Uma história que dava quase para um filme daqueles de Hollywood, mas que, garante o protagonista, está longe de um fim. Depois de uma lesão o ter afastado dos relvados, ao nível de jogos oficiais, nos últimos 27 meses, o central português Miguel Rodrigues fez no passado fim-de-semana o seu regresso e logo na estreia na nova Liga 3. Se isto por si só não era uma boa notícia, o defesa marcou o golo da vitória do União Santarém... aos 90'+5.
Com formação dividida pelo Fátima, CADE e União de Leiria, Miguel Rodrigues era já um nome bem conhecido do futebol português, contando com passagens pelo Nacional, Rio Ave e Estoril, em Portugal, e pelos gregos do Panetolikos. Contudo, no verão de 2019 o azar bateu-lhe à porta e uma lesão que aparentava ser normal, tornou-se no maior desafio da sua carreira, afastando-o dos relvados por mais de dois anos.
Contudo, o central português ultrapassou esse grande obstáculo que lhe surgiu à frente e 27 meses depois voltou a fazer um jogo oficial. E não havia melhor forma de regressar. Com a braçadeira de capitão no seu braço esquerdo e com a partida entre o Oriental Dragon e o União de Santarém empatada a uma bola já nos descontos, Miguel Rodrigues subiu à área adversária e, de cabeça, fez o 1x2, já aos 90'+5. O zerozero esteve à conversa com o central e este abriu o livro sobre o longo processo de recuperação, onde admite ter sofrido de depressão e ter pensado em desistir várias vezes, e contou também como foi o regresso à competição.
Tudo começou no verão de 2019. Na altura, Miguel Rodrigues tinha acabado de regressar ao Rio Ave, depois de um empréstimo de meia temporada ao Estoril - na altura na Segunda Liga - e começou a sentir algumas dores na perna no início da pré-temporada. Como é habitual nessa altura, o clube vila-condense realizou uma série de testes para controlar os jogadores a nível físico e Miguel Rodrigues tinha mostrado ser um dos mais fortes ao nível dos adutores (zona onde teve queixas), o que o levou a desvalorizar o sucedido.
Fora dos planos de Carlos Carvalhal, o central acabou por ser enviado para a equipa sub-23 e foi aí que as dores aumentaram, devido «à mudança de piso em que treinavam e jogavam», uma vez que era diferente jogar e treinar em sintético e em relvado. Este acabaria por ser diagnosticado com uma pubalgia (inflamação da púbis).
«O problema é que a púbis é a inserção de muitos ligamentos e muitos tendões, como o adutor, abdominal e tudo mais. Se tens uma inflamação no osso, que era o caso, dói em todo o lado. É a origem de tudo. Se não for tratado e diagnosticado logo, acaba por se espalhar e ser muito mais difícil de tratar, mesmo que se vá tratando com medicação. Foi o que aconteceu comigo na altura», explicou ao zerozero.
«Quando senti isto acabei por parar, mas voltava sempre. O aspeto psicológico teve muita influência, porque eu estive seis meses em que treinava sozinho e não foi fácil. Não se estavam a preocupar comigo, nem como pessoa. Perdi muita massa muscular e quase entrei em depressão, porque não estava nada bem. Não foi nada fácil», acrescenta.
Passados seis meses em que não sentiu o apoio da parte do departamento médico e dirigentes do Rio Ave, Miguel Rodrigues decidiu dar «um murro na mesa» e acabou por rescindir contrato com os vila-condenses, regressando para Leiria e para junto da sua família para prosseguir a sua recuperação. Contudo, como se os contratempos não fossem suficientes, esse período coincidiu com a altura em que a pandemia de Covid-19 chegou a Portugal e, depois de dois meses (janeiro e fevereiro) a melhorar, acabou por ter que voltar a parar por três meses, o que atrasou todo o processo.
Miguel tentou regressar aos relvados após mostrar algumas melhorias, mas sentia sempre algum desconforto e por isso foi para Lisboa procurar ajuda profissional. Depois de fazer fatores de crescimento - um tratamento com plasma do sangue, injetando-o na zona das dores para acelerar a recuperação - sem sucesso, teve mesmo que ser operado, seguindo-se um novo e longo período de recuperação, onde fez trabalho individual numa clínica durante quatro meses.
Por esta altura, já estávamos em janeiro de 2021. A Miguel faltava ainda a fase final da recuperação, em que deixava de trabalhar de forma individual e regressava aos treinos conjuntos, em equipa, num relvado. Para isso, beneficiou da ajuda da União de Leiria, clube onde terminou a sua formação e fez a sua estreia enquanto profissional.
«Consegui aguentar-me, com muito trabalho diário durante três ou quatro meses e depois surgiu a possibilidade de fazer a fase final, de reintegração, na União de Leiria, porque o Luís Nascimento, um dos chefes da clínica onde eu estava, era também do departamento médico do Leiria. Falámos com eles para essa fase, porque me faltava interagir com os colegas, treinar normalmente, e eles aceitaram, até porque eu tinha feito lá a minha formação e eles tinham um grande carinho por mim. Fiz essa fase final da recuperação lá entre fevereiro e maio», explica, falando com carinho da ajuda que lhe foi prestada pela sua antiga equipa e por Luís Nascimento, seu amigo e membro do departamento médico do clube leiriense.
«O mister Acácio soube que eu queria ficar perto de casa e perto de casa só havia o União Santarém. Ele ligou-me, falou comigo e mostrou-se muito entusiasmado em ajudar-me. Mesmo eles acreditando em mim, é sempre mais fácil ao ver, é natural. Havia alguma desconfiança quanto à minha situação, por isso não houve mais ofertas. Aceitei, queria estar perto de casa, da família e não pensar em coisas mais à frente do que realmente estava. Jogar e voltar a desfrutar do futebol, ser feliz. Eles sabiam do sonho que tinha de jogar com o meu irmão mais novo, o Rui Rodrigues, e jogaram com isso», conta-nos.
Com passagens por clubes históricos portugueses e até pelo futebol internacional, Miguel Rodrigues não viu a ida para a Liga 3 como um passo atrás na carreira, mas sim como o «passo certo, porque é o passo seguro». Para o português, nesta altura da sua carreira o ideal é «dar passos seguros e não dar passos a pensar em dar logo mais três ou quatro», uma vez «que pensar em voltar a desfrutar, não ter dores e jogar», e logo num sítio perto de casa, onde gostam dele, «com um grande treinador» e a jogar com o seu irmão... «Melhor era impossível», atira.
De volta ao ativo e recuperado da lesão, restava agora a Miguel Rodrigues apenas voltar, oficialmente, aos relvados. O central já havia participado em encontros amigáveis ao serviço do União de Santarém, mas teve que esperar até ao último fim de semana (14 e 15 de agosto) para regressar oficialmente à competição, e logo com a estreia do seu novo clube na nova Liga 3.
«Antes de entrar para o campo parecia que ia jogar uma eliminatória da Liga dos Campeões, até me emocionei. Estava com aquela sensação na barriga, mas todos me deixaram muito confortável. Entre eles, acordaram dar-me a braçadeira nesse jogo para me homenagear. Comecei logo a chorar, foi uma vergonha, parecia um menino. Disse-lhes logo que estava com uma boa sensação para aquele jogo. Foi um dia marcante, mas foi apenas o início de uma coisa bonita», descreve-nos o defesa.Essa emoção passou para dentro das quatro linhas. Miguel não esconde a felicidade que sentiu ao voltar finalmente a jogar. Emoção essa que foi exponencialmente aumentada à beira do apito final. Foi do centro da defesa que Miguel viu o seu colega de equipa marcar o primeiro golo da partida ao minuto 28 e do mesmo local viu Lamine Bá, do Oriental Dragon, empatar o jogo ao minuto 81. Estava tudo em aberto e, pouco depois do empate, Miguel Rodrigues até podia ter feito o 1x2, mas falhou, acabando por guardar esse momento para os 90'+5, onde se deu uma explosão de alegria, como relatou ao nosso jornal.
«Nós marcámos primeiro, depois sofremos e antes ainda de marcar nos descontos tive uma falha ao segundo poste... Eu faço aquilo em 99 de 100 vezes. Logo de seguida marquei e pensei que aquilo estava mesmo escrito. Senti-me abençoado. Depois do que passei ter um regresso assim, voltar a sentir-me bem novamente. Estou muito contente», explica, sem esconder a felicidade nas suas palavras. Veja o momento:
Quanto ao futuro, Miguel assume que «gostava muito de voltar aos palcos onde já esteve», mas prefere ir com calma, desfrutar, não colocar esse tipo de pressão e manter o mesmo nível de empenho, dando agora prioridade aos objetivos da equipa, o União Santarém. No entanto, considera que pode ser considerado um exemplo para pessoas que tenham passado por situações semelhantes em que bateram no fundo e deixa um conselho para o que pode ajudar.
«Não gosto de falar no “Eu”, falo sempre no “Nós”. Por isso não fui só eu que recuperei, foi toda gente que me acompanhou. Se alguém tem um problema, nunca o vai conseguir ultrapassar sozinho, porque vai haver dias em que não vai conseguir e serão essas pessoas que vão dar força. Há sempre mais dias maus do que bons quando se tem problemas e eu tive muita sorte de ter uma base forte e sólida. Eu sou a cara de felicidade da resiliência de muita gente», conclui.
1-2 | ||
Lamine Bá 81' | Diogo Motty 28' Miguel Rodrigues 90' |