* Chefe de Redação
1. O senhor X é assessor jurídico na empresa Y. Tem lugar na mesa da cúpula diretiva, influência nas decisões de gestão, é unanimemente considerado um dos quatro nomes mais relevantes na SAD da instituição.
2. Durante o período em que exerce essas funções de alta responsabilidade, o senhor X corrompe o funcionário judicial Z com bilhetes, merchandising e convites para áreas VIP nas instalações da empresa Y.
3. A pedido do senhor X, o funcionário judicial Z invade de forma ilícita inquéritos sob segredo de justiça, processos que envolviam a empresa Y e os seus mais diretos concorrentes. Para aceder a documentos reservados, o zeloso funcionário Z rouba palavras-passe e credenciais dos juízes responsáveis pelos mesmos.
4. A Polícia Judiciária e o Ministério Público investigam a relação ilegal, o caso segue para o Tribunal de Instrução Criminal. De forma surpreendente, pelo menos para os leigos, a empresa Y acaba por ficar de fora do julgamento. O MP recorre da decisão, mas o tribunal considera que «os atos das pessoas singulares não podem ser refletidos na pessoa coletiva».
5. A sentença definitiva castiga o senhor X, «o elemento preponderante que desencadeou toda a sequência de crimes», por «um crime de corrupção ativa» e fala em «determinação criminosa» e «reiterada». Ao ser condenado por corrupção ativa, explica a juíza, o senhor X não pode ser simultaneamente punido pelos crimes do funcionário judicial Z, o elemento corrompido.
6. Um crime de corrupção passiva, seis de violação de segredo de justiça, nove de acesso indevido, nove de violação do dever de sigilo, 28 de acesso ilegítimo e um de peculato: esses foram os ilícitos provados pelo tribunal e imputados ao funcionário judicial Z.
Conclusão: o senhor X e o funcionário judicial Z escapam com penas suspensas e multas acessórias, mais ou menos avultadas. Nenhum terá de cumprir pena de prisão e as consequências desportivas são nulas.
Reflexão: ponham de lado a clubite e exerçam a vossa cidadania ao olharem para este processo E-toupeira. Um exemplo tenebroso de uma relação promíscua e perigosa entre um empregado do Estado e uma alta patente de um clube de futebol. Assustador.
Defendo a Justiça, dois dos meus melhores amigos de infância são juízes, mas há conclusões absolutamente incompreensíveis ao olho do cidadão comum e minimamente informado. Uma descredibilização absoluta do pilar mestre da nossa sociedade.
PS: o senhor X (Paulo Gonçalves) trabalhava diretamente com o antigo presidente da empresa Y (Benfica) e com o seu atual líder, Rui Costa. É inverosímil desenhar um cenário em que o bom do doutor Gonçalves tudo tenha engendrado a sós, sem conhecimento dos seus superiores hierárquicos e diretos no futebol. A não ser que todos sejamos totós. Não excluo essa possibilidade.
Não basta conhecer o Direito de trás para a frente, é importante ter a humildade e a sensibilidade de perceber os mecanismos normais de um clube de futebol profissional.