O futebol é feito de ideias. Muitas. Encadeadas. Algumas umbilicalmente ligadas, e separadas à nascença. Siamesas, mas de costas voltadas. Plantadas, ao lado de palmeiras e ilusões de óptica, no meio do deserto. De língua de fora. A morrer de sede. Boas, porque dificilmente se tornam más, e parece que duram para sempre.
A estas voltamos mais tarde ou mais cedo, como a um porto de abrigo no meio da tempestade. Refúgio de um insucesso que nos devora por dentro. O tempo pode torná-las circunstanciais, datadas, ferrugentas e enferrujadas, aparentemente irrecuperáveis, mas não lhes retira valor.
Há sempre alguém que as estuda, que vira a lâmpada da ideia no quadrado negro de uma história aos quadradinhos ainda por completar no estirador. Veste-as de outra maneira, com roupas modernas e sapatos a fazer pendant. Acrescenta-lhes o seu ponto, twist de Shyamalan sem Bruce Willis e Samuel Leroy Jackson, e revende-as como um novo usado, ou seminovo com garantia. Até podemos enamorar-nos, envolver-nos, deixar-nos seduzir. Mas dificilmente serão para a vida.
As grandes ideias, essas, emocionam-nos profundamente. Vivem em nós, absorvidas pela pele. Tornaram-se carne na nossa carne, preenchem-nos da ponta dos dedos dos pés até à ponta dos cabelos. Não nos abandonam mesmo que tentemos esfregá-las de nós até ao limite da dor e da obsessão. Falamos delas com um brilho nos olhos, repetindo histórias, acrescentando-lhes capas de super-heróis, poderes inimagináveis. Ligamos os pontos naqueles cadernos de passatempos feitos a propósito de viagens de comboio, desde Santa Apolónia, de sul para norte, e não falhamos um.
Não precisámos ser condicionados. Influenciados. Pavlov, o cão e a sineta. Não tiveram de abrir-nos os olhos com espéculos, como a um McDowell enfurecido, a contorcer-se numa cadeira de dentista, antes das drogas, das náuseas e das gotas para lubrificar. Não precisaram de mostrar-nos panfletos a descrever a técnica Ludovico, o pior nome possível nessa história de Burgess e Kubrick. Certamente, um tipo qualquer de bigode, chapéu de coco e casaco remendado, sem nada de interesse para partilhar.
Encostamo-nos para trás de bom grado, cruzamos as pernas, e suspiramos, de queixo à procura da mão em que se apoia. Seja Krol a ligar a Piet Keizer pela esquerda, Cruijff a puxar Vogts pela trela até à grande área, ou Neeskens a comandar o meio-campo ao lado de Haan e Mühren. Um totaalvoetball eterno com o sotaque romeno de Kovacs.
Van der Sar a mandar subir. A bola no pé de Rijkaard para o pé de Reiziger, e depois Danny Blind. De Boer. Van Gaal a tirar notas no banco. O outro De Boer ao lado de Seedorf, a chamar Davids. A bola a chegar a Finidi, que olha para Litmanen e Overmars. Van Gaal a franzir o sobrolho, e a partir o bico do lápis. Godverdomme!
Por que gostamos tanto do Ajax?
Por que aplaudimos de pé a roleta de Tadic, a evocar o fantasma de Zidane em pleno Bernabéu, antes de entregar a Neres a dissolução do campeão europeu. Por que começamos aos saltos com o livre de Schöne, com Courtois a pregar-se a si próprio ao chão com o passo dado em frente?
Qual a razão de gostarmos tanto que os judeus de Amesterdão sejam felizes, que saltem dos seus pedestais na História e ganhem de novo vida, reencarnados? Por que queremos que Tadic seja também Bergkamp, Dolberg tenha a eficácia de Ibra, Van Basten e Luis Suárez juntos, Ziyech apareça tão fiável como Sjaak Swart, e Frenkie de Jong assuma o talento de Sneijder, Van der Vaart e Eriksen? Que gozo nos dá que Daley Blind seja tal e qual Danny, tal pai, tal filho.
Kluivert. Kanu. Pienaar. McCarthy. Arveladze. Roy. Molby. Lerby. Todos eles jogaram em Madrid. E muitos mais com eles.
Não só os nomes, mas o futebol tricotado. Tapeçarias inteiras, verdadeiras obras de arte, expostas nas paredes do salão de festas do jogo. Um clube que nos deu tanto, e esse mesmo tanto tem ramificações infindáveis. Tantos nomes, tanta beleza. Tantos jogos. Tantos golos. Milhares de jogadas. Apaixonámo-nos, acreditámos num romance sem fim.
Wij houden van je, Ajax! Ik hou van Ajax!
Eu vi Cruijff em campo no Bernabéu.