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    História
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    O Jogo da Morte

    Texto por João Pedro Silveira
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    Uma das páginas mais famosas da história do futebol surgiu durante a ocupação alemã da Ucrânia, quando um conjunto de jogadores ucranianos, muitos deles ex-jogadores do Dynamo Kiev, se viram envolvidos num conjunto de partidas de futebol que ficaram conhecidas como o «Jogo da Morte».

    A história dessas partidas e do "último" embate contra uma equipa da Força Aérea Alemã há muito que faz parte do imaginário dos apaixonados pela traumática histórica da Segunda Guerra Mundial, tendo dado lugar inclusive à publicação de livros e a realização de filmes, um deles verdadeiramente icónico nos anos 80...
     
    O começo do conflito
     
    O futebol tornara-se muito importante por toda a União Soviética durante a década de 30 e a Ucrânia - em particular Kiev - não era exceção.
     
    Anos antes formara-se o Dynamo Kiev, ligado ao Movimento Dínamo e criado pela polícia política, a NKVD, que mais tarde seria conhecida como KGB. As ligações do clube à polícia do regime ajudou ao desenvolvimento da equipa, mas, com o passar dos anos, o Dynamo passou por momentos complicados.
     
    Sem dinheiro - chegou a ter só oito jogadores -, a equipa via constantemente os seus melhores jogadores tentarem mudar-se para outros clubes em outras partes da Ucrânia e do país. As perseguições políticas, o Holodomor (1)  - literalmente "Exterminação pela Fome" - , ou a Grande Purga de 1936-38 provocaram baixas tanto na direção do clube, como na constituição da equipa.
     
    Quando os alemães invadiram a União Soviética em junho de 1941, o Dynamo estava longe de ser a equipa que conseguira um brilhante segundo lugar na primeira edição da Liga Soviética em 1936. 
     
    A ocupação alemã da Ucrânia
     
    A maioria dos jogadores do Dynamo juntaram-se ao exército quando a União Soviética foi invadida pela Alemanha Nazi, partindo imediatamente para a frente de combate. 
     
    Mas as defesas soviéticas mostraram-se muito frágeis para a excelente máquina de guerra da Wehrmacht. Kiev, sendo uma das mais importantes cidades soviéticas, era obviamente um dos grandes objetivos militares do exército alemão. A 19 de Setembro a cidade caiu em mãos germânicas. 
     
    Nos dias e meses seguintes, todas as organizações soviéticas, remotamente ligadas ao regime comunista, foram encerradas e entre elas encontrava-se, obviamente, o Dynamo. As ligações do Dynamo à NKVD incomodavam as autoridades nazis.

    Era sabido que ao longo da história do clube vários tinham sido os seus dirigentes ou jogadores que tinham feito parte da NKVD. A ligação do clube à polícia secreta fazia com que muitos dos atletas do clube estivessem relacionados de certa forma com Polícia Secreta ou com outras forças de segurança da União Soviética.
     
    Dadas as suas ligações à NKDV, a maioria dos jogadores que tinham sobrevivido tanto na frente de batalha como na defesa da cidade e que não conseguiram fugir às forças nazis acabaram naturalmente encarcerados em campos de prisioneiros nos arredores da cidade, onde foram vitimas não só de tortura como de condições desumanas de encarceramento.
     
    Ao todo, cerca de 600 mil soldados soviéticos tinham sido capturados pelos alemães aquando da conquista da cidade. Kiev passou por momentos complicados, com a presença constante de tropas alemãs nas ruas da cidade. Todas as escolas e universidades na cidade foram encerradas. Um ano depois voltou a existir uma escola primária para ucranianos.

    Qualquer pessoa entre os 15 e os 60 anos era obrigada a trabalhos forçados e muitas foram deportadas para a Alemanha, onde eram obrigadas a trabalhar em fábricas. Comunistas, homossexuais, ciganos e judeus eram perseguidos e tinham triste destino...
     
    Uma equipa para levantar o moral
     
    O facto de serem meros atletas do clube e não serem considerados perigosos pelas autoridades nazis levou a que a que a maioria dos jogadores detidos fossem libertados pelas autoridades nazis. De volta à cidade, num mundo que parecia virado de pernas para o ar, reencontraram familiares e amigos, procuraram emprego e sonharam com o dia em que podiam voltar a jogar futebol.
     
    Alguns deles encontraram trabalho numa padaria da cidade, a Padaria n.º 1, conseguindo ao mesmo tempo um emprego e uma dose regular de pão. Joseph Kordik, um alemão da Morávia, que dirigia a padaria, reuniu assim um grupo inusitado de ex-jogadores de futebol e encorajou-os a formarem uma equipa de futebol. Nascia então o FC Start.
     
    Trusevich, antigo guarda-redes do Dynamo, teve papel fundamental a convencer os antigos colegas a jogarem pela nova equipa.
     
    Os jogos e o Jogo da Morte
     
    Reunido o grupo, a equipa começou a treinar e a defrontar outras equipas de Kiev, participando numa pequena liga amadora local. As vitórias constantes sobre as outras equipas da região despertaram a atenção das forças de ocupação, que pensaram que seria bom, para a ordem social e para a moral das tropas estacionadas em Kiev, que se realizassem partidas entre os alemães e a equipa ucraniana. 
     
    Contudo, o primeiro convite surgiu da Guarnição Militar Húngara (2) que seria derrotada por 6x2 a 21 de Junho. Seguiram-se outros encontros contra equipas de unidades militares alemãs. As vitórias sucediam-se provocando embaraço nas autoridades nazis.
     
    Foi então que uma equipa da Luftwaffe (força aérea) enfrentou o Start. A Flafelk, nome da equipa alemã, foi inapelavelmente goleada por 1x5 para profunda irritação do comando militar alemão. No fim do jogo foi lançado o repto, o Start tinha de defrontar a Flafelk três dias depois. O risco de uma nova vitória ucraniana era evidente, mas os jogadores pareciam não compreender o risco que corriam ao humilharem as equipas adversárias.
     
    A equipa alemã reforçou-se com mais jogadores de outras equipas, mas seria em vão o reforço da Flafelk. O Start voltou a vencer, desta feita por 5x3. Os alemães abandonaram o campo cabisbaixos, os ucranianos eufóricos, festejavam mais uma vitória, perante o olhar atento da Gestapo e dos oficiais das SS e da Força Aérea e Exército alemão. 
     
    Seguiu-se ainda uma vitória sobre o Rukh (8x0) antes da Gestapo começar a deter os jogadores do Start por acusação de ligações à NKVD. Seis seriam detidos na padaria a 18 de Agosto, dois dias mais tarde outros dois eram detidos. Interrogados, torturados, acabaram presos e levados para trabalhar em campos de trabalho forçado. Poucos sobreviveram ao fim da guerra.

    A causa
     
    Ao estudar-se os arquivos do KGB descobriu-se que os jogadores do Start que tinham sobrevivido à guerra tinham sido interrogados pela NKVD. De acordo com os jogadores, a denuncia à Gestapo partira do treinador do Rukh, equipa ucraniana colaboracionista com os alemães.
     
    Segundo os testemunhos, Georgi Shvetsov ficara tão irado com a derrota de 8x0 que informara a Gestapo que a equipa do Start tinha vários jogadores que haviam pertencido à NKVD.

    Curiosamente, os três jogadores do Start que haviam feito parte do Lokomotiv Kiev, clube de Shvetsov antes da guerra, não foram acusados pela Gestapo.

    Também Georgi Timofeyev e Lev Gundarev não foram acusados pelos alemães, tendo ambos trabalhado na polícia ucraniana durante a ocupação.
     
    A propaganda, o mito e o filme
     
    No pós-guerra, os colaboracionistas como Timofeyev seriam detidos em gulags, condenados a anos de trabalhos forçados. Os sobreviventes tornaram-se com o passar dos anos em heróis nacionais, sendo apresentados pela propaganda soviética como os sobreviventes do "Jogo da Morte". 

    Com o fim do regime soviético, a memória do jogo acabaria por lentamente desaparecer da imprensa russa e ucraniana.

    Contudo, anos antes, o realizador americano John Huston realizou "Fuga para a Vitória", numa história em que um grupo de prisioneiros de guerra enfrenta uma equipa formada pelos seus carcereiros.

    O enredo do filme é bem distinto da história do Start, mas apesar de Huston em momento algum reconhecer que o filme era baseado na história do jogo da morte, muitos analistas sempre consideraram que a história dos desafortunados jogadores de Kiev seria a principal influência a que os argumentistas do filme haviam recorrido para escrever o argumento, sendo comum haver referências ao filme quando se fala do Jogo da Morte e vice versa

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    (1) Plano de coletivização da agricultura que provocou uma fome que matou cerca de 7 milhões de pessoas. Muitos historiadores apontam o dedo a Estaline por ser o responsável por um genocídio provocado propositadamente para atingir o coração da Ucrânia rural, por norma religiosa, nacionalista, e que desde sempre mostrara sérias reservas às diretivas do regime comunista em Moscovo. 

    (2) A Hungria era aliada da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial

    Comentários

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    Zerozero
    2020-03-26 10h47m por AndreGM
    Parabéns, excelente artigo!
    zerozero
    2020-03-20 04h58m por manueldesousa
    GRANDE trabalho, OBRIGADO!
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