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    «Acórdão Bosman»

    Texto por João Pedro Silveira
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    Os «distantes» anos 90

    O futebol em idos dos anos noventa era um mundo diferente do que conhecemos hoje. Olhando para trás, parece tão improvável que aquela a que se convencionou chamar da «indústria do futebol», fosse regida há menos de duas décadas por regras tão díspares das atuais, que protegiam os clubes e impediam a livre circulação de jogadores pelo continente. 

    Não deixa de ser verdade, que os ordenados não atingiam então as somas astronómicas dos nossos dias, e o fosso entre os clubes mais ricos e os mais pobres não era tão acentuado. Hoje em dia existe um maior nivelamento entre os clubes na esmagadora maioria das ligas europeias, mas o fosso cavado entre os maiores e mais ricos clubes europeus - principalmente de Inglaterra e Espanha - e os outros até então grandes clubes da Europa, atingiu valores absolutamente impensáveis nos anos oitenta e noventa, onde equipas como o Benfica, FC Porto, Sporting, disputavam taco-a-taco os encontros que efetuavam com Barcelona, Real Madrid, Inter de Milão ou Bayern, para citar alguns, tal como o faziam outros grandes clubes europeus de então como o Anderlecht, Ajax, Celtic, Steaua de Bucareste, Gotemburgo ou Estrela Vermelha de Belgrado.
     
    Esses eram os tempos em que fenómenos milionários como o Chelsea, Manchester City, Malága e Paris SG, para citar alguns nomes, não singravam no fenómeno futebolístico europeu, e onde numa competição europeia era mais complicado defrontar um Malines da Bélgica ou um Aberdeen da Escócia, do que as potências financiadas pelos petrodólares dos nossos dias...
     
    O antes...
     

    Antes do «Acórdão Bosman», clubes profissionais de futebol na maioria dos países europeus - mas não por exemplo em Espanha, Portugal ou França - , podiam impedir que os seus jogadores assinassem por outro clube, mesmo depois do contrato que os unia ter expirado.

    Como tal, não existia a necessidade de colocar uma cláusula de rescisão, que depois do «Acórdão Bosman» se tornou a única possibilidade dos clubes segurarem os seus atletas. É claro que as cláusulas eram uma abdicação da liberdade de circulação dos jogadores, o que em contrapartida os levou a pedir e a auferir ordenados cada vez mais condizentes com a «falta de liberdade» das condições assinadas.

    Em Portugal, até a « revolução Bosman», os jogadores também viam as suas transferências condicionadas, mas nada impedia que os jogadores sem contrato, ou com um contrato considerado nulo, mudassem de clube, sem o clube para o qual se transferiam fosse obrigado a despender um centavo que fosse na aquisição do passe do atleta.
     
    Nos anos oitenta, Futre abandonara o Sporting rumo ao Porto, em sentido inverso ao de Jaime Pacheco e Sousa que chegavam entretanto a Alvalade. Rui Águas passara para as Antas com Dito, sem o Benfica ver a cor de um tostão. Figo mudara-se para Barcelona, e o clube catalão só pagara algo ao Sporting, para poder manter as boas relações que sempre tinham existido entre os dois clubes...
     
    Outra regra que a FIFA, a UEFA e as federações faziam «finca-pé», prendia-se com as quotas para jogadores estrangeiros nas ligas europeias. Durante anos, por exemplo em Itália, só podiam ser inscritos três estrangeiros, em alguns casos esses trios faziam história, como era o exemplo o trio holandês do AC Milan (van Basten, Gullit e Rijkaard). Alguns campeonatos admitiam até seis jogadores por plantel, mas a UEFA nas suas competições não aceitava mais do que um máximo de três jogadores por ficha de jogo, independentemente de estarem no onze inicial, ou se sentarem no banco.
     
    Em Itália, o el dourado do futebol nesses anos noventa, pouco antes do mundial de 1994, fora alargado para seis, o número de estrangeiros admitidos por plantel. É dessa data, a primeira grande evasão de jogadores portugueses rumando ao estrangeiro: Rui Costa (Fiorentina), Paulo Sousa (Juventus), Fernando Couto (Parma), entre outros...
     
    A revolução Bosman
     
    Não foi um profeta, nem um Messias, nem sequer foi um grande futebolista, mas quando se fala do Desporto Rei, é incontornável o facto de que há um antes e um depois de Bosman no futebol. 
     
    O Belga Jean-Marc Bosman é o responsável pela maior revolução que o futebol viveu desde que um grupo de rapazes ingleses, decidiu sentar-se na Freemason's Tavern em Londres, para mudar as regras, passando a proibir a possibilidade de se agarrar a bola com as mãos e de se poder derrubar os adversários com placagens. 
     
    Sem o próprio por certo imaginar, a 8 de agosto de 1990, iniciava-se um processo que transformaria por completo o futebol de um desporto global, para uma indústria produtora de estrelas globais que podiam discutir os escaparates com as vedetas da NBA ou até mesmo de Hollywood. 

    O processo foi longo e moroso, não se pode contar em poucas linhas: insatisfeito com o corte do seu salário no Standard de Liège com quem tinha terminado contrato, Bosman assina pelos franceses do Dunkerque, mas o clube belga fixa um valor alto para a libertação do seu passe, e os franceses desistem da contratação. Bosman reage e decide mover uma ação judicial contra o Standard, enquanto fica sem jogar, obrigado a treinar-se à parte para manter a forma.

    Vitórias e recursos: Bosman contra o Mundo

    Em novembro, na primeira instância, o tribunal deu-lhe razão, tornando possível a sua transferência. Bosman assina pelo Saint-Quentin e volta a jogar, mas entretanto o clube interpõem recurso, e o jogador fica temporariamente suspenso até a apreciação do caso.

    Enquanto o processo decorre na justiça, Bosman arrisca a sua sorte na longínqua Ilha de Reunião, enquanto os recursos se vão multiplicando no Supremo Tribunal de Justiça da Bélgica, tentando impedir a «carta de alforria» de Jean-Marc.

    A Federação Belga e mais tarde a própria UEFA, com o apoio da FIFA, juntam-se ao Standard na luta judicial, tentando impedir o que consideravam o terramoto que iria acabar com o futebol...

    As últimas batalhas

    Em junho de 1995 o caso chega ao Tribunal de Justiça da União Europeia (UE), com os advogados de Bosman a pedirem uma indemnização pelos anos em que o jogador ficou desempregado sem direito a qualquer vencimento ou subsídio de desemprego. Por outro lado, a UEFA tentava a todo custo impedir que o tribunal europeu validasse a pretensão dos advogados de Bosman, de que os contratos desportivos eram uma restrição à livre circulação de trabalhadores no espaço comum, numa clara e flagrante violação do Tratado Europeu.

    A 15 de dezembro de 1995 o tribunal dá razão a Bosman e a decisão judicial faz jurisprudência. A Itália já se tinha antecipado com o senado a promulgar a Emenda Speroni, permitindo assim a livre contratação e utilização de comunitários no seu Campeonato.

    A 20 de dezembro a Liga Espanhola garante que nada irá mudar no futebol, mas nos primeiros dias de janeiro a Liga Inglesa abre as portas aos comunitários. A 11 de janeiro a Comissão Europeia confirma que a decisão do Tribunal Europeu deve ser aplicada nos países membros da UE, e uma semana depois, a Comissão informa a UEFA que tem seis meses para aplicar a sentença.

    Com os clubes ingleses, italianos e alemães a afirmarem que iam cumprir as deliberações impostas por Bruxelas, isolada e só com o apoio da Espanha, a UEFA acaba por ceder, aceitando a livre circulação de jogadores comunitários na época seguinte, em todas as competições disputadas no continente europeu.

    A FIFA, sempre ameaçando com a exclusão da Europa das suas competições, acaba por ceder às evidências, aceitando a livre circulação. Game over! Bosman vencia, mas a sua carreira estava acabada. Os clubes adaptaram-se rapidamente à nova norma, e o futebol evoluiu para o que hoje conhecemos. Bosman nunca terá a homenagem do futebol e dos seus pares, mas por certo que Cristiano Ronaldo, Messi, Ibrahimovic e companhia muito devem ao médio belga, e talvez não lhes ficasse mal, pagarem-lhe a meias uma estátua...

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    Fotografias(1)

    Jean-Marc Bosman

    Comentários

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    motivo:
    Pequena correção
    2022-12-15 11h10m por sparagufas
    À data da transferência para França, o Bosman estava a representar o RFC Liège, clube que atualmente milita na 3ª Divisão Belga. Talvez haja aqui alguma confusão ou alguma coisa por explicar melhor.

    À parte disso, excelente artigo! Deixa a pensar como teriam sido as coisas caso não tivesse existido este processo. Definitivamente que o a diferença financeira entre clubes continuaria a ser muita mas talvez a qualidade dos atletas não. Seria muito mais gratificante ver um Spor...ler comentário completo »
    jmg_95
    2015-08-08 11h21m por Mikhal18
    Certamente não sabes qual a definição da palavra "estrangeiro".
    jmg_95
    2015-08-08 11h21m por Mikhal18
    Tu não deves saber o que é a definição de "Estrangeiro" certamente.
    PR
    . . .
    2012-08-08 17h41m por Prvdr
    test
    PR
    Correcção
    2012-08-08 17h39m por Prvdr
    nesse tempo o Paris SG era superior a qualquer das equipas referidas como grandes clubes europeus (Anderlecht, Ajax, Celtic, Steaua de Bucareste, Gotemburgo ou Estrela Vermelha de Belgrado). . .

    tinha grandes equipas k faziam frente aos tubarões. . . chegou a deixar o Bayern em 2º no grupo da Champions e a eliminar o Barcelona. . .

    apagou-se já na entrada do novo século, tanto a nível europeu como internamente, para agora voltar a surgir com os Petrodólares. . .
    JM
    let_it_be
    2012-08-08 10h06m por jmg_95
    Os outros ganham pelos estrangeiros, e o Porto pela competência, até porque o Porto não tem estrangeiros
    PI
    Bosman
    2012-08-08 09h48m por Pirisca
    Foi este gajo q transformou e vez o futebol, ao fazer com que o único aspecto rumo ao sucesso desportivo passasse a ser o dinheiro.
    LE
    Lei Bosman
    2012-08-08 09h18m por let_it_be
    Veio revolucionar o futebol Europeu, antigamente, as equipas não podiam jogar com mais de 3 estrangeiros, agora são poucas as equipas que jogam com 3 nacionais.

    Veio fazer com que os mais ricos tenham muito maiores possibilidades de sucesso, depois há algumas excepções como o FCPORTO, que com competência conseguiu ganhar 1 CL e 2 TU.
    Muito Bem ZZ!
    2012-08-08 07h25m por suazoo
    Mais um grande texto por parte do ZeroZero que dá a conhecer uma história verdadeiramente fundamental para que o futebol se tenha tornado o que é hoje, grande trabalho!

    Para quem quiser existe um texto interessante sobre este homem no Jornal I online. (Quem quiser ler pesquise no Google: "Jean-Marc Bosman. A triste história do homem que enriqueceu as estrelas do futebol")
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