Sério e silencioso, algo que fazia parte da sua personalidade. Nunca gritava, nem sequer levantava a voz para falar no balneário, apesar de ser um capitão respeitado por todos. Continuava a sorrir, mas já há muitos anos que o fazia só com os lábios, algo que, mesmo que um colega tivesse reparado, certamente teria desvalorizado, afinal, são só pormenores que passam despercebidos no meio de todos os outros que constituem a vida. «Era reservado, sim, mas daí a ter tendências suicidas...», foi das frases mais comuns entre antigos colegas de equipa, que lamentaram não ter entendido a dor e perda de alguém que acabaram por também perder.
Foi em 2009, no dia 10 de novembro, que Robert Enke saiu de casa pela última vez. Despediu-se da mulher, Teresa, dizendo que tinha duas sessões de treino marcadas e que chegaria tarde. Seguiram-se as últimas horas da vida do alemão, que vagueou até encontrar o fim da sua linha algures na linha férrea da cidade de Hannover. O alívio de Enke chegou com a forma de um comboio regional. A morte foi imediata, mas o impacto da perda durou muito tempo para todos os que conheceram o homem por detrás das luvas.
Enke sofria de depressão. Não era público e poucos tinham conhecimento, mas era um problema constante na vida do alemão, que desde sempre sofria mais com os insucessos do que conseguia celebrar quando as coisas corriam bem. A verdade é que, pelo menos durante o início da carreira, tudo corria bem para o guarda-redes. Começou no clube local, mas estreou-se na Bundesliga aos 20 anos pelo Borussia Mönchengladbach, onde fez uma época de grande nível antes de se mudar para Lisboa, onde, ao serviço do Benfica, encontrou o compatriota Juup Heynckes, que ficaria encantado não só com o talento do jovem guarda-redes, mas toda a postura.
«Treinei vários jogadores durante a minha carreira e enquanto treinador é normal dar-me melhor com este ou aquele jogador», recordou Heynckes na biografia de Enke, «mas se alguém me perguntar depois de 30 anos quem eu acho que é o profissional perfeito, eu direi sempre Fernando Redondo e Robert Enke. Ambos eram futebolistas extraordinários, mas pessoas especiais - respeitadores, sociáveis e inteligentes.»
No Barcelona, as coisas não correram nada bem. Chegou para competir com o internacional argentino Roberto Bonano, mas quem ganhou a titularidade foi um jovem de 19 anos, chamado Victor Valdés. Enke não conseguiu ultrapassar esse falhanço e foi aí que pensamentos sombrios começaram a moldar uma mente doente. Não jogava porque não era o melhor e se não era o melhor então era o pior. Foi em Espanha que a depressão começou a afiar as garras com a lixa do auto-proclamado falhanço e ideias de insucesso que já estavam cravadas na mente de Enke antes sequer de uma estreia, que em nada ajudou.
Foi na primeira ronda da Copa del Rey, frente ao modesto Novelda, mas o Barça acabou mesmo eliminado, num jogo que terminou 3x2, com dois golos a acontecerem por culpa do alemão. O capitão culé, Frank de Boer atribuiu a culpa do resultado ao guarda-redes que fez manchete nas publicações desportivas em Espanha: «Enke assinou a sua sentença». Nesse ano, voltaria a jogar mais três vezes pelo clube, mas nunca mais. Estava destroçado, prisioneiro dos seus próprios pensamentos e da pressão inerente à profissão que desempenhava. Foi nesse momento que começou a ter acompanhamento psiquiátrico.
Foi em 2004 que nasceu Lara Enke, filha de Robert e Teresa, só que a saúde da menina era um problema e uma deficiência cardíaca significava várias viagens ao hospital e ocasionais intervenções cirúrgicas. A terceira cirurgia de Lara deixou-a surda, mas ainda assim não resolveu os outros problemas de um coração que se mantinha fraco, enquanto Robert segurava o seu nas luvas, pois Lara ainda passaria o resto do ano em cuidados intensivos. A quarta intervenção cirúrgica surgiu em 2006, e foi aí que Lara, aos dois anos, não aguentou mais.
A morte de uma filha não é algo fácil de ultrapassar para ninguém, mas o estado psicológico de Enke já não era ideal antes e certamente pioraria com a dor da perda. Ainda assim, quem o via em campo não adivinhava. Duas semanas depois do pior dia da sua vida, Enke era convocado pela primeira vez para a seleção alemã, mas só se estrearia na temporada seguinte, já com 29 anos, no mesmo ano em que recebeu a braçadeira do Hannover 96.
Tornou-se uma voz amiga de todos os guarda-redes, querendo ajudar da mesma maneira que gostaria que o tivessem feito consigo. Consolou Hildebrand por ter ficado com o seu lugar nos convocados do Europeu de 2008, para além de uma chamada de telefone para Sven Ulreich, então guarda-redes de 19 anos que no Stuttgart era alvo de críticas devido a exibições fracas. «Quando desliguei estava com arrepios», revelou na biografia de Enke o guardião, que chegaria mais tarde ao topo do futebol alemão.
Pela Maanschaft foi suplente no Euro 2008, que a Alemanha perdeu na final, mas teve a oportunidade de se tornar o nome seguinte na linhagem de guarda-redes lendários da seleção germânica. Para o Mundial de 2010, o favorito para a camisola 1 era o guardião que já levava anos de qualidade consistente na Bundesliga, para além de ter sido seguro após a saída de Lehmann, tinha experiência fora do país e estava em forma. O nome era Robert Enke, mas a tragédia acabaria por abrir a porta para o verdadeiro herdeiro de Köpke, Kahn e Lehmann: Manuel Neuer.
A morte de Enke foi uma perda gigante para o futebol, mas não terá sido em vão. O estrondo da queda de um grande homem serviu para estilhaçar o tabú, permitindo que se passasse a ver a saúde mental dos atletas como um problema legítimo, fora de preconceitos de fraqueza. Ainda não é o tema mais fácil de abordar e não o será tão cedo, mas cada passo é importante para ajudar aqueles que sofrem.
Para além do Hannover 96 ter retirado a camisola 1 em honra de Enke, o guardião deixa como legado uma fundação em seu nome, criada pelo seu último clube em conjunto com a federação alemã (DFB) e a liga. A organização, na qual Teresa Enke está envolvida, tem dois projetos: ajudar pessoas que sofrem de problemas de saúde mental bem como crianças condicionadas a nível cardíaco.
Cada vez mais pessoas estão cientes de como a saúde mental pode afetar atletas de alta competição, e é um tema abordado mais frequentemente por treinadores e jogadores. A Robert Enke Foundation já leva alguns anos a facilitar o acesso de futebolistas a terapia, oferecendo apoio durante o processo e criando consciencialização acerca de um problema real, que não pode ficar escondido. O importante é não sofrer em silêncio.
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