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    A entrevista de Rui Miguel Tovar no zerozero

    Juary: «Saí da sauna mista, encontrei o Octávio e… você já viu um preto ficar branco?»

    E1

    «Barrilete Cósmico» é o espaço de entrevista mensal de Rui Miguel Tovar no zerozero. Epíteto de Diego Armando Maradona, o nome do espaço remete para mundos e artistas passados, gente que fez do futebol o mais maravilhoso dos jogos. «Barrilete Cósmico». 
     

    Juary é um personagem. Dos 19 golos no FC Porto, 12 como suplente. Dos 19 golos no FC Porto, cinco na UEFA, todos a suplente – hat-trick vs Barcelona, nas Antas, um vs Bröndby em Copenhaga e outro vs Bayern em Viena. O almoço com João Pinto entra nos descontos e Juary chega atrasado à redação do zerozero.pt, conduzido pelo Pedro Jorge Cunha. Logo à entrada, o resumo do hat-trick vs Barcelona, em noite de chuva intensa. Há os cumprimentos da praxe, os elogios etc e tal. Juary contorce-se todo a rir, fala com o corpo e prende-se ao ecrã, a adivinhar cada bola, a comentar lances, a finalizar jogadas de mestre.

    Seguem-se mais cumprimentos, mais elogios e, só para desenjoar, uns autógrafos. Juary é convidado a conhecer o resto da redação, sobretudo a zona mais recente e (sem rodeios) também mais nobre, onde está um mini-relvado com balizas e tudo para a malta – e os filhos da malta, vá. Se se quiser jogar ao som dos adeptos do Manuel Marques, em Torres Vedras, basta clicar na imagem do estádio. Se se quiser ao som do Vidal Pinheiro, carreeeeega. Um sonho ainda mais psicadélico, Bombonera? Uau, siga a marinha. Há dezenas e dezenas de estádios nacionais e internacionais, é um Agora Escolha de escolha múltipla.

    Quando passamos esse relvado, viramos à esquerda e há um cantinho com uma televisão xpto rodeada por dezenas de fotografias com os melhores golos de sempre. O sistema é o mesmo, um toque no código de barras e toma lá disto. Juary vê o de Roberto Carlos vs França, em 1997. A bola descreve um arco do triunfo, Juary contorce-se todo. Mais uma vez. E ri, claro. Depois atira, ‘só houve um cara com um pontapé mais forte que o Roberto: o Nelinho.’ É verdade, sim senhor. Nelinho, jogador do Barreirense em 1971 antes de se tornar uma estrela mundial com dois golos pelo Brasil no Mundial-78, ainda hoje é conhecido por ter conseguido atirar a bola para fora do Mineirão desde o relvado, num desafio do canal televisivo Globo, em 1979.

    Agora sim, está concluído o aquecimento. Juary entra num estúdio e é o primeiro convidado do Barrilete Cósmico.

    zerozero - Juary, obrigado pela sua presença.

    Juary - Obrigado eu pelo convite, obrigado por ser o primeiro convidado.

    zz - E obrigado por estar vestido a rigor com essa camisa do Eterno Menino da Vila.

    J - Para mim, não tem preço. Fomos a primeira geração dos meninos da Vila e fomos campeões paulistas em 1979. Esse termo dos meninos nasceu com o sô Chico Formiga, nosso treinador. Quando ele falava connosco, usava o termo meninos, muito comum lá em Minas, de onde ele era, e a coisa pegou. E ficou comigo até hoje, daí que tenha nascido o desejo de montar o projeto para os jovens jogadores que se chama Juary, eternos meninos da Vila. Com a ajuda de Deus e de alguns companheiros, o projeto beneficente segue firme e já temos 25 jogadores dos 12 os 13 anos e mais 25 dos 14 aos 15.

     zz - E que tal?

    J - Os meninos estão a começar a gatinhar. De mil, só um vira. A percentagem é assim mesmo. Os outros até podem nem virar jogadores profissionais, só jogador de futebolada ao fim-de-semana, mas todos temos obrigação de sermos grandes homens.

    zz - O Juary nasceu no Rio. Como é que foi parar ao Santos, lá no Estado de São Paulo?

    J - Agradeço a Deus e agradeço ao meu pai, que teve a coragem de me tirar da zona de conforto, da casa da minha mãe. Ele praticamente me largou na Vila Belmiro. Disse que ia tomar um café e fumar um cigarro. Só o voltei a ver seis meses depois.

    zz - Quê?

    J - Nunca comentou comigo que ia levar-me ao Santos para fazer um teste como futebolista. Apenas disse à minha mãe que ia dar uma volta, perto da minha casa, em Volta Redonda. Foi difícil, cara.

    Izz - magino. Ou melhor, nem imagino.

    J - Fomos 6.ª feira e acordei em São Paulo, na estação da Luz. Estamos em 1975. Ele virou-se e disse ‘vamos pegar o ônibus para Santos.’ E eu ‘fazer o quê em Santos?’ Quando lá chegámos à Vila Belmiro, ele pediu-me para esperar no início das escadas e subiu. Uns 40 minutos depois, disse-me ‘você sobe as escadas, toma o almoço e depois desce que eu estou ali a tomar um café ali naquele canto.’ Legal, cheguei lá acima e vi um monte de coisas gostosas: arroz, feijão, carne moída. Comi bastante. E desci. Sentado no mesmo sítio, à espera do meu pai.

    zz - E então?

    J - Então chega o senhor Gaia e atira ‘ò neguinho, o que você está fazendo aí?’. E eu respondi que estava à espera do meu pai. E o senhor Gaia: ‘Seu pai? A essa hora já está no ônibus a caminho do Rio de Janeiro.’

    zz - Uiii.

    J - ‘O quê, você está louco? O meu pai nunca me iria abandonar.’ O senhor Gaia continuou a falar comigo como se nada fosse. ‘Pega a tua malinha, sobe as escadas e o roupeiro Otávio vai apanhar-te.’

    zz - Que remédio.

    qO meu pai largou-me na Vila Belmiro. Disse que ia tomar um café e fumar um cigarro, só o voltei a ver seis meses depois
    Juary
    J - Subi e vi o Otávio, que era gago e toda a gente sabe que um gago é mais gago ainda quando se enerva. À segunda pergunta, já ele estava a gaguejar. Demais. Às tantas, disse-me para ir ter com o Tião. Aí fui ter com ele e o Tião foi o meu anjo da guarda na Vila Belmiro. O meu pai deixou-me lá 6.ª feira e virei sábado, domingo. Na 2.ª, o senhor Olavo chamou-me e pediu-me o telefone de casa. No meu íntimo, pensei que fosse para o meu pai me apanhar na Vila Belmiro e levar-me de volta para casa. Aí dei o número todo contente. A resposta do senhor Olavo foi ‘vou ligar e pedir ao teu pai para mandar todos os documentos da escola. Você não vai mais embora, vai ficar aqui.’ Digo-te, fiquei triste. Sem exagero, chorei uns 30 dias. Todas as noites, chorava com saudades da minha mãe. Nunca tinha ficado longe da minha mãe. O máximo de distância entre mim e a minha mãe era ir dormir à casa dos meus avós, no mesmo terreno da nossa casa.

    zz - E telefone?

    J - Não havia ainda celular e não tinha fichas para o orelhão (telefone público). Uma noite, o Tião acordou e viu-me a chorar. Disse-lhe que estava com saudades de casa, que queria a minha mãe e queria voltar para casa. O Tião virou-se para mim e disse ‘tá louco, você já está aqui há um mês.’ Agora a história do porquê de o Tião ser o meu anjo da guarda.

    zz - Conta.

    J - Nessa noite, ele levou-me para fora do quarto e sentámo-nos numa bancada. Tudo escuro, noite. E o Tião pede-me para fechar os olhos. E eu fechei. Contrariado, mas fechei. ‘Você vê o quê?’ perguntou o Tião. ‘Já não via nada com a escuridão, agora então.’ O Tião continuou: ‘Continua de olhos fechados e agora imagina Santos Futebol Clube, clube do Pelé. Você faz parte do Santos, você pode virar profissional. O que é que você gosta de fazer? Você não gosta de estudar e os teus amigos lá do Rio estão quase todos a ir para o crime. Queres ir para o crime para dar condições à tua mãe, aquela a quem uma panela explodiu na cara.’ Aí, digo-te, a ficha caiu. E pensei: ‘daqui só saio quando virar jogador profissional’.

    zz - Nem sequer ias ao Rio de férias?

    J - Quatro meses depois, já tinha 15 anos de idade, o Santos deu-me três dias de folga. Cheguei a casa, dei um abraço aos meus pais e, lembro-me perfeitamente, a minha mãe deu-me um abat-jour com a imagem da Nossa Senhora da Aparecida. Depois desse dia, para ser sincero, só voltei ao Rio para enterrar a minha mãe e o meu pai.

    O momento em que Juary bate Pfaff em Viena ©Getty / David Cannon
     zz - Alguma vez te viram a jogar ao vivo?

    J - A minha mãe nunca me viu ao vivo, só pela televisão e também me ouviu pela rádio. Agora o meu pai viu, sim, e chegou a dar-me a faixa de campeão paulista 1978. Quando perdi a minha mãe, soube da notícia dentro do vestiário, em Goiás. Antes desse jogo, a minha irmã avisou-me por telefone do estado frágil da minha mãe e ainda pensei em visitá-la ao hospital, só que ela nada de me querer perto dela. Mais, vai ao jogo e faz golo para poder ouvir na rádio. Lá fui ao jogo. Estávamos a perder 1-0 com o Vila Nova e a jogar mal. Estou no vestiário com a toalha no rosto quando aparece treinador e vice-presidente do futebol. Mal cruzamos o olhar, eles baixam a cabeça. O sô Chico diz-me então que vou sair, substituição. Aí eu falei: ‘Eu? Não vou sair mesmo, sô Chico. Tem um monte pior que eu. Não vou sair. Se vocês querem falar que a minha mãe morreu, fala comigo agora, na cara. Não use o futebol para isso. O que ela mais pediu para mim foi que jogasse e marcasse.’

    zz - E?

    J - Não fui substituído e ainda fiz dois golos na vitória de virada por 3-1. Só depois é que fui para o enterro.

    zz - O seu pai cobrava muito do Juary?

    J - O meu pai foi ponta-de-lança e eu nunca consegui fazer metade do que ele fez. Ele ia ver os meus jogos. Quando marcava um ou dois golos, aparecia todo confiante ao pé dele.

    zz - E ele?

    J - Quando chegava a casa, ele dava no meio. Tuuuum. ‘Aqui não há pai para ninguém’. E dizia ‘se você fez cagada aqui, aqui e ali, imagina se fizesse bem, imagina a quantidade de golos seus’.

    zz- Pai é pai e vice-versa. Quando o Juary joga no Santos, é convocado para a seleção brasileira e joga com Argentina.

    J - Peguei Bolívia, Argentina e Paraguai.

    zz - É Telé Santana.

    J - Não, ainda é Cláudio Coutinho. Quando ele morreu é que entrou o Telê. A equipa era Leão no gol, Toninho, Amaral, Óscar e Júnior, Paulo César Carpegaini, Cerezo, Sócrates e Zico. Tita ou Zé Sérgio, Roberto Dinamite ou Palhinha. Eu estava no meio desse povo. Do outro lado, Maradona, Kempes, Tarantini, Olguin. Ganhámos 2-1 no Rio e perdi um dos golos mais incríveis da minha carreira.

    zz - Baliza aberta?

    J - Não tem como. Se batesse no meu traseiro, era golo.

    zz - Como é que foi?

    J - Bateu no tornozelo e foi parar na estação central do Maracanã. O Zico quase me mata. E eu: ‘Zico, me perdoa’. E ele furioso. Falei assim ‘Me perdoa, Zico, você joga no Maracanã todo o dia, eu estou lá em São Paulo pô.’

    zz - E o Zico?

    J - Riu-se.

    zz - Zico e Sócrates.

    J - Joguei com os dois. Com Sócrates no Santos, ele frequentou muito a minha casa e eu a dele. O Magrão só se prejudicou a si mesmo. Ele não precisava de se impor. Vou contar-te um episódio sobre essa capacidade de liderança.

    qO Artur Jorge chamou-me ao gabinete no dia seguinte e pediu-me desculpa por eu ter sido suplente contra o Barcelona
    Juary
     zz - Conta.

    J - Buenos Aires, ainda com a seleção brasileira. Estávamos no bar do hotel e entrou Cláudio Coutinho no hall, juntamente com o preparador físico e o Leão, goleiro. O Cláudio viu-nos e diz-nos que o ônibus sai a tal horas e o avião a tal horas. E remata ‘vou deixar o Leão aqui com vocês.’ E o Magrão [Sócrates] foi na hora: ‘Professor, aqui não, o Leão não faz parte desse grupo.’

    zz - Uisccchh.

    J - Logo a seguir, o Zico também diz ‘é, o Leão não faz parte’. O Leão seguiu então caminho com o Cláudio Coutinho e nós aí é que ficámos a saber da história. O Sócrates virou-se para o Zico e ‘ò Galo, tu sabe o que ele fez?’ E o Zico confirmou. Então o Sócrates contou a história. Diz ele assim: ‘No treino antes do jogo com a Argentina, na Gávea, campo de treinos do Flamengo, esse cidadão estava no gol quando nós ficámos a praticar remates à baliza. Atrás do gol, estavam alguns repórteres e esse cidadão vira-se para eles a dizer ‘como é que posso ganhar na Argentina com esses caras que não acertam nem o gol? Eu soube disso, o Galo também.’ Bem, virei fã do Magrão. Na hora. Ainda por cima, encontrei-o em Itália.

    zz - Ainda bem que falas da Itália. Antes ainda há o México. Como é que se vai do Santos para México e daí para Itália?

    J - O negócio é o seguinte. O Luis Vinício era treinador do Nápoles e liga para o Sérgio Clérice a dizer que Itália ia finalmente abrir as fronteiras para os estrangeiros [encerradas desde o Mundial-66 pela escandalosa eliminação na fase de grupos aos pés da Coreia do Norte]. O Luis disse que gostava de jogar fechadinho e precisava de um cara rápido. Aí o Clérice falou do Juary. O Luis não me conhecia, mas confiou no Clérice e mandou-o ficar de olho em mim. Acontece que a fronteira só foi reaberta no ano seguinte a essa conversa. Continuei então no Santos e fui vendido por 800 mil dólares para o Guadalajara. Dois anos de contrato. Cheguei em Dezembro e joguei até Junho. Acabou o campeonato e estava a fazer as malas para regressar ao Brasil, de férias.

    zz - O que vem aí?

    J - Chega o Nicola Gravina. ‘Posso beber uma cerveja?’ Era aquela, a Corona. Pega à vontade. Pegou uma, pegou duas, pegou três, pegou quatro. E arranjou coragem para falar e disse ‘preciso de um favor teu’. Ai é, qual? ‘Vem comigo à Europa, até à Itália. Estive à conversa com o presidente do Guadalajara e o treinador quer contratar um italiano. Está quase tudo certo e quer que você dê uma olhada para confirmar o valor do cara.

    Juary cruzou e o calcanhar de Madjer estava à espera
     zz - E o Juary?

    Nunca tinha ido à Itália, feliz da vida. Estamos a chegar ao aeroporto do Guadalajara e topo o homem do dinheiro do Guadalajara, o Félix Flores. O voo era Guadalajara-Cidade do México-Vancouver-Roma e começo a ver muita movimentação do Flores. Achei estranho e quis saber ao certo o que se passava. Então convida o Gravina para jantar e tomámos um vinho. Depois mais umas cervejas. Aí o cabelinho dele começou a cair e pensei ‘vai ser agora’. Falei assim ‘não sou treinador, não sou director de futebol, o que você quer de mim?’

    zz - E o Gravina?

    J - ‘Sabe voar? Pára-queda não tem. Você está vendido, estamos a ir para Roma e vamos para o Avellino. O homem vendeu-te por um milhão de dólares. O Félix está aqui para pegar o dinheiro.’ Fiquei assim ò [Juary estica os olhos] Quando cheguei a Itália, fomos de Roma para Avellino de carro. Chegámos lá e o presidente do Avellino a olhar para mim, a perguntar-me se era jogador da bola. Às tantas, ameaçou o Luis Vinício e disse mesmo ‘se ele não der certo daqui a seis meses, chuto você e ele ao mesmo tempo’.

    zz - E que tal?

    J - Fui para o retiro, nunca tinha feito uma pré-época na vida. Falhei os dois primeiros jogos para a Coppa. Só me estreei à terceira, com o Catania, e fiz um dos golos mais bonitos da minha vida. Acho que ganhámos três ou quatro a um. Até ali, morava no hotel, estava ruim de encontrar apartamento e falhava o treino se o motorista não me apanhasse. Depois do golo ao Catania, na terça-feira, já tinha carro novo, apartamento novo. Ahahahahah.

    zz - Foi um golo mesmo bonito?

    J - Foi uma diagonal da esquerda para a direita, driblei três adversários mais o goleiro. Ficaram doidos.

    zz - E depois foste para o Inter?

    J - O Inter queria o Schachner, do Cesena. Só que o Torino se adiantou e levou o Schachner. Aí fui eu para o Inter, que era presidido pelo dono da Misura, patrocinadora oficial das camisolas do Inter. Nesse ano do Inter, tive um problema: nasceu a minha filha Marcela, que não conseguia dormir cedo e quase não ficava com a mãe. Então era eu que tinha de ficar com ela, virei babysitter com mamadeira e tudo. Como ia treinar de manhã, nunca consegui render. Não podia, né?

    zz - Brincadeira?

    J - Éééééé. No ano seguinte, vou para o Ascoli e sou treinado pelo [Carlo] Mazzone. Tenho muitas histórias com o Mazzone, era um paizão. Na Coppa, em Agosto, ficámos à frente do nosso grupo [quatro vitórias, um empate]. Jogávamos muito. Aí começou o campeonato e pegámos a Juventus, em Turim, na primeira jornada. Nós estávamos cheio de moral, ganhámos à Fiorentina, ao Como e tal e tal. Ainda por cima, a Juventus só começa a jogar à bola a partir da 5.ª jornada. Durante a semana, o Mazzone treinou misto: zona, homem, zona, homem. No dia do jogo, no vestiário, o Mazzona pergunta aos jogadores ‘vocês é que decidem, olha só o onze da Juventus: Zoff, Gentile Brio Scirea e Cabrini, Furino Tardelli e Boniek, Causio Rossi Platini. Como é que querem jogar?’ E nós respondemos à zona. ‘Vocês têm a certeza?’ À zona, vamos rebentar com eles.

    zz - E rebentaram?

    J - Rebentámos, nada. Resumindo, 5-0 no intervalo. Entrámos no balneário e o Mazzona lá sentado, à nossa espera. ‘Mister, vamos jogar ao homem.’ E ele ‘o quê, homem? Nããããã, vocês assumiram e vamos até ao final.’

    zz - Acabou quantos?

    J - Sete-zero. A meio da primeira parte, dizia ao Michel para dar um tempo. E o Platini ‘eu não quero correr, o Rossi é que quer.’ Nunca mais jogámos à zona, sempre ao homem. E não perdemos para a Juventus na segunda volta [0:0].

    zz - Depois Cremonese.

    J - Em Janeiro. Depois Porto, em Agosto 1985.

    zz - A estreia é com o Benfica.

    J - Quando o Eurico fratura a perna, num lance com o Nunes.

    zz - E demoraste quatro minutos a marcar, ao Bento.

    J - Isso mesmo, até eu fiquei espantado. As pernas tremiam nesse dia e nem esperava ser titular nesse dia.

    zz - A pré-época não correu bem?

    J - É assim: caí numa equipa montada há quase dois anos, desde a derrota da final da Taça das Taças com a Juventus em 1984. Nunca esperei chegar e jogar.

    zz - Lembras-te bem desse golo?

    J - Sinceramente, não. Talvez uma bola lançada pelo André e eu entro para dar um tapa na bola.

    zz - E vivias onde?

    J - Hotel Batalha.

    zz - E conhecias alguém?

    J - Não conhecia ninguém no plantel. Nem o Celso, que conheci no hotel.

    zz - E como foste parar ao FC Porto?

    J - Ligaram-me para casa à noite a pedir para ir à sede do Inter e, para falar verdade, a minha cabeça estava mais para o regresso ao Brasil, porque não tinha nenhuma proposta de Itália. Nessa noite, conheci o Luciano D’Onofrio que falava meio belga, meio português. Era um cara mandatado pelo FC Porto, por Pinto da Costa. De verdade? Nunca tinha ouvido falar do FC Porto nem de Artur Jorge. Tudo bem, sem problema. O Luciano fez a proposta inicial. Olhei e disse ‘ó, vai fazer difícil, quero voltar para o Brasil. Esta é a proposta definitiva? É que eu quero x e você está a dar-me y.’ O Luciano ficou então de falar com o Pinto da Costa para me responder no dia seguinte.

    zz - E foi assim mesmo?

    J - No dia seguinte, recebo outra chamada para ir à sede do Inter. Morava no lago de Como e ainda era uma viagem de uma hora de carro. Dei de caras com o presidente do Santos e o Juan Figger. O presidente do Santos anuncia o seu interesse em levar-me de volta, até porque tinha sido uma promessa na sua campanha eleitoral.

    zz - E o Juary?

    J - ‘Ah presidente, não vai dar não. Se você tivesse falado ontem, agora já dei a minha palavra ao Luciano.’ E o Milton a perguntar-se ‘quem é o Luciano?’ Expliquei quem era e por quem estava mandato. O Figger, que até então estava calado a fumar um charuto, só diz isto: ‘ò Milton, nem continue; conheço o Pinto da Costa e é um homem sério, honesto, se fala que é não, é não mesmo, se é sim, é sim para valer.’ O Milton afrouxa e pede-me boleia para a Suíça. Claro que sim, dou-lhe carona até à divisa [fronteira]. Nessa noite, ainda passei por casa de amigos e só cheguei a casa mais tarde. Foi aí que me falaram de imensas chamadas perdidas de um tal Juan Figger. Liguei para o hotel do Figger e ele me informou da prisão do Milton.

    zz - Como é que é?

    J - Ahahahahahah. O Milton Teixeira tinha sido preso por não ter declarado 30 mil dólares. Quando saiu da Itália para entrar na Suíça, os caras na fronteiras pegaram o Milton com 30 mil dólares no bolso. No bolso. Se eu soubesse, ahahahahah.

    zz - Chegaste aqui ao Porto, Hotel Batalha e mais?

    J - Fiquei uns 10/15 dias e fui muito bem tratado. Conheci a grandeza do Porto, conheci as Antas e pude constatar o crescimento do clube como força nacional, ao lado do Benfica. Na minha opinião, o FC Porto já passou o Benfica a nível internacional.

    zz - A primeira experiência internacional é com o Ajax, certo?

    J - Ganhámos 2:0 nas Antas e defendemos a vantagem em Amesterdão. E acontece uma coisa estranha.

    zz - Qual?

    J - Quando chegamos ao estádio, uma hora antes do jogo, já os jogadores do Ajax estavam equipados a rigor. Digo-te uma coisa, foi dos melhores times que vi jogar na vida. Passámos um sufoco, ai passámos passámos. O Cruijff levantava do banco, não gritava nem nada, só assobiava e eles mudavam o seu jogo. Atrás era o Menzo, à sua frente o Koeman. E depois todos lá à frente, de um lado para o outro. O Zé Beto pegou tudo, das melhores exibições que vi alguém fazer.

    zz - A sério?

    J - O que o Zé Beto não pegou, foi à trave. Juro. Eliminamos o Ajax, tranquilo. E agora? Barcelona.

    zz - Primeiro é onde?

    J - Lá, Camp Nou. Sofro penálti e o juiz não dá. E ainda me anulam dois golos. Perdemos 2-0.

    zz - É um resultado que dá esperança para a segunda mão?

    J - Esperança, esperança, esperaaaaaaança, lá no fundo a gente sabia que o negócio era complicado. Podíamos vencer o jogo e íamos fazer tudo por isso, agora virar a eliminatória?! Chovia, chovia, chovia. Fui para o banco e estava mais nervoso do que se estivesse dentro de campo. Faltavam 40 minutos e o Artur [Jorge] mandou-me aquecer. Entrei a meia-hora do fim. Fiz um, fiz dois. No 2:0, você já [Juary mexe as mãos como quem diz ‘vamos lá ver o que isto vai dar’]. Aí você toma um golo do Archibald e foi uma ducha de água fria. Ainda fomos para cima deles e fizemos o 3-1. Se o jogo tivesse mais dez minutos…

    zz - Hat-trick como suplente é de homem.

    J - O Artur chamou-me ao gabinete no dia seguinte e pediu-me desculpa.

    zz - Porquê?

    J - Diz-me ‘se eu soubesse que estavas assim, metia-te de início.’ Ahhhh, deixa para lá. Alegria pelo hat-trick? Claro. Tristeza pela eliminação? Muita. Até porque não foi uma eliminatória de igual para igual, porque você foi prejudicado em Camp Nou. Mas ali, nesse 3-1, que nasce o espírito e a confiança para a conquista de 1987. Se você faz um jogo para ganhar em Camp Nou e quase vira a eliminatória nas Antas, podemos sonhar alto.

    zz - Ainda por cima, o FC Porto reforça-se. Mlynarczyk em Janeiro de 1986.

    J - E Madjer.

    zz - Poizééééé, Madjer.

    J - Demos um salto de qualidade. A gente via o Madjer a fazer coisas nos treinos e pensávamos ‘esse cara é de outro planeta’’. Querendo ou não, o jogador analisa muito. Aí começamos a ver os nossos companheiros e pensamos: Madjer era o Pelé da Argélia. No outro lado...

    qO Futre voava, mas para treinar ele só arrumava confusão. Voltas ao relvado? Metia-se dentro do blusão a resmungar
    Juary
     zz - Futre.

    J - O Paulo voava. Agora não bota o Futre para treinar que ele vai arrumar confusão. Só diz para ele ‘joga e divirtar-se.’ Atenção, ele gostava de colectivo a dois toques. De resto, tudo o que fosse voltas ao relvado e coisas assim, metia-se dentro do blusão a resmungar. Lá atrás, Josef. Com todo o respeito pelo Zé Beto, que era bom demais, sobretudo debaixo dos paus. À direita, João Pinto. À esquerda, Inácio. No meio, Lima Pereira e Eurico. Aí Eurico lesiona-se e entra o Celso. E ainda há Eduardo Luís e, a subir, Festas. O Lima, se precisasse, batia de mão. Não batia com o pé, era mesmo com a mão.

    zz - No meio-campo

    J - André, Frasco, Quim, Jaime Magalhães, Sousa, Jaime Pacheco. No ataque, Gomes, Elói. Rui Barros a aparecer, Domingos a aparecer.

    zz - E o Juary?

    J - Era reserva do Gomes, reserva de um dos melhores goleadores do clube, de Portugal, reserva do bibota de ouro. A grande sabedoria do Artur Jorge e do Pinto da Costa foi construir um plantel completo, com dois grandes jogadores para cada posição. O Artur podia fazer um onze num jogo e outro diferente no outro, o resultado era o mesmo. A grande arma do time de 1987 foi a união. Fomos campeões europeus porque éramos um grupo de amigos.

    zz - O Juary marca dois golos nessa campanha europeia. O primeiro ao Bröndby, ao Schmeichel.

    J - Pegava muito, hein?

    zz - Num campo impróprio.

    J - Gelo, neve. Tínhamos de usar chuteiras de lava. E corríamos em bicos de pés. Dentro da tristeza, nasce a alegria.

    zz - Porquê a tristeza e a alegria?

    J - Porque o Casagrande se lesiona, ainda por cima num dos primeiros jogos a titular na UEFA. De repente, você vê o Casa a sair com uma contusão daquelas e imagina ‘será que temos o Casa na final, porque já não dá na ½ final.’ Ninguém gosta de substituir alguém desse modo. Entrei na primeira parte e marco o 1:1. Depois, só volto a marcar na final.

    zz - Com o Bayern, o Juary faz o 2:1 golo e ainda a assistência para o 1:1.

    J - Há muita coisa para contar antes disso. Você tem um Frasquinho que entra muito bem em campo, foi primordial. O baixinho agarrava na bola, rodava para lá, rodava para cá e ninguém conseguia tirá-la. É a sabedoria do Artur, lá está. Ele sabia que o Frasquinho entrava e dava um acrescento à equipa. Antes do Bayern, ainda há o Dínamo Kiev.

    A alegria do Menino da Vila com o golo na final de 1987
     zz - É verdade.

    J - Quando o sorteio da ½ final dá Real vs Bayern e Dìnamo vs FC Porto, as pessoas falam de Dínamo vs Real na final. Só que nós fomos lá e eliminámos o Dínamo. Cá, 2:1. Lá, 2:1 com 100 mil pessoas a gritar o tempo todo uma coisa que ninguém entende, e ainda bem que não entendíamos, ahahahah.

    zz - E ainda bem.

    J - Éééééé. O Lobanovski passava o jogo inteiro sentado no seu lugar sem se mexer. Eliminamos o Dìnamo em Kiev e a nossa curiosidade era saber o que tinha dado no outro lado. E o que deu? Bayern. Eeeeeeee.

    zz - Porquê?

    J - Ah, queria o Real. O Bayern é que não, caramba, não tem jeito. Vai ser um mês de sofrimento. E nunca ouvi falar tanto do Bayern.

    zz - Viram vídeos do Bayern?

    J - Muitos.

    zz - Já havia essa cultura?

    J - Jáááá. Chegámos em Viena na 2.ª feira de manhã. Hotel, chave do quarto, televisão. Sempre gostei de ver televisão. Não gosto de sair muito, só se for em turismo para conhecer igrejas e tal. Ali não dava, né? Ligo a televisão e, taaau, jogo do Bayern. Pensei que fosse normal, estava em Viena, fronteira com Alemanha. Mudo de canal, taaau, jogo do Bayern. Outro canal, taaaau, jogo do Bayern.

    zz - Caraca.

    J - O que é que o Artur Jorge fez? Naquele andar dos quartos dos jogadores, só tinha jogo do Bayern em todos os canais da televisão. Uns 200 canais e todos a dar o Bayern. E isso já vinha de trás. Quando soubemos do Bayern, o Artur mandou o Octávio ver o Bayern e deu goleada. Claro, era o Bayern. Quando o Octávio regressou ao Porto, perguntámos-lhe. ‘E Octávio, como é que foi lá?’ Não tem jeito, foi 5-0. ‘Nem uma chance?’ Não, é melhor se preparar, o negócio vai ser feio.

    zz - Eischhhh.

    J - Quinze dias depois, foi o Artur à Alemanha para ver o Bayern. Outra goleada. E a mesma cena: ‘E aí mister?’ Não tem jeito, não tem jeito, os gajos isto, os gajos aquilo. O João Pinto era o único a desvalorizar, a dizer ‘a gente chega lá e muda isso e tal’.

    zz - Viena, 27 Maio.

    J - Na primeira parte, não jogámos nada. Mérito do Bayern pelo aproveitamento nas oportunidades: dois remates, um golo.

    zz - E o golo nem foi uma jogada trabalhada.

    J - Isso, o lance do golo é casual com aquela cabeçada do Jaime Magalhães. Mérito do Bayern também pela defesa na marcação ao Sousa. Não o deixaram sair com a bola para as transições para o Futre e o Madjer. E nós muito nervosos, jogámos muito abaixo do que sabíamos.

    zz - Ao intervalo, 1:0. O Juary foi ao balneário?

    J - Todos iam, era assim sempre.

    zz - Quem eram os suplentes?

    J - Zé Beto, Festas, Frasco, eu e Casagrande. Até mesmo os lesionados foram, estilo Jaime Pacheco. O Artur ficou lá fora, com Octávio e João Mota. E nós à espera de uma dura, até porque o Bayern estava a ganhar em todos os aspectos, entre bolas divididas, jogadas de corpo a corpo, velocidade de reacção. Estávamos à espera que o Artur rebentasse.

    zz - E como é que foi?

    J - O Artur entra e transforma o time sem grito, nunca vi uma coisa daquelas. Quando começa a perguntar a idade de cada um, ninguém entendeu nada. Quando chegou a vez dele, disse ‘eu tenho 45, é a primeira e única oportunidade para entrar na história do futebol mundial. Porque ser campeão português nem é preciso se preocupar, vocês vão ser muitas vezes, agora o título europeu... então voltem lá e joguem aquilo que sabem. Sai o Quim, entra o Juary.’

    zz - Qual foi a reacção?

    J - Ficámos a olhar uns para os outros e a dizer ‘agora vamos rebentar com esses caras’. Eles do Bayern não entenderam nada. Se você vir a segunda parte inteirinha, vê que eles olham um para o outro, sem entender nada, como quem diz como é que esta equipa está assim. Quando lhes caiu a ficha, já estava 2:1. Bye bye. Aí podia vir toda a Alemanha, o FC Porto não ia tremer.

    zz - O 2-1 é uma jogada estudada.

    J - Em cinco jogadas dessas, o Madjer driblava para dentro ou para fora umas três. Quando a coisa estava feia, a gente gritava mesmo mete a bola no argelino ou no Futre. Já tínhamos noção de que eles iam resolver a parada. O Madjer fazia muito isso no treino, é um lance rápido e dinâmico. Quando ele faz a finta, já olha para o meio. Levanta a cabeça e torna a baixá-la. Ele já sabia que alguém ia entrar, fosse o Paulo [Futre] ou eu. Quando a bola sai do pé dele, quero meter a cabeça. Só que a bola desceu e aí meti o pé. Saí-me bem.

    zz - O João Pinto foi o dono do pedaço, quando é que o Juary tocou na taça?

    J - Só toquei na taça dentro do avião. Recebi a medalha no relvado e fui embora para o vestiário. Tomei banho, vesti-me e fiquei à espera de toda a gente. ‘Vamos, vamos, vamos para o Porto.’. Não sentei se fiquei anestesiado com a conquista, nunca pensei que ia participar numa final europeia, quanto mais ser protagonista. No avião, todo o mundo com a taça e acho que foi o Celso a dirigir-se a mim ‘você é campeão europeu e fez o golo da vitória, parabéns’.

    zz - E cá, no Porto?

    J - Levámos três horas do aeroporto para as Antas. Três horas é exagero, mas foi muito tempo. Lembro-me que cheguei a casa às sete da manhã.

    zz - Como é que um plantel funcionava, havia um polaco, um argelino, alguns brasileiros.

    J - Josef falava pouco. Treinava muito e falava pouco. Até falava pouco nos jogos. O Madjer falava um misto de francês com argelino e português. A gente pegava no pé dele, sempre a chamá-lo de gringo e tal. Quando ele se virava contra nós, cuidado com ele. O plantel funcionava porque éramos todos amigos e convivíamos em equipa. Nada de pensar em si e tal. Todos pensávamos em nós e todos queríamos estar juntos, fosse para tomar café, para almoçar. Isso ajudou muito, criou uma família. Além disso, a tua preocupação era o campo, só o campo. Não havia preocupações de extracampo. Quem criou isso foi uma equipa com Pinto da Costa, Artur Jorge, Octávio, Reinaldo Teles e Teles Roxo. Eles criaram todo esse mundo e levou-nos às conquistas inéditas. O indivíduo nunca foi superior ao colectivo.

    zz - E havia choques no treino?

    J - Se houvesse alguma confusão no treino, e brigávamos muito, tapa na cara até, resolvíamos as coisas no balneário. Se houvesse discussão na 4.ª, íamos almoçar juntos na 6.ª com o assunto resolvido. A tática era ‘roupa suja lava em casa’. Perguntam-me se o Sérgio Conceição é um grande treinador. Isso não sei, não acompanho o dia a dia, não vejo os jogos todos. Agora que é um grande motivador, isso é indiscutível. O balneário é dele. Se ele bater com a cabeça na parede, todos os outros também batem. Para mim, o futebol é grupo. Você pode ter os melhores do mundo e então? Dou um exemplo, Paris SG. Tem Messi, Mbappé, Neymar, o goleiro da Itália, Marquinhos e como é que funciona o balneário? Estará todo o mundo na mesma direcção? Nós, no FC Porto, eliminámos Dínamo Kiev e Bayern.

    zz - Onde anda a camisola dessa final?

    J - Não tenho nenhuma camisola guardada. No dia seguinte a Viena, deixei-a na Capela Santa Maria Adelaide [Arcozelo]. Já tinha feito a promessa: se fossemos campeões, deixaria lá. Acredito que continue lá.

    zz - E a medalha?

    J - Acompanhou-me durante muitos anos. Em Santa Catarina, no Brasil, quando dirigia o Clube Atlético do Vale, encontrei umas pessoas bem simpática e o senhor Raúl era um torcedor do FC Porto. Quando me pediu a medalha, dei-lhe na hora. Sempre fui assim, de dar. E agora já sou cobrado pelas minhas netas, que querem camisolas do FC Porto.

    zz - Só mais uma pergunta: em Viena, o Juary é apanhado na sauna no dia da final.

    J - Demorou, tinha de tocar nesse assunto. Esse episódio é engraçado. Lesionei-me no tornozelo contra o Boavista, nas Antas [26 Abril, a um mês da final], e vinha a fazer tratamento com infiltrações em cima de infiltrações. Tinha de chegar à final. No dia do jogo, há o lanche. Lanchámos e depois voltámos para o quarto. Mas já estava farto de estar quieto ou a ver o Bayern na televisão. Então decidi dar uma volta. Já não sei quem estava comigo no quarto, mas nem quis saber das suas perguntas. Saí e desci. Cheguei lá abaixo e vi uma placa em alemão. Se já lia mal português e nunca falei inglês, imagina ler alemão. Vi o desenho na porta e passou uma moça bonita. Entrei, e era uma sauna mista. Mal abri, fechei a porta e voltei para trás. Quando faço a curva para voltar ao quarto, vi o Octávio.

    zz - Ahahahahah.

    J - Você já viu um preto ficar branco? Fui eu. Justo o Octávio. Podia encontrar tanta gente. ‘Vamos ver o Artur, tu és um irresponsável.’ Chegámos ao quarto do Artur, a televisão ligada no Bayern e ele espantado. Eu de cabeça baixa, a tentar encarar o Artur. Acho que ele foi buscar a oitava geração dos meus pais. Pá, pá e pá. Queria explicar e ele ‘tu não falas nada, fica quieto’. Às tantas, ‘chama o Jorge’. Eisch, vou pegar na mala e volto para o Porto. O Octávio sai do quarto para encontrar o Pinto da Costa. Aí o Artur esfria a cabeça e contei a história.

    zz - E o Artur Jorge?

    J - Nem me fales nada. O Pinto senta, o Artur conta e o Octávio confirma. De repente, o Pinto da Costa pergunta: ‘ò Artur, pára um minuto, você conta com este gajo para o jogo desta noite?’ É claro que que conto. ‘Então faz o seguinte, ninguém vai saber de nada e, depois do jogo, decido a vida dele.’ É que a história contada até parecia, desculpa a expressão, que estava cagando e andando para a final; nada disso, era só a tensão, faltavam quatro horas para a final.

    zz - E nunca mais se tocou no assunto?

    J - Nunca mais e, às vezes, o Pinto da Costa até brincava comigo, estilo ‘salvei-te a pele’. A verdade é esta, a minha carreira é dividida em dois estádios: antes e depois do Santos, antes e depois do FC Porto. O Santos permitiu-me criar a situação de jogar numa equipa onde nunca sonhei e o FC Porto deu-me condições de até hoje, 35 anos depois, continuar no coração dos adeptos. São duas etapas.

    zz - E ainda há uma terceira etapa, o Juary não foi o último companheiro de ataque do Pelé?

    J - Éééééé, 1977, Nova Iorque, Santos vs Cosmos

    zz - Nunca tinha jogado com ele?

    J - Nunca. E nem era para jogar, tanto assim que tive de ter autorização dos meus pais para viajar porque só tinha 18 anos. Jogámos primeiro em Seattle, depois Detroit e finalmente Nova Iorque. Nos dois primeiros jogos, comecei a titular. Em Nova Iorque, fiquei no banco e o titular foi o Reinaldo. Entro ao intervalo, lançado pelo Otto Glória. E estou a fazer contas de cabeça. Um dois quatro oito dez. Só há dez jogadores em campo, vamos jogar com dez? Porra, falta um. Aí apagam as luzes do estádio e lança-se um foco em cima de alguém. Esse foco vai até ao meio-campo, onde eu estou à espera.

    zz - Pelé?

    Pelé. A bola era amiga, irmã dele, sei lá. Fiz uma jogada, domino, jogo com ele e o Pelé segurou. Quando vejo que não vai dar de primeira, desisto da jogada. Às tantas, já eu estava de costas para a baliza, ele dá um tapa na bola com a perna esquerda. Bem, o Pelé chamou-me de tudo: ‘Tu é burro, é moleque que não sabe jogar à bola.’ Ele era fera até para xingar. Fiquei quieto.

    zz - Até quando?

    J - Pouco depois, há uma falta sobre o Bianchi e o jogo pára. Passo pelo Pelé e falo com ele: ‘Ó Rei, me perdoa, eu te toquei e, se tu me devolve, ficava na cara do golo.’ Pergunta dele ‘e tu não viu o Beckenbauer?’ Hein? O Beckenbauer. ‘Como é que você viu?’. E o Pelé: ‘Bastava ver por cima do ombro.’ Só para ver: qualquer jogador dava um tapa na bola e a jogada perdia-se. Como era o Pelé e ele viu o Beckenbauer a aparecer, preferiu esperar e só me deu a bola quando viu o Beckenbauer a meter o pé de apoio.

    zz - …

    J - Tenho outra história com o Pelé. Uma vez, estávamos para ser campeões paulistas e o sô Chico marcava os treinos para as 3 da tarde. Eu costumava chegar ao campo às 15 para as 3 com um pessoal e ficávamos a bater um papo na bandeirola de canto. Um certo dia, vimos um vulto lá ao fundo a correr. Quem será a uma hora dessas, e eram uma 14 e 15.

    zz - Quem?

    J - É o Pelé, de férias no Cosmos. Passou por nós, ‘e aí molecada?’ Vamos para o balneário e perguntámos ao roupeiro Sabu a que horas tinha chegado o negão. E ele disse-nos uma e meia, ‘depois de me ligar para casa’. Nós terminámos o treino às quatro e meia e o Pelé ainda andava a treinar. No outro outro dia, perguntei ‘ò Rei, ainda tem vontade para treinar?’

    zz - E a resposta?

    J - ‘Devo tudo o que tenho ao meu físico. Enquanto puder, vou treinar sempre.’ Passei a treinar com ele. Disse-lhe mesmo ‘se tu chegares às 10, eu chego às 9 e 30. Enquanto estiveres no Brasil, treino contigo.’ Estamos a falar de Pelé e ele não via a hora de começar. Hoje em dia, há miúdos que não vêem a hora de acabar o treino. E, às vezes, a culpa nem é a molecada. É do pai, do empresário. Hoje em dia, a molecagem acaba o treino e vai sacar o telemóvel junto do banco de suplentes para postar fotografias e tal. O futebol já não é como antigamente, hoje é mais profissional, profissional demais. Olha, faço parte de um programa de televisão chamado ‘Baixada Esporte’ e um dia debateu-se entre Messi e Ronaldo. Para mim, é impossível comparar. Um é jogador de futebol, Messi. E outro é profissional, Cristiano. O Cristiano é o que é pelo profissionalismo, um profissional exemplar. O Messi podemos compará-lo a Maradona, o Maradona nunca foi profissional. O Cristiano é a prova de que, se fores profissional, podes chegar lá. Digo aos meus meninos, não queriam ser Messi, queiram ser Ronaldo. O Messi joga mais dois anos e o Cristiano, se continua assim, mais três ou quatro.

    zz - Obrigado por ter sido o primeiro convidado

    J - Obrigado eu, tomei duas horas do teu tempo. Ahahahahah.

    Brasil
    Juary
    NomeJuary Jorge dos Santos Filho
    Nascimento/Idade1959-06-16(64 anos)
    Nacionalidade
    Brasil
    Brasil
    PosiçãoAvançado (Ponta de Lança)

    Fotografias(4)

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