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    Na Minha Secreta Área
    Luís Rocha Rodrigues
    2020/01/17
    E0
    O Na Minha Secreta Área é um espaço de opinião do jornalista Luís Rocha Rodrigues. Nas gavetas, há sempre um bloco de notas e uma caneta para se anotar o futebol.

    Poucas são as vezes em que deve, ao jornalista, sobressair a emoção. Menos ainda são as ocasiões em que a vida pessoal deve ser misturada com a profissional. Permitam-me, porém, abrir esta exceção, que acontece porque há toda uma relação com o futebol, se bem que vos quero falar de relações humanas, de família.

    Há uma semana, faleceu o meu avô. Momento duro, pesado, de reflexão e de memórias e mais memórias. Andei este tempo à procura do pretexto para escrever sobre ele e sobre o que dele extraí. Porque foi realmente muito. Muita bola. Estaria a ser manifestamente exagerado se dissesse que a ele devo o gostar de futebol. Não foi exclusivo, até porque o filho dele (ou meu pai, como preferirem) teve tanta ou mais dose de culpa, só que a forma de estar e de apreciar foi e é, para mim, uma eterna referência.

    Porque o escrevo agora? Faço-o ao ver o desfecho do último jogo dos quartos de final da Taça de Portugal. Segue o Académico, o Académico dele, que tantas vezes o fez percorrer tantos quilómetros para ir, de motorizada, ao Fontelo. Nos tempos áureos, de primeira divisão incluída. Não me chegou a levar, não cheguei a tempo e a saúde não lhe permitiu continuar naquelas romarias solitárias desde São João da Serra (não conhecerão, pois claro que não) até à terra de Viriato. Mas contou-me as aventuras, como qualquer avô saudosista, perante o meu constante interesse. Parecia sempre a primeira vez de tanta história repetida, soletrada com a sua paixão própria.

    Ora, ele ia gostar de estar lá, de ver esta página mágica dos seus dois clubes - sim, mesmo não sendo o líder da claque, também gostaria do embate contra o FC Porto. Porque no seu coração cabiam ambos. Gostaria que passasse o Académico, é a minha aposta. Pois ainda mais gostaria de estar no Jamor, a ampliação do seu Fontelo.

    Há um aspeto mágico a reter de todas as vezes que falei de futebol com o meu avô: nunca me falou mal de um clube rival. Ou, pelo menos, não o suficiente para que ficasse em mim alguma memória sobre isso. Há também outro aspeto importante: nunca me falou de Cruyff, Telê Santana ou Helenio Herrera. Não era estudioso nem um analista vanguardista de futebol. Mas sentia-o de forma genuína e isso chegava-me. Chegava para vermos, nos serões de sábado, os jogos do campeonato espanhol (aquele Ronaldo em Barcelona...), nas tardes de domingo o apogeu dos grandes de Roma, nos píncaros da sua rivalidade, nas horas livres da semana as VHS com jogos aleatórios, no mesmo sofá onde nos encostávamos nas tórridas tardes de verão para ver ciclismo. Chegava para me enternecer quando contava a história do seu conterrâneo Rui Filipe e o seu trágico acidente. Chegava para se deliciar com Figo, para aplaudir Fernando Couto ou para gargalhar com Bobby Robson.

    Não era, porém, apenas uma relação distante, resumida ao televisor ou ao diário jornal - tão instituída estava a prática do “comprar o jornal para o avô” que lho levei para o dia do adeus. Era muito próxima. Lá, no seu cantinho escondido nas margens da Serra da Freita, foi dos maiores dinamizadores do clube da terra. Marcou o campo, deu boleias, treinou-os (sem influência Cruyff, garanto), ofereceu-lhes refeições e mais refeições, na sua própria casa. Como o fez outrora com praticantes de atletismo.

    É óbvio que não terão ouvido falar, exceção para os que por lá passaram. Mas há, por esse país fora, muitos avôs destes, desconhecidos, dedicados, genuínos e desvinculados dos tempos modernos, onde o consumo futebolístico é muito maior e mais diversificado. Não precisarão esses avôs de desenvolver conhecimentos ou ler a história do fenómeno, os pensamentos que mudaram o jogo ou as infindáveis histórias mediáticas. Porque são eles mesmo que criam as suas histórias, próprias de um jogo que nunca deixará de ser do povo.

    O Norberto era também assim, do povo. Até sempre, avô... 



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