A analogia entre cinema e futebol só não é perfeita no caso da seleção da Guatemala porque nunca disputou um único Mundial na sua história. Na gaveta ficam guardados os muitos takes que, por falta de qualidade, continuam sem ver a luz do dia. As mudanças na equipa foram constantes. Realizadores e produtores saíram, outros entraram, assim como alguns membros do elenco, mas houve um ator que se manteve por longos anos.
O grande protagonista, para o qual eram dirigidos todos os holofotes. Ator principal de seu nome Carlos Humberto Ruíz Gutiérrez, El Pescadito, o super-herói guatemalteco que detém o título de melhor marcador de fases de qualificação para Campeonatos do Mundo.
Um jogador diferente
Carlos Ruíz nasceu num dos bairros mais problemáticos da Cidade da Guatemala. Em Bellos Horizontes, Zona 21 da capital, a pobreza era abundante e comum a todos. Ora, e como muitos miúdos do seu bairro, Ruíz refugiou-se no antídoto «mais barato» para esquecer os problemas. Uma espécie de bola de futebol fazia milagres e bastava apenas o mínimo para que as chamuscas, ou «peladinhas» entre amigos, durassem dias a fio.Foi neste meio que cresceu El Pescadito. Um meio que, para além de uma oportunidade no mundo do futebol, permitiu o seu crescimento enquanto homem. As dificuldades fizeram com que a força de lutar contra o sistema se tornasse num bem maior. A palavra corrupção nunca fez parte do seu dicionário e a defesa dos diretos dos futebolistas esteve sempre em primeiro plano, mesmo quando a fama de bad boy perseguia, de forma constante, a sua carreira.
Da Guatemala… para os Estados Unidos
Com 12 anos, Ruíz rumou ao CSD Municipal, um dos maiores clubes do país, e aos 16 estreou-se como profissional na primeira divisão guatemalteca. Seguiram-se vários anos de sucesso, até que, nos Jogos Pan-Americanos de 1999, disputados em solo canadiano, a expulsão de que foi alvo, por altercações graves com um árbitro numa partida da fase de grupos, estampou-lhe, no imediato, o rótulo de «menino rebelde». E o certo é que a CONCACAF revelou mão pesada, aplicando uma suspensão de seis meses válida para toda e qualquer atividade relacionada com o futebol.
No entanto, e apesar do percurso da Guatemala na competição ter sido bem modesto, a sua presença no Canadá serviu para que, mais tarde, novas oportunidades batessem à porta.
O PAS Giannina, que até então militava na primeira liga grega, entrou em ação, e, através de uma cedência temporária, Ruíz abraçou a primeira aventura no estrangeiro. Um ano de altas expectativas, mas que se tornou num autêntico fracasso. Foram apenas quatro partidas disputadas, sem qualquer golo marcado, que lhe valeram um bilhete de regresso a casa no final da época.
Em 2001, El Pescadito guiou o CSD Municipal à conquista de novos títulos, graças aos 15 golos marcados em 24 encontros, e, para além de melhor marcador da equipa, tornou-se na principal atração do campeonato. Após um ano em cheio e depois de várias observações positivas, o maior clube do Estados Unidos, Los Angeles Galaxy, avançou para a transferência definitiva junto dos responsáveis guatemalecos.
De um dos países mais pobres da América do Norte para a famosa «terra das oportunidades», num só ano. A viagem de sonho para qualquer futebolista. Tinha, Ruíz, 22 anos de idade.
O estrelato inicial, o elogio de Beckham e a faceta de justiceiro
Curioso que, nessa mesma temporada, o «karma» marcou presença… e de que maneira. Os Galaxy venceram todas as competições internas e El Pescadito marcou em quase todos os terrenos. Dos seus pés surgiu o «golo de ouro» que permitiu à sua equipa sagrar-se campeã nacional pela primeira vez na história. Foi o melhor marcador da MLS, com 24 golos em 26 jogos, e, em todas as provas, o número de golos igualou o número de encontros disputados (32 em 32). Venceu dois prémios individuais, o de «Jogador Mais Valioso do Ano» e o de «Melhor Marcador» e deu início a um estatuto de lenda num clube que recebeu ilustres como Landon Donovan e… David Beckham.
O próprio médio inglês, apesar de só ter coincidido com Ruíz em 2007, já na segunda passagem do mesmo pelo emblema californiano, chegou a admitir que caso o avançado guatemalteco fosse europeu, seria reconhecido imediatamente como um craque a nível mundial.
Seguiram-se, então, mais duas temporadas de LA Galaxy ao peito com menor fulgor, ainda que em 2003 tenha vencido, novamente, o galardão de principal artilheiro da liga. Pelo meio, teve a oportunidade de ingressar na Premier League, graças a um período de testes no Wolverhampton, mas a sorte acabou por não lhe sorrir.
Depois de três épocas, anunciou o regresso a Los Angeles, embora o seu impacto tenha sido muito reduzido. Antes de encerrar a sua primeira etapa em solo norte-americano, embarcou numa nova experiência, desta feita em Toronto, onde não foi feliz.
Os próximos saltos na carreira ditaram um pouco a sua imagem como a de um globetrotter. Passou pelo Olimpia, do Paraguai, onde foi muito acarinhado pelos adeptos, mas que, face a questões pessoais teve de forçar o abandono, pelo Puebla (México) e Aris (Grécia).
Aos 33 anos, decidiu carimbar o regresso ao seu país natal. O CSD Municipal voltou a ver o «filho pródigo» balançar as redes por muitas mais vezes, mas, por outro lado, viu-se também envolvido numa profunda polémica criada pelo mesmo. O motivo? Simples. Ruíz acusou publicamente o presidente de uma equipa rival do Municipal, o Coatepeque, de não pagar aos seus jogadores. Atitude essa que, por pouco, não lhe valeu uma grave suspensão.
Lenda da Guatemala dentro… e fora de campo
O estatuto de «super-herói justiceiro» vai muito pelo que Carlos Ruíz atingiu ao serviço da seleção da Guatemala dentro e fora das quatro linhas.
É o melhor marcador de sempre com um total de 68 golos marcados em 132 partidas, e figura no top-15 de maiores artilheiros de seleções ao lado de nomes como Gerd Müller e Robbie Keane. Desses 68, 39 foram anotados em fases de qualificação para Campeonatos do Mundo, o que, atualmente, significa uma marca histórica. E foi El Pescadito, ex-capitão e líder da Guatemala, que nunca disputou um único, o grande responsável.O maior dissabor da carreira, garante, é o apuramento CONCACAF para o Mundial 2006 realizado na Alemanha, na qual, curiosamente, se tornou na sua melhor marca pessoal. Os 10 golos em 14 jogos não foram suficientes para a Guatemala carimbar a passagem porque um único triunfo de Trindade e Tobago sobre o México terminou o sonho da repescagem.
Mas nem tudo são más memórias. Dos muitos golos que fizeram vibrar os adeptos, destaca-se um. A incrível «chilena» frente à Costa Rica, no triunfo por 3x1, que fez «explodir» o Estádio Mateo Flores, o maior do país.
O dia seis de setembro de 2016 marcou o fim de uma era. O fim de uma relação que começou muito nova e que, com muitos altos e baixos, terminou já «velhinha». A despedida de Carlos Ruíz dos relvados foi frente a São Vicente e Granadinas, no último encontro da fase de grupos de apuramento para o Mundial 2018. Eram necessários apenas dois golos para que o recorde atual fosse atingido… e El Pescadito marcou cinco, numa espetacular vitória por 9x3.
Apesar de descalçadas as chuteiras, o objetivo não mudou. Na mente de El Pescado, persiste o objetivo de lutar pelos direitos dos futebolistas do país. Foi o primeiro presidente da Associação de Futebolistas Guatemaltecos (AFG) e, agora, a nova meta passa pela candidatura à presidência da Federação, organismo que, ainda nos dias de hoje, continua manchado pelos atos de corrupção.
Para si, não basta o simples ato de oferecer chuteiras aos companheiros de profissão. Nem golos chegam para combater o sistema. É necessário, por outro lado, dar voz sem olhar a meios, um pouco à imagem de um líder de uma pequena «rebelião». Mais do que um símbolo, Carlos El Pescadito Ruíz elevou o nome da Guatemala além-fronteiras e provou, ao mundo, que nem todos os super-heróis necessitam de usar capa.