
Por pouco tempo. Nessa mesma época, Bayern.
Precisavam de um avançado. #
Meeesmo? Já lá estavam Klinsmann e Papin.
*** Perguntas bem. Sei lá, só sei que cheguei e ganhei a Taça UEFA. Até marquei na final ao Bordéus, lá em França. Devo agradecer ao Beckenbauer.
O presidente?
O presidente-treinador.
A sério?
O Rehhagel perdeu dois jogos ou o que foi e fora, despedido. Um pouco como agora, com o Tuchel. Entrou o Beckenbauer para o resto da época. #
E?
Um senhor da cabeça aos pés, uma instituição. Já o era como jogador, também o é como pessoa. E demonstrou-o também como treinador. Ele falava, pouco e bem. Ele falava e todos se calavam a ouvi-lo. Ainda me lembro dele a dizer-me para jogar o meu futebol antes da tal final da Taça UEFA. Disse-me as palavras certas para entrar calmo em campo, consciente do meu valor. Assim foi, fiz o meu trabalho em dose dupla: assisti de calcanhar o Scholl para um golo e marquei um outro, de cabeça.
De cabeça, espectáculo.
As pessoas não me conhecem muito bem, mas marquei muitos golos de cabeça. Esse da final da Taça UEFA é só mais um, e talvez seja o mais grandioso por se tratar de um título europeu.
Esse Bayern era qualquer coisa.
Siiiim, siiiim. Kahn, Strunz, Helmer, Scholl, Klinsmann, Papin. Coitado do Papin. *
Então?
Ainda estava nervoso com o 2:1 da Bulgária à França. Falámos muito sobre esse jogo e o Papin sempre a abanar a cabeça, a falar baixinho. Os franceses estavam convencidos que iam ao Mundial-94 e até marcaram primeiro nessa noite, passe de cabeça do Papin e remate do Cantona. Só por estes dois se percebe a qualidade da França. Sem esquecer Sauzée, Desailly, Blanc, Deschamps. Era só craques. Mas eles tremeram com o nosso 1:1. #
Também do Kostadinov.
E de cabeça, ahahah. Canto do Balakov na esquerda e eu ao primeiro poste.
Jogada de laboratório.
Como se diz, grandes mentes pensam igual? #
Isso mesmo.
Balakov era um dotado para o futebol, adorava ter a bola, assumir o risco e ensaiar jogadas de bola parada. Colocava a bola onde queria, só me bastou fazer o movimento de rodar a cabeça. #
Voltaste ao Parque dos Príncipes?
Que me lembre, não. Mas levantei a Taça UEFA em Bordéus. A França está-me no sangue e nunca joguei no campeonato deles. *
Também jogaste na Turquia e no México.
Fenerbahçe e Tigres. Boas experiências, culturas futebolísticas muito parecidas. Salários altos, adeptos cheios de fervor clubístico, estádios cheios, boas equipas. No México, cheguei a resolver o dérbi de Monterrey com um golo, foi engraçado. #
E mais coisas engraçadas?
Assim de repente? Nem sei.
Do CSKA, por exemplo.
Isso é muito lá atrás, já não tenho capacidade de puxar o filme. #
É pena. Faço-te então uma última pergunta e piro-me: o pior defesa que apanhaste pela frente?
Couto, Fernando Couto.
Nos treinos do FC Porto?
# Nos jogos entre Académica e CSKA Sofia. #
Hein?
Estágios a meio da época, o CSKA costumava vir cá em Janeiro e Fevereiro para manter a forma enquanto o nosso campeonato parava.
Grande história.
Se bem me lembro, viemos cá dois anos seguidos em 1989 e 1990 ou 1990 e 1991.
E que tal?
O Couto? Mauzinho, f***-se. E eu respondia-lhe à letra. Era só palavrões, trocámos tantos insultos e chocámos tantas vezes, a faísca era imensa. Depois encontrámo-nos no FC Porto e era só sorrisos. O futebol é assim mesmo: quem dá, leva; quem leva, dá. Apanhamos de qualquer jeito.
******.
Lembro-me de mais jogos aqui. Um em Portimão, 4:2 para nós. Marquei três golos e o Guetov marcou por eles, do Portimonense. E houve outro jogo, na Luz. Perdemos 2:1, marquei ao Bento. E também joguei com o Sporting no José Alvalade. Marquei dois ou três e empatámos 4:4? Acho que foi isso, o Stoitchkov foi expulso por ir contra uma decisão do árbitro. #
Esqueci-me dessa figura, que tal o Hristo?
Impecável. Era como eu: zero problemas. *#*#*#*#*#*