A borboleta bate asas, o mundo estremece. Ano da graça de 1935, tropas italianas avançam sobre o solo árido da Etiópia. Os humores do fascismo ordenam o jugo colonial, Benito Mussolini bombardeia uma terra cheia de nada.
Forte contra os mais débeis, fraco perante o opressor de Berlim. Il Duce incendeia África com tropas sem rosto e balas sem sentido. Ao mesmo tempo, e sem sabê-lo, altera o curso da vida de três prometedores futebolistas brasileiros.
Um deles é o herói desta história. Marins Alves de Araújo Viana, o Vianinha, tornar-se-ia no primeiro atleta a ter o privilégio de viver o Clássico dos dois lados da barricada.
Vianinha 3 títulos oficiais |
Lá longe, na Etiópia, o primeiro tiro do conflito é disparado a 3 de outubro. As notícias do fogo cruzado apanham Vianinha a meio da viagem aérea São Paulo-Roma.
Escala feita em Lisboa, ouvidos presos à telefonia, há notícias do eclodir da Guerra Ítalo-Etíope, lá longe. Vianinha desiste do sonho italiano, arraiais assentados na capital.
Camisola do Sporting vestida na época 1935/36, passagem curta e sem sucesso pelo francês FC Antibes e regresso a Portugal para jogar no FC Porto, março de 1937.
Carioca de berço, Vianinha nasce a 9 de maio de 1909. Os estudos levam-no para São Paulo, os livros passam cada vez mais tempo em casa, o futebol ganha o duelo ao juízo.
São José de Rio Preto, Corinthians Paulista, sonho europeu. No Brasil, o amadorismo dita as regras do futebol rei e o apelo do Velho Continente é irresistível. Desviado por Fernando Giudicelli e Jaguaré de Vasconcelos, compinchas na aventura da bola, o bom do Marins larga tudo e mete-se no primeiro avião. Acabará em Lisboa, como se sabe.
O acervo disponível é limitado. Nos anos 30, o digital é um salamaleque de doidos, o apocalipse por anunciar. Restam os arquivos dos jornais da época, as provas mantidas nos museus de Sporting e FC Porto, as pequenas informações em blogs associados aos dois emblemas.
«(...) o nosso estimado Vianinha, que, com as suas 'modinhas' brasileiras, tocando, bailando e cantando, conseguiu que a assistência o acompanhasse e comungasse do seu entusiasmo», conta o jornal do Sporting, sobre o Rei do Carnaval de 1936.
Nos campos pelados a vida também lhe corre bem. O Campeonato Nacional joga a sua segunda edição, o Sporting acaba de taça na mão, Vianinha, Giudicelli e Jaguaré saboreiam o luxo da glória europeia.
Nos registos do zerozero vemos Vianinha com 28 jogos e um golo marcado nessa campanha de 35/36. E mais algumas curiosidades. Vigoroso, embora leal, vê o cartão vermelho direto, quando o cartão vermelho direto era um exclusivo dos mais bárbaros, num Sporting-Belenenses: 4-1, 15 de dezembro de 35.
Três dias depois, o primeiro Clássico. O Sporting ganha 3-2 ao FC Porto, Vianinha é o único dos três sportinguistas utilizados, Manuel Soeiro bisa e é o homem da tarde.
No Campo do Ameal, três meses mais tarde, a vingança é duríssima. 10-1 para o FC Porto e Vianinha lá pelo meio, perdido como os demais leões.
A curiosidade pelo desconhecido manda Vianinha para França. 1936, cinco jogos feitos no pequeno FC Antibes e o céu a cair-lhe em cima da cabeça. Não, não é por ali o caminho da felicidade.
Atento, o FC Porto lança-lhe o isco. 14 contos de ‘luvas’, 1500 escudos mensais e mais sete mil réis pela «carta de desobrigação» com os homens de Antibes.
Sporting na época 1935/36, FC Porto de 1937 a 1939. 28 partidas pelos leões, mais 30 de azul e branco vestido, figura histórica na própria história dos clássicos.
«O brasileiro fez uso do seu profundo conhecimento dos jogadores leoninos, para marcar de forma impecável Soeiro, o avançado mais perigoso dos leões», rezam as críticas dos jornais da época.
Um tipo especial. Campeão no Sporting, campeão no FC Porto, pioneiro na aventura de vestir as duas camisolas e de participar em clássicos de pelo na venta. Um tipo especial, dentro e fora dos campos da bola.
Em Alvalade foi Rei do Carnaval, no Porto celebriza-se num anúncio a lâminas de barbear, lado a lado com o ídolo maior dos portistas, o madeirense Pinga.
O regresso ao Brasil ocorre em 1939. Assina pelo Santos, experimenta a Vila Belmiro, mas já sem o êxito recolhido nos campos portugueses. O site sobre o acervo histórico do emblema paulista dedica-lhe um capítulo inteiro.
«Trouxe de Portugal a fama de marcador implacável e força no jogo aéreo. Teve uma rápida passagem na Vila Belmiro, onde não obteve as conquistas do futebol português. Viana contribuiu com a equipe alvinegra atuando ao lado do capitão santista Neves e formando uma ‘zaga’ bastante experiente. Encerrou a sua carreira após a passagem pelo Santos e chegou a trabalhar como treinador. Conquistou o Campeonato Paulista da Segunda Divisão a dirigir o Linense em 1952.»
Escapou à guerra de Mussolini, fez história no Sporting e no FC Porto, foi Rei e figurante na arte da representação.
Morreu em 1975, com 66 anos, na cidade de São Paulo.