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    Memórias de Londres no dia da morte do italiano

    «No Italia90 chamaram-me drogado e gay»: a entrevista de Rui Miguel Tovar a Vialli

    E1

    [No dia da morte de Gianluca Vialli, o zerozero publica uma entrevista feita ao italiano pelo jornalista Rui Miguel Tovar, em janeiro de 2011]

    Camisola azul, com uma risca branca, outra vermelha, uma preta e mais uma branca na horizontal. Patrocínio da ERG. O símbolo do clube é a silhueta de um homem a fumar um cachimbo. Lindo.

    Feito a pensar no Mundial-90, o estádio é pós-moderno com quatro torres cilíndricas enormes em cada canto do relvado. Nunca fui a Génova, nem preciso. Naquele tempo, e falo de 'late eighties', basta uma moeda de 25 escudos para a realidade se sobrepor ao imaginário. É simples: pede-se ao pai a tal moeda sem desvendar o porquê e fazem-se 11 círculos à volta da dita cuja num papel em branco. Depois, é só pintá-los ao nosso gosto (sim, azul com uma risca vermelha e outra preta na horizontal, com o patrocínio ERG), recortá-los com aquele jeito de criança sem vocação para trabalhos manuais e colá-los nas caricas. Sejam elas Sagres, Super Bock, Coca-Cola, Sumol, TriNaranjus.

    A moeda de 25 escudos foi feita à medida para isso. Agora, a última parte: escrever os nomes dos jogadores, um a um. 1 Pagliuca, 2 Mannini, 5 Pari, 6 Vierchowod, 3 Lanna, 4 Katanec, 7 Cerezo, 8 Mikhailichenko, 9 Vialli, 10 Mancini e 11 Dossena. Não há como enganar, é a equipa da Sampdoria.

    Isso já foi há 20 anos. Agora, estamos em Londres, Janeiro de 2011. Intervalo do Chelsea-Manchester United. Aqui em baixo, à entrada para o relvado do Stamford Bridge, vislumbra-se uma silhueta que remete para o passado. Um careca com o ar mais despreocupado deste mundo atravessa o corredor e espera pelo toque do apresentador. “E agora, peço o vosso aplauso para um nome consagrado do Chelsea: Gianluuuuuuuuuuuuuuuuca.” Os adeptos concluem, lógico: “Vialliiiiiiiiiiiiiii.” E lá aparece ele, mais tímido do que nunca.

    O apresentador quer dar-lhe o microfone, Vialli recusa amigavelmente. Só aplaude para as bancadas, mete um cachecol do Chelsea ao pescoço, meia volta e volver. De novo, no túnel. Emocionado.

    Abordamo-lo num italiano macarrónico. Ele olha-nos com a sobrancelha franzida, como se falássemos a língua de Melmac. Hey, a culpa é do Alf. “Agora não. Fica para a próxima.” Olha, obrigadinho ó Vialli. A próxima... Para a próxima, digo a equipa da Sampdoria das caricas: 1 Pagliuca, 2 Mannini, 5 Pari, 6 Vierchowod, 3 Lanna, 4 Katanec, 7 Cerezo, 8 Mikhailichenko, 9 Vialli, 10 Mancini e 11 Dossena.

    Passam-se 24 horas. Quarenta e oito. Setenta e duas.

    É sexta-feira, dia de ir ao O2 Arena e ver basquetebol. Ou melhor, NBA. Acreditem, é um desporto diferente. É o primeiro jogo da NBA fora dos States. Jogam Knicks vs. Raptors. Sobem-se uns degraus, fintam-se umas pessoas e pára-se na segurança apertada. Tiram-se chaves, cartões, papel de alumínio de chocolates comidos há horas, dias, semanas. Tudo isto só para passar pelo detetor de metais. Recebemos uma pulseira colorida, verde fluorescente. E a primeira pessoa que vejo é quem? Vialliiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.

    Abro ligeiramente os braços como quem diz “então meu?” e ele nem abranda o passo. Bem, aí não há hipótese: Pagliuca, Mannini, Pari, Vierchowod, Lanna, Katanec, Cerezo, Mikhailichenko, Vialli, Mancini e Dossena. Ele pára e olha. Parece o tópico de aprendizagem para atravessar uma linha de comboio sem guarda e é tão-só um jornalista. Para Vialli, deve ser a mesma coisa.

    Gianluca Vialli - És italiano?

    Rui Miguel Tovar - Não, português.

    GV - Ma come?

    RMT - Sim, sou português [e mostro-lhe o cartão de cidadão, o primeiro que tiro do bolso; ainda bem que não foi o do metro]

    [ele olha para aquilo e faz aquele ar ‘e então?’]

    RMT - E então que estive em Stamford Bridge, chamei-o e o Vialli disse “para a próxima” [falo em inglês, igualmente macarrónico por nervosismo, pelo som alto da música, pela confusão de pessoas e, damn it, porque sim]

    GV - Eu?

    RMT - Sim, o Vialli.

    GV - Ok. Diz lá, mas rápido que o jogo começa daqui a nada.

    RMT - Hãããããã [agora é português macarrónico]

    GV - Vá, eu começo. Como é que tu sabes essa equipa da Sampdoria?

    RMT - É a equipa que perdeu a final da Liga dos Campeões com o Barcelona. 

    GV - Enganas-te. Não jogou o Dossena. Foi o Bonetti.

    RMT - Hãããããã [agora é italiano, inglês e português macarrónico, todos juntos, ao vivo e a cores: as da Sampdoria, azul, branco, vermelho e preto]

    GV - Mas boa, estiveste bem. Quantos anos tinhas em 1992?

    RMT - 15!

    GV - 15?? Ma come? E viste a final?

    RMT - Yep [voltei ao mesmo: inglês macarrónico]. O Vialli saiu pouco antes do golo do Koeman.

    GV - Vero. Queria tanto estar lá dentro depois do golo deles, mas paciência. Já foi uma proeza chegar à final.

    RMT - Ainda por cima em Wembley, como a deste ano [eh lá, agora consegui dizer duas seguidas].

    GV - Hã-hã. O Barcelona tinha uma equipa superior à nossa. Com mais história na Europa, mais currículo. E depois Stoitchkov, Laudrup, Koeman, Guardiola.

    RMT - A Samp tinha os gemelli del gol, Vialli e Mancini.

    GV - Ahahah, sim.

    RMT - Como é que se complementavam?

    GV - O Mancini era mais técnico que eu, sem dúvida. Era pelo futebol artístico, estético. Eu era mais determinado, raçudo, vá. Ele era melhor do que eu, mas eu era mais forte do que ele, entendes?

    RMT - Hã-hã. E mais?

    GV - Mais? Olha uma coisa, o Mancini era o jogador que aparecia nas concentrações com folhas de papel numa mão e canetas noutras.

    RMT - Para quê?

    GV - Desenhava equipamentos para a Sampdoria. Era o seu hobby. Ainda bem que ele ficava no quarto do David Platt [risos]

    RMT - E quem era o teu maior amigo?

    GV - Daquela equipa ou do futebol?

    RMT - Bem, já que perguntas: do futebol?

    GV - Zenga. Dávamo-nos muito bem. Houve alturas até em que eu pensava que me casaria com o Zenga se ele fosse uma mulher [é rir a bom rir].

    RMT - E da Sampdoria, quem era o teu melhor amigo?

    GV - O Bonetti.

    RMT - Ah, o Dossena!

    GV - Isso [gargalhadas e toque no ombro, como quem diz ‘tá boa’]. Éramos inseparáveis. Fazíamos mil e um planos para quando acabássemos a carreira: ir ao Peru, os vestígios da civilização maia, a Terra Santa, o Deserto, a Índia, a Austrália.

    RMT - E planos com o Mancini?

    GV - Pfffff. Nãaaa. Ele era casado e, além disso, somos muito diferentes. Eu durmo uma noite ao relento. Ele tem de ser num hotel cinco estrelas. Ou seis [mais uma gargalhada]. Outros tempos. Na altura, sonhava em aprender inglês, tocar saxofone, jogar golfe. Havia todo um mundo à minha frente. Entretanto, já se passaram 20 anos. Joguei na Juventus e vim parar ao Chelsea, onde até fui treinador. São coisas que não se planeiam. Simplesmente acontecem. Se se planeasse…

    RMT - Se se planeasse, o Mundial-90 seria diferente?

    GV - Sim, esse Mundial-90 não foi bom para mim. Vinha de lesão e joguei pouco. As figuras da Itália foram, sem dúvida, Roberto Baggio e Toto Schillaci. 

    RMT - Sofreu com o facto de ser suplente?

    GV - Sofri, e não da maneira que se pensa. Não estava bem fisicamente, portanto acho bem que um outro jogador me tenha assado à frente. No caso, o Schillaci. Acontece que o futebol em Itália era vivido como uma febre. A imprensa e os tiffosi sufocavam-nos. Davam-nos uma importância extrema. É só um jogo de futebol. Mas não, há pessoas que fazem por parecer um jogo de vida ou morte. Durante esse Mundial, chamaram-me de tudo: gay, seropositivo, drogado e sei lá o que mais. Foram momentos difíceis.

    RMT - O Vialli também tem a seu favor ser uma pessoa bem-disposta. Não é verdade que era um especialista em imitar vozes e enganar pessoas pelo telefone?

    GV - Como é que sabes?

    RMT - O meu pai comprava o “Guerin Sportivo” [revista italiana com projecção internacional nos anos 80 e 90].

    GV - E como é que não sabes falar italiano?

    RMT - Hããããããããã [português macarrónico]

    GV - Adorava fazer isso das vozes. Era funny! Uma vez, telefonei ao director-desportivo da Sampdoria a fazer-me passar por um jogador de futebol de outra equipa. Perguntei-lhe: ‘Dottore, é verdade que está interessado em mim?” Ele foi na conversa e contou-me tudo, tintim por tintim. Todos os pormenores do contrato. Todos. O mais engraçado é que esse jogador acabou mesmo por assinar pela Sampdoria.

    RMT - Quem?

    GV - Bonomi. Vá, agora acabou. O jogo vai começar.

    Passam-se 24 horas. Volta-se ao O2 Arena para o segundo jogo da NBA. Mais seguranças, mais escadas, mais papéis de alumínio perdidos nos bolsos. E quem lá está outra vez? Isso mesmo, Vialiiiiiiiiiiii. Vejo-o pelo canto do olho e não o incomodo. Já chega. Basta [em italiano perfeito]! E trauteio 1 Pagliuca, 2 Mannini, 5 Pari, 6 Vierchowod, 3 Lanna, 4 Kata[1]nec, 7 Cerezo, 8 Mikhailichenko, 9 Vialli, 10 Mancini e... 11 Bonetti.

    Alguém tem aí uma moeda de 25 escudos, por favor? Please? Per favore?

    Itália
    Gianluca Vialli
    NomeGianluca Vialli
    Nascimento1964-07-09
    Nacionalidade
    Itália
    Itália
    PosiçãoAvançado (Ponta de Lança)

    Fotografias(4)

    Vialli - Juventus

    Comentários

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    motivo:
    .
    2023-01-06 16h37m por Mastarado
    Maravilhoso, Rui!
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