* Chefe de Redação
O sacrilégio é recitado instintivamente, verão após verão. O reforço chega de longe, normalmente da América do Sul, e repete a ladainha.
«Estou muito feliz por assinar pelo [insira o nome], vai servir de trampolim para um clube ainda maior.»
Em 2022, no âmago da era digital, há futebolistas a persistirem nesta ofensa. Sim, isto é uma ofensa aos adeptos do clube que recebe o suposto craque.
Não sei se é irresponsabilidade, ingenuidade, ignorância ou soberba. Mas acontece, ainda e sempre.
Dou o exemplo de Enzo Fernández, apenas por ser o mais recente – certamente, não o último.
O rapaz parte de Buenos Aires, excelente jogador, e o que lhe passa pela cabeça é isto: dizer que, sim senhor, está muito feliz por ir para o Benfica e que o Benfica é um ponto de passagem para algo maior.
Ora, imaginemos isto na vida real, aquela que se vive fora das quatro linhas.
«A minha mulher? Adoro-a, acredito que pode ajudar-me a chegar a uma ainda melhor.»
Sem sentido e profundamente ofensivo, certo? Estamos todos de acordo, a nossa mulher é sempre a melhor.
Vivemos dias perigosos. Doentios. O futebol aparenta ser, aliás, algo de somenos relevância. Uma pandemia, uma guerra, sociedades polarizadas e apoiadas na estupidez de extremos políticos, tanta coisa a assustar-nos.
Talvez por isso, o jogo que amamos nos faça tão bem. Queremos acariciá-lo, sussurrar-lhe ao ouvido, dizer-lhe que ainda é o que idealizámos nos anos 80 e 90 – a minha geração.
Sentimos essa falta de pertença. Os jogadores entram e saem rapidamente das equipas, os miúdos destacam-se no primeiro ano nos seniores e já saltam para os monstros europeus, é honestamente raro identificar fidelidade e lealdade a um emblema. Cada vez mais.
São estes os nossos tempos. Já não há o João Pinto, o André e o Jaime Magalhães, o Pietra, o Diamantino e o Nené, o Venâncio, o Manuel Fernandes e o Vítor Damas, gente capaz de levar para a relva as sensações da malta que não pode passar do cimento das bancadas.
Por tudo isto, a responsabilidade do discurso público é maior. Assinar por um clube e estar a falar já do próximo é a versão desportiva do prazer precoce.
Juízo, cabeça e aconselhamento, é o que se exige a quem chega. Se os futebolistas não têm sensibilidade para perceber isto, a comunicação dos clubes tem o dever de lhes ensinar o beabá da decência.