Os «distantes» anos 90
O futebol em idos dos anos noventa era um mundo diferente do que conhecemos hoje. Olhando para trás, parece tão improvável que aquela a que se convencionou chamar da «indústria do futebol», fosse regida há menos de duas décadas por regras tão díspares das atuais, que protegiam os clubes e impediam a livre circulação de jogadores pelo continente.
Antes do «Acórdão Bosman», clubes profissionais de futebol na maioria dos países europeus - mas não por exemplo em Espanha, Portugal ou França - , podiam impedir que os seus jogadores assinassem por outro clube, mesmo depois do contrato que os unia ter expirado.
Como tal, não existia a necessidade de colocar uma cláusula de rescisão, que depois do «Acórdão Bosman» se tornou a única possibilidade dos clubes segurarem os seus atletas. É claro que as cláusulas eram uma abdicação da liberdade de circulação dos jogadores, o que em contrapartida os levou a pedir e a auferir ordenados cada vez mais condizentes com a «falta de liberdade» das condições assinadas.
O processo foi longo e moroso, não se pode contar em poucas linhas: insatisfeito com o corte do seu salário no Standard de Liège com quem tinha terminado contrato, Bosman assina pelos franceses do Dunkerque, mas o clube belga fixa um valor alto para a libertação do seu passe, e os franceses desistem da contratação. Bosman reage e decide mover uma ação judicial contra o Standard, enquanto fica sem jogar, obrigado a treinar-se à parte para manter a forma.
Vitórias e recursos: Bosman contra o Mundo
Em novembro, na primeira instância, o tribunal deu-lhe razão, tornando possível a sua transferência. Bosman assina pelo Saint-Quentin e volta a jogar, mas entretanto o clube interpõem recurso, e o jogador fica temporariamente suspenso até a apreciação do caso.
Enquanto o processo decorre na justiça, Bosman arrisca a sua sorte na longínqua Ilha de Reunião, enquanto os recursos se vão multiplicando no Supremo Tribunal de Justiça da Bélgica, tentando impedir a «carta de alforria» de Jean-Marc.
A Federação Belga e mais tarde a própria UEFA, com o apoio da FIFA, juntam-se ao Standard na luta judicial, tentando impedir o que consideravam o terramoto que iria acabar com o futebol...
As últimas batalhas
Em junho de 1995 o caso chega ao Tribunal de Justiça da União Europeia (UE), com os advogados de Bosman a pedirem uma indemnização pelos anos em que o jogador ficou desempregado sem direito a qualquer vencimento ou subsídio de desemprego. Por outro lado, a UEFA tentava a todo custo impedir que o tribunal europeu validasse a pretensão dos advogados de Bosman, de que os contratos desportivos eram uma restrição à livre circulação de trabalhadores no espaço comum, numa clara e flagrante violação do Tratado Europeu.
A 15 de dezembro de 1995 o tribunal dá razão a Bosman e a decisão judicial faz jurisprudência. A Itália já se tinha antecipado com o senado a promulgar a Emenda Speroni, permitindo assim a livre contratação e utilização de comunitários no seu Campeonato.
A 20 de dezembro a Liga Espanhola garante que nada irá mudar no futebol, mas nos primeiros dias de janeiro a Liga Inglesa abre as portas aos comunitários. A 11 de janeiro a Comissão Europeia confirma que a decisão do Tribunal Europeu deve ser aplicada nos países membros da UE, e uma semana depois, a Comissão informa a UEFA que tem seis meses para aplicar a sentença.
Com os clubes ingleses, italianos e alemães a afirmarem que iam cumprir as deliberações impostas por Bruxelas, isolada e só com o apoio da Espanha, a UEFA acaba por ceder, aceitando a livre circulação de jogadores comunitários na época seguinte, em todas as competições disputadas no continente europeu.
A FIFA, sempre ameaçando com a exclusão da Europa das suas competições, acaba por ceder às evidências, aceitando a livre circulação. Game over! Bosman vencia, mas a sua carreira estava acabada. Os clubes adaptaram-se rapidamente à nova norma, e o futebol evoluiu para o que hoje conhecemos. Bosman nunca terá a homenagem do futebol e dos seus pares, mas por certo que Cristiano Ronaldo, Messi, Ibrahimovic e companhia muito devem ao médio belga, e talvez não lhes ficasse mal, pagarem-lhe a meias uma estátua...