Tentar colar um selo de underdog no Real Madrid é algo que roçaria a loucura. Trata-se, afinal, do clube mais dominante e titulado na história da Liga dos Campeões, que se tornou o primeiro a atingir os dois dígitos de conquistas com a mítica «La Décima» em 2014 e reforçou esse estatuto com a 11ª, 12ª e 13ª conquista nas quatro edições seguintes. Ainda assim, no início de 2021/22 ninguém dava o gigante espanhol como favorito à conquista da orelhuda.
Renovação e reestruturação. Foi sob esses dois erres que se delineou o contexto em que começou a campanha que levou à 14ª Champions do Real Madrid, mais tarde recordada por um terceiro erre: o de remontada...
O capitão Sergio Ramos tinha acabado de deixar a equipa para rumar ao PSG e também o seu parceiro no setor defensivo, Raphael Varane, deixou o clube ao fim de dez anos e assinou pelo Manchester United. Essas e outras saídas foram agravadas pela de Zinedine Zidane, claro. O lendário francês deixou o clube com três Champions no currículo, para enorme tristeza da afición blanca, e a contratação de Carlo Ancelotti fez esses mesmos adeptos levantar o sobrolho em jeito de dúvida. Era também ele um treinador lendário e altamente titulado, mas já longe do auge, sendo que vinha de uma passagem infeliz pelos ingleses do Everton. No final, esse levantar de sobrancelha, tão característico de Don Carlo, tornou-se imagem icónica desta edição da Liga dos Campeões.
A época começou bem. Os reforços Alaba e Camavinga ajudaram a equipa a carburar, com a renovação de Karim Benzema a revelar-se o melhor negócio de todos - à 13ª temporada em Madrid, o ponta de lança francês foi a grande figura da equipa e alcançou a improvável conquista da Bola de Ouro.
A primeira derrota da temporada chegaria mesmo na Liga dos Campeões e de forma absolutamente épica. O Sheriff, primeiro clube moldavo a chegar à fase de grupos da Liga dos Campeões, foi ao Santiago Bernabéu vencer por 1-2, depois de já ter batido o Shakhtar Donetsk na jornada inaugural. Por essa altura, as casas de apostas já nem sequer colocavam o Real entre os 10 favoritos à conquista do troféu! Esse foi, ainda assim, o único deslize nessa fase e os merengues terminaram no primeiro lugar do Grupo D, seguidos pelo Internazionale. Estava dado o mote...
Na segunda metade da temporada, já com o motor da prata a carburar devido à conquista da Supertaça em janeiro, s equipa começou a escrever a sua história de redenção (sim, mas um R). Os oitavos de final ditaram que o PSG seria o primeiro adversário do mata-mata. Em Paris, a equipa de Messi, Mbappé e Neymar (Ramos estava lesionado) venceu por 1-0 com justiça, mas um hat-trick de Benzema virou a eliminatória do avesso na segunda mão (3-1). Seguiu-se o Chelsea, campeão europeu em título. Em Stamford Bridge houve novo 1-3 e novo hat-trick do goleador francês, mas esta era uma temporada de poucas facilidades e por isso foi preciso prolongamento para garantir o agregado de 5-4 a passagem em casa.
Quando chegou a final, numa bela tarde de sábado em Paris, já ninguém ousava duvidar dos galáticos. Pela frente estava o Liverpool, que queria vingar a final de 2018 - Salah, a grande figura, fez questão de referir essas «contas a acertar» - e bem tentou fazê-lo, mas Thibaut Courtois agigantou-se e fez uma das melhores exibições de um guarda-redes numa final europeia. Defesa atrás de defesa, a desmoralizar os homens de Klopp e a dar força aos de Ancelotti!
Já na segunda parte, foi Vinícius Júnior que se fez herói. O brasileiro já tinha ultrapassado o antigo selo de «flop» e formado uma temível dupla com Benzema, mas não havia melhor altura para cimentar o seu estatuto como um dos melhores do Mundo do que numa final da Liga dos Campeões - assim foi, quando marcou o golo mais importante da sua ainda curta carreira. O Real Madrid era, pela 14ª vez, Rey de la Europa.
Além da glória madrileña, a edição de 2021/22 da Liga dos Campeões teve mais representação Ibérica. O semi-finalista Villarreal, que brilhou tanto com Emery no ano que se seguiu à já histórica conquista da Liga Europa, foi apenas uma dessas faces, já que esta foi uma das edições que contou com três equipas portuguesas.
O campeão Sporting e o vice FC Porto chegaram automaticamente à fase de grupos, onde o Benfica chegou mais tarde por ter passado as duas rondas de qualificação necessárias. Portugal tão bem representado, como só as maiores ligas conseguem, na maior competição de clubes.
Ora, os leões, na ressaca de um ano sem competições europeias (e que feliz foi esse ano...) voltaram a apresentar-se ao melhor nível. Rúben Amorim conseguiu igualar a melhor prestação dos leões na fase moderna desta competição, ao passar a fase de grupos. O Ajax fez o pleno de vitórias, mas os leões conseguiram vingar o mau início (duas derrotas em duas jornadas) e, com três vitórias consecutivas, garantiram o segundo lugar a uma jornada do fim, empurrando o poderoso Borussia Dortmund e o Besiktas para um infeliz quarto lugar. Nos oitavos, um verdadeiro azar (já lá vamos) ditou como adversário o Manchester City de Guardiola. Os ingleses golearam (5-0) em Alvalade, tanto que o empate em Manchester de nada serviu.
Também o FC Porto teve azar, ao calhar num grupo de pesos pesados, com Liverpool, Atlético Madrid e AC Milan. O terceiro lugar permitiu a continuação da aventura europeia no escalão inferior da UEFA.
De resto, a edição de 2021/22 da Liga dos Campeões ficará eternamente marcada por um incidente nos bastidores. A 13 de dezembro de 2021, no sorteio dos oitavos de final, houve não apenas uma, mas três irregularidades na alocação das bolas (algumas equipas foram colocadas como possíveis adversárias mesmo tendo partilhado o mesmo grupo na fase anterior), o que inicialmente passou despercebido mas acabou por gerar alguma controvérsia.
Algumas horas depois, a UEFA anunciou a anulação do sorteio devido a um «problema técnico», e assim foi escrita uma história completamente distinta. O Benfica, que eliminou o Ajax, tinha sido inicialmente emparelhado com o eventual campeão Real Madrid; menos sorte teve o Sporting, que tinha celebrado um adversário mais acessível (a Juventus, que acabaria por ser confortavelmente eliminada pelo Villarreal), mas acabou por defrontar, como sabemos, o Manchester City. Uma história surreal...