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    Pavão: anatomia de uma morte no Estádio das Antas

    Texto por Pedro Jorge da Cunha
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    Bailado negro, iconografia da morte. Encenação sórdida, Pavão de braços abertos, o estilo de sempre, marca registada. O passe certo para António Oliveira, um «vai, miúdo!», o último suspiro.

    Desamparado, caído de bruços, o coração parado. Conjugação maligna, esse maldito minuto 13 da jornada 13, 16 de dezembro de 1973. O zerozero revisita a fatalidade, evoca a personagem Fernando Pascoal Neves, transmontano de sorriso fácil e convicções inegociáveis.

    A morte sai à rua, bate à porta das Antas e ceifa a vida do médio. Um médio de excelência, seis vezes internacional por Portugal, atirado para as trincheiras do Fim.

    qSe houvesse alguma zanga no lar, algo normal entre gente jovem, o Pavão entrava e acabava tudo. Tinha uma aura, um poder total sobre os colegas. Se eu tinha algum problema, era com ele que eu ia ter.
    Leopoldo, ex-colega no FC Porto
    Bancadas a abarrotar, qual arena de castigo romano, um mar monocromático de guarda-chuvas e olhos a espreitar a tragédia.

    Pavão, de dragão ao peito, é assistido, retirado de maca e transportado para o Hospital de São João. O movimento do povo é impressionante, uma procissão ainda de fé até às portas da unidade clínica.

    Ao cair da noite, a notícia mais temida: Pavão está morto!

    Dois dias depois, 18 de dezembro, as cerimónias fúnebres juntam o mundo portuense e portista ao do desporto nacional. Eusébio da Silva Ferreira é uma das milhares de visitas (a imagem do seu olhar sobre o féretro é marcante).

    O país chora, lágrimas justas. Pavão é sepultado no Cemiterio de Agramonte, desce à terra e descansa entre Pinga e Artur Mesquita, no Mausoléo das Glórias Portistas.

    O mais negro dos dias azuis e brancos.

    O FIM - «Era cuidadoso, não bebia e não fumava»

    Tarde cinzenta, a anunciar a tormenta, tons a contrastar com um momento feliz no FC Porto. No campeonato a equipa segue relativamente bem, após uma derrota no Restelo a arrancar e igual desfeita na Luz à jornada 8.

    Duas vitórias consecutivas (Olhanense e Barreirense) e o anúncio da contratação do extraordinário Teofilo Cubillas mudam os humores azuis e brancos. O título deixa de ser uma miragem e a visita do forte Vitória de Setúbal é um convite a encher as Antas.

    Pavão está lá, sempre titular, posto de comando. «Fiz o aquecimento perto dele, estava bem disposto. A única coisa que me lembro de ouvir de diferente foi isto: 'tenho de trocar de chuteiras'.»

    A primeira memória surge da boca de Leopoldo Amorim, colega de quarto no lar do FC Porto e camarada de balneário.

    Pavão carrega a braçadeira, faz o cumprimento da praxe a Carlos Cardoso, homólogo sadino, e o jogo arranca. Nada de estranho, nada de anormal.  

    «Bobby Charlton e Pavão: o futebol é fácil» @FC Porto
    «Eu comecei no banco de suplentes. Tive logo a noção de que era muito sério. O Pavão não era de fitas. Podia ter alguma lesão, mas nunca ficava caído no chão. Ao vê-lo deitado daquela forma, no relvado... assustei-me.»

    Firme, corajoso, Pavão só não joga «de perna partida». E mesmo assim...

    «Em Nantes, num jogo com neve, partiu a cana do nariz e jogou até ao fim. Recusou sair. Não ficava no chão por razão nenhuma, por isso senti que era mesmo grave.»

    Mais acima, sentado no camarote 14, está Domingos Gomes. O histórico médico ainda não desempenha funções formais no FC Porto, mas já colabora com o departamento médico. Nesse dia, é apenas mais um adepto em choque.

    «É só em 1977, quatro anos depois, que eu levo o primeiro desfibrilhador para o FC Porto», conta ao zerozero, como quem ainda quer fazer algo para ajudar Pavão.

    «Um objeto pesado, enorme, ainda está no museu do clube. Se em 1973 o aparelho já estivesse em funcionamento, as probabilidades de recuperar o atleta teriam sido claramente superiores.»

    O socorro chega através das mãos de Rodolfo Reis e, segundos depois, de Vitorino Santana, o clínico responsável dos dragões. Espera, silêncio, muita gente de mãos na cabeça. Instantes dolorosos.

    Leopoldo, a uns bons metros, pressente o pior. «O Pavão saiu de maca, uns minutos depois. Inconsciente. Levaram-no por trás da baliza do topo sul e lembro-me de olhar a expressão do doutor. Parecia desorientado, à procura não sei bem de quê.»

     Ao intervalo, garantem aos jogadores do FC Porto uma «situação controlada». Talvez para serenar as mentes, procurar o foco no jogo. Mas quem pensa em golos e futebol ao temer a perda de um dos seus?

    Pavão (quarto a contar da esquerda) a olhar a Taça de Portugal ganha em 1968 @Arquivo Pessoal - Leopoldo Amorim
    «O Pavão era muito querido pelos adeptos. Estávamos no balneário, depois de ganharmos 2-0 (golos de Abel Miglietti e Marco Aurélio) quando chegou a má notícia», prossegue Leopoldo, tremendamente emocionado. Agora, como em 1973.

    «Era inacreditável, inacreditável. Nós íamos sempre para o hotel depois dos jogos, mas nessa tarde o treinador Béla Guttman mandou-nos para casa. Não dormi nada. Eu só chorava, agarrado à minha mulher.»

    As Antas esvaziam-se. Um silêncio sepulcral. Almas caídas, incrédulas, um herói do povo desfeito. Leopoldo fala de um jovem «saudável e cuidadoso», já preocupado com «a alimentação e os hábitos diários». 

    «Nunca teve nenhum problema de saúde. Era hiper-cuidadoso, lia muito sobre alimentação, havia dias em que só comia frutos secos. Nós jantávamos no lar e ele só comia aquilo. Não bebia álcool, não fumava, pelo menos à nossa frente.»

    Os exames médicos são básicos, rudimentares, quase um pró-forma. «Não tinham nada, nada a ver com o que é feito agora», continua o histórico Domingos Gomes. «Um eletrocardiograma, uma consulta no dentista e pouco mais. Toda a gente era aprovada, salvo situações de gravidade extrema.»

    O BERÇO - De Chaves para o mundo azul e branco

    Até chegar ao FC Porto e à Seleção Nacional, Fernando passa por etapas difíceis. Nasce numa família conservador, em Chaves, filho de militar, e cresce na rua Casas dos Montes.

    A bola é parceira, confidente, cúmplice e responsável pela famosa alcunha. De tanto correr de braços abertos, atrás dela, os amigos começam a dizer «pareces um Pavão». E Pavão fica.

    Nas equipas jovens do Desportivo de Chaves, Fernando chama a atenção de dois mestres azuis e brancos. António Feliciano, famoso por ser uma das Torres do Restelo e campeão pelo Belenenses, e Artur Baeta.

    Foi homenageado no museu do FC Porto @FC Porto
    Joga até aos juniores nos flavienses e por 300 mil escudos é desviado para o FC Porto, já com o Benfica também atento. Época 64/65, a vida de pernas para o ar, a mudança para a Cidade Invicta e o Lar do Jogador Júnior, na rua do Lindo Vale.

    É na casa portista, auxiliado pelos primeiros colegas, que Pavão aprende a escovar os dentes e a cuidar da imagem. O primeiro ano acaba com uma derrota na final de juniores para o Sporting, nada que o impeça de subir aos seniores.

    Pavão muda-se, então, para o Lar do Jogador Sénior, na Praça das Flores. Aí conhece Leopoldo Amorim, mais novo uns anos e chegado do Sport Progresso, outro histórico portuense.

    «Fomos companheiros de quarto e vivemos no lar do FC Porto. Foi lá que o conheci e era lá que ele ainda vivia quando morreu. Os futebolistas solteiros eram obrigados a viver lá», explica ao zerozero o antigo defesa.  

    «Se houvesse alguma zanga no lar, algo normal entre gente jovem, o Pavão entrava e acabava tudo. Tinha uma aura, um poder total sobre os colegas. Se eu tinha algum problema, era com ele que eu ia ter.»

    A estreia na equipa principal dá-se a 26 de setembro de 1965, lançado pelo treinador Flávio Costa e logo frente ao Benfica. As crónicas da época rezam «uma marcação impiedosa» a Mário Coluna, «eficaz e limpa». O FC Porto ganha por 2-0 ao rival eterno.

    Pavão não mais perde a titularidade e aquele ar de superioridade desinteressada, de quem leva a existência na dose certa de seriedade.

    O HOMEM - Um líder absoluto de «calma extrema»

    O futebolista é famoso. Tecnicamente perfeito, inteligente, capacidade física e visão de jogo. Nove épocas de dragão e azul branco, 234 jogos, 25 golos e uma só Taça de Portugal conquistada.

    Os números não revelam a grandeza da personalidade, mas Leopoldo Amorim ajuda a desenhar Pavão.

    «Era um rapaz espetacular. Nitidamente líder. Quando fui pela primeira vez capitão nos seniores, para espanto de toda a gente, o primeiro a chegar ao meu lado foi o Pavão: 'Miúdo, não te preocupes, estou aqui ao teu lado para te ajudar'. Os outros ficaram meio invejosos, mas ele não.»

    Leopoldo destaca também «a calma extrema» em todas as situações. No campo, claro, mas também no café, no lar do FC Porto, nos convívios. A voz sempre em sussurro, mas afirmativa.

    Pavão é o segundo à esquerda, em cima, num jogo da seleção da AF Porto @Arquivo Pessoal - Leopoldo Amorim
    «A conduzir era exasperante», sorri Leopoldo. «Não andava a mais de 30/40 km/h. Braço de fora, a olhar tudo à volta, uma enorme figura, uma pop star numa época ainda muito tacanha.»

    Leopoldo insiste nesse lado humanista de Pavão, indisponível para alinhar em injustiças ou de ser forte com os mais fracos. 

    «Muito mais importante do que o futebolista era a forma como ele estava na vida. Não conseguia estar ao lado de alguém que estivesse com problemas. Queria ajudar, socorrer, movia mundos e fundos para não deixar nenhum amigo para trás.»

    As palavras não são de circunstância. Leopoldo relata um evento que tem tudo para ser dramático e acaba em gargalhadas.

    «Houve um terramoto no Porto, o lar começou todo a abanar. Gente de cuecas cá fora, a meio da noite, tudo a fugir para a rua.»

    Tudo? Não, na apressada contagem falta um tal de Sousa, um reforço recém-chegado da Guerra no Ultramar.

    «No cimo da escadaria do lar havia seis/sete camas, onde estavam os novatos. O Sousa 'Pé de Galo', um ex-Varzim, regressara de Angola e para ele o terramoto não metia medo nenhum, habituado que estava a dormir na selva, entre bombas e tiros.»

    Pavão sobe a escadaria a correr, na urgência de salvar o amigo, e depara-se com um sono mais do que pesado. «'Acorda, Sousa, a casa vai cair! Tens de sair daqui'. Eu chego ao pé deles, também aflito, e já só vejo o Sousa a virar-se para o outro lado e a dizer assim: 'se cair, caiu, os meus tomates também caem'.»

    Acaba tudo bem. Nem o lar cai, nem Sousa acorda.

    Pavão
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    233 Jogos  20458 Minutos
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    «O Pavão não conseguia ficar chateado com ninguém. Foi sempre assim, mesmo com o senhor Pedroto que um dia o castigou por causa de um jogo em que o pôs no banco. Isso é que deixava o Pavão fulo: não jogar.»

    O sucesso no FC Porto não é replicado na Seleção Nacional. Os dragões estão num plano inferior aos rivais de Lisboa e as opções passam mais por atletas de Benfica e Sporting.

    O Mundial 1966 chega demasiado cedo e Pavão só se estreia por Portugal a 30 de junho de 1968, num amigável contra o Brasil - derrota por 2-0. Despede-se em maio de 73, sete meses antes de morrer, numa derrota na Bulgária.

    Seis jogos apenas, muito pouco para um evidente craque.

    O ADEUS - O luto da pequena filha e da companheira

    Fernando Pascoal Neves deixa uma filha pequena de quatro anos (Alexandra) e uma companheira. Nunca se casa, quiçá por ser um desprendido das emoções. Pavão leva os dias gentilmente, sem planos megalómanos ou ambições desmedidas. Vive sereno.

    Pavão é o sexto a contar da esquerda, em cima, numa viagem do FC Porto @Arquivo Pessoal - Leopoldo Amorim
    O dinheiro ganho no futebol vai para o sustento da menina, para a gestão da abertura de um pequeno pub portuense (Barril, abriria em 1974), e para a conta do banco, a pensar numa casa futura. Não é de extravagâncias, apesar do rótulo de pop star colado por quem mal o conhece.

    «A companheira esteve no funeral com a menina, lembro-me bem», partilha Leopoldo. O luto envolve a cidade, todos os caminhos partem do pavilhão das Antas para o Cemitério de Agramonte.

    «Esse dia foi impressionante, uma dor coletiva inimaginável. A Rua da Constituição foi fechada ao trânsito, houve pessoas a andarem três horas a pé, sentimos que todo o Porto esteve lá.»

     O FC Porto volta a ser campeão só em 1978, quatro anos e meio depois da partida de Pavão. Demasiado tempo para dedicar essa taça, fugida há 19 épocas das Antas, a um dos seus maiores símbolos.

    Desaparecido precocemente, Fernando Pascoal Neves é ainda um dos 50 futebolistas com mais presenças pelo FC Porto, logo atrás de Deco e à frente de Ricardo Quaresma, no 46º posto.

    Um dragão caído em combate. Um homem bom.

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