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RECORDAR | Milhões não chegam à distrital sem passar no tribunal: as linhas tortas da solidariedade

2024/03/14 14:30
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Em dia de Greve Geral dos Jornalistas, recuperamos alguns trabalhos publicados pela redação do zerozero que tiveram impacto direto na sociedade. Acreditamos que o nosso trabalho pode fazer a diferença e que não há jornalismo sem pessoas para escrever histórias e sem pessoas para as ler. Por um jornalismo melhor e com mais condições para quem escolheu fazer desta nobre arte a sua profissão!

Reportagem por Ricardo Miguel Gonçalves, originalmente publicada no dia 8/9/2023


Poderosos clubes da Premier League abrem os cordões à bolsa, investindo o que muitas vezes é apenas uma gota no mar dos seus megalómanos orçamentos, e iniciam uma onda que viaja até costas distantes. No recente final de mercado, os salpicos chegaram a Tires e à Ericeira.

O que têm em comum essas duas localidades? Bastante, na verdade. São casa para dois dos emblemas que integram a 1ª Divisão Distrital de Lisboa, prova em que se defrontam daqui a um mês, e que acabaram de beneficiar com as transferências milionárias de um goleador prolífico e de um médio explosivo, para o Everton e o Manchester City, respetivamente. Não parece necessário especificar de quem falamos.

Se algo chega à União de Tires e ao Ericeirense é devido à FIFA, que desde 2001 distribui cinco por cento do valor de cada transferência pelos clubes de formação desse jogador, em função do período passado em cada entre os 12 e os 23 anos (0,25 por cento por ano entre os 12 e os 15; 0,5 por cento por ano entre os 16 e os 23).

Chama-se Mecanismo de Solidariedade e tem um objetivo nobre, mas nem sempre corre da melhor forma para os mais pequenos, que podem dar por si a batalhar um Golias pela via judicial. Mesmo quando corre bem, existem limitações...

Beto, uma «fonte de coisas boas»

Comecemos em Tires, uma vila do concelho de Cascais onde nasceu, no que ao futebol diz respeito, um dos jogadores que melhor personificam a importância de uma melhor distribuição dos valores das transferências milionárias, que tanto contrastam com a dura realidade do futebol além-elites. Falamos de Norberto Bercique Gomes Betuncal.

Aos 25 anos, Beto, como é conhecido pelos amigos e público geral, chegou à melhor liga do planeta depois de ter brilhado em Portugal e em Itália, numa viagem trilhada por caminhos atípicos. A sua evolução não foi testemunhada em seleções jovens nem nos holofotes das melhores formações do país, mas sim no clube local, onde chegaria a partilhar o futebol sénior com um emprego num restaurante de fast food

Marcou na estreia pelo Everton @Getty /
«Há algumas formas de chegar ao futebol profissional, mas o importante para os jogadores é a continuidade e a estabilidade. Muitas vezes os clubes não contratam o Manuel, Joaquim ou António, mas sim alguém que dizem que tem formação num Benfica ou Sporting. Isso nunca aconteceu com o Beto, que foi sempre "o Beto" e teve de provar a qualidade dele sempre.»

As palavras são de Fernando Lopes, presidente da União Recreativa e Desportiva de Tires, que esteve à conversa com o zerozero e conta-nos todo o orgulho que tem em Beto, com quem ainda fala «praticamente todos os dias» via whatsapp. «Ele era um rapaz muito focado, com grande ambição e que conseguiu tornar um sonho na realidade. Há poucos jogadores como ele e ainda menos com um percurso semelhante ao dele», atirou.

A transferência para o Everton foi consumada depois de um acordo superior a 30 milhões de euros e desse bolo, feitas as contas por baixo, a União de Tires tem direito a 825 mil euros. O dirigente aponta esses fundos como ferramenta importante para acelerar projetos já antigos, como um complexo desportivo com mais um campo relvado, mas também fala da responsabilidade que chega no mesmo saco:

Presidente do clube falou ao zerozero @Arquivo Pessoal - Fernando Lopes
«Qualquer valor recebido obriga-nos a utilizá-lo de forma a que a formação beneficie. Temos projetos nesse sentido já há muito tempo e esperamos que isto nos possa ajudar um bocadinho a alavancar ou a fazer pressão em quem já nos ajuda com as infraestruturas. Colocar dinheiro à frente e dizer "esta é a nossa contribuição"», atirou, salientando: «O Beto tem sido uma fonte de coisas boas para nós, a compensar o esforço que também tivemos com ele quando nunca imaginávamos nada disto.»

Sem colocar em causa a importância do mecanismo de solidariedade da FIFA, mesmo que este ainda não tenha beneficiado o clube da forma que devia (já lá vamos...), Fernando Lopes refletiu sobre algumas limitações:

«Estas questões ainda têm muito por onde evoluir, porque só contamos o desenvolvimento dos jogadores a partir dos 12 anos quando, para um clube da nossa dimensão, o normal é que eles saiam de cá aos sete, oito ou nove anos. É com essas idades que começam a ser chamados pelos clubes maiores. Não está totalmente ao nosso alcance desenvolver um projeto de formação que recompense o clube quando este é o processo normal.»

Beto mantém proximidade ao clube que o formou @URD Tires

 

O dinheiro que nunca chegou a Tires

Fora lacunas e imperfeições, o verdadeiro problema do mecanismo de solidariedade da FIFA surge quando este se torna numa batalha de pequenos contra gigantes, bem longe dos relvados. A União de Tires sabe bem o que isso é, uma vez que ainda se encontra em tribunal para tentar receber fundos que a Udinese nunca pagou, relativos à mudança de Beto de Portimão para Itália. Uma história de frustração que inclui falhas de comunicação, covid, criptomoeda e contas bancárias alheias...

qQuando nos dizem que já pagaram, pedimos confirmação e aí ficámos a saber dessa transferência para uma conta que não pertencia ao clube...
Passamos a explicar. A equipa de Udine devia 180 mil euros ao emblema português e optou por negociar um pagamento em três tranches, com juros: uma de 94 mil euros, com o dia 31 de outubro de 2021 como data limite, mais duas de 47 mil cada. Esses primeiros 94 mil euros nunca chegaram a Tires, sabe o zerozero, e a Udinese, quando questionada, insistiu que tinha feito o pagamento.

«Alegadamente fizeram, em dezembro [2021], uma transferência bancária desse valor para uma conta à ordem do Montepio. O Tires não tem conta nesse banco. O dono dessa conta é um tal de Bruno Curado, que se comprometeu a colaborar em tribunal e que diz ter recebido o dinheiro com ordens para transformar em bitcoin e devolver, tanto que foi, pelo que sabemos, devolvido a um dirigente da Udinese. Foi tudo uma grande aldrabice», atirou Fernando Lopes, à conversa com o nosso jornal.

Beto foi o artilheiro dos bianconeri @Getty /
Mesmo que tivesse sido enviado para a conta certa, seria com meses de atraso, justificados pela Udinese com o facto do suposto responsável pelo dossiê ter tido covid. Antes da via judicial, o clube português ainda tentou a ajuda da FIFA, mas essa não chegaria sem custos associados:

«A FIFA disse que como tecnicamente a transferência foi feita, nós teríamos de reclamar. A reclamação teria um custo de 25 mil euros, que nós não temos, por isso não reclamámos na FIFA e sim nos tribunais, onde estamos a aguardar desde janeiro de 2022. É esta a sina dos mais pequenos», explicou.

A segunda tranche, de 47 mil euros, foi já paga, enquanto a terceira está agendada para o final deste mês. «Demos um IBAN do Millenium, como eles foram parar ao Montepio eu não sei nem percebo», lamentou o presidente do emblema de Tires, antes de deixar uma nota de otimismo:

«Contamos receber. De um lado ou de outro, alguém terá de assumir a responsabilidade, a não ser que o tribunal se coloque do lado dos mais poderosos.»

Um cityzen como símbolo da formação

11 vezes internacional por Portugal @Catarina Morais / Kapta +
Cerca de 50 quilómetros para norte há um clube que disputa a mesma divisão e que também desembainhou a calculadora no final deste mercado, quando soube que Matheus Nunes rumou ao Manchester City por 62 milhões de euros. As contas são de um encaixe milionário no Ericeirense, onde a tal calculadora nem teve tempo de ganhar poeira, uma vez que o médio se transferira do Sporting para o Wolverhampton apenas um ano antes.

Os fundos entram não para mudar o rumo do clube, mas para acelerar um «sonho» que já existia. O foco é a formação e continuará a ser, para que no futuro possam haver mais histórias semelhantes à de um internacional português que acaba de assinar pelo campeão europeu.

«A nossa visão tem muito a ver com a criação de condições para continuar a formar bem. Só assim o nosso projeto faz sentido. Esses valores vão ser todos investidos nas condições de trabalho, porque até hoje temos à volta de 400 miúdos da formação e só um campo para trabalhar», começou por dizer Mário Claro, presidente do Ericeirense, ao nosso jornal. «Às vezes fazemos milagres para lhes dar condições. Num clube da nossa dimensão, humilde, isto ajuda a equilibrar as contas e permite concretizar sonhos antigos».

Ao contrário da experiência da URD Tires, os acordos com o clube da Ericeira têm sido cumpridos, mesmo que há um ano o Wolves tenha levado as contas ao detalhe e excluído os períodos extra-época em que os jogadores não estão em atividade, ou seja, entre um e meio e dois meses por ano. Mário Claro, de resto, também nota algumas carências neste mecanismo, que desenha a linha numa idade já avançada:

«As regras estão um bocadinho desatualizadas, na minha perspetiva que é a de um amante do futebol distrital. Nós já começamos a trabalhar com jogadores muito cedo e os melhores não ficam cá até aos 12 anos».

Nasceu no Brasil e mudou-se para a Ericeira na juventude @Ericeirense FC
«A situação do Matheus é extraordinária, porque ninguém repara nele e ele fica cá um pouco "perdido", felizmente para nós já que ele teve sucesso na mesma e conseguiu ajudar-nos, primeiro em campo e agora fora do campo. Se fizéssemos as contas, os seis anos do Matheus também são cumpridos por quem cá está entre os 6 e os 12 anos, mas por esses nunca seremos recompensados. Os clubes não profissionais são muito prejudicados nesse sentido, e digo-o mesmo sabendo que eu, como presidente, já sou um dos mais beneficiados com isto», analisou o dirigente.

A imperfeição do mecanismo de solidariedade da FIFA é naturalmente o resultado da existência dessa mesma iniciativa, que continua a trazer mais positivos do que negativos. É uma prova de que a aposta na formação não é exclusiva dos que se intitulam de grandes, assim como Beto e Matheus Nunes podem inspirar muitos jovens com a sua garantia implícita de que é possível chegar ao topo sem apressar uma saída de casa.

Comentários

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motivo:
União de Tires
2024-03-14 14h47m por moumu
Que o dinheiro da 3ª tranche lhes chegue direitinho às contas que faz falta e fazem muito bem em põr a Udinese nos tribunais relativo à 1ª tranche, espero que lhes seja dada razão.

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