Depois de lançada a parte I, onde foram abordados os temas da Aspire Academy e do Mundial 2022, o zerozero lança a segunda e última parte da entrevista exclusiva a João Carlos Pereira, técnico português que assume funções de coordenador do treino individual da Aspire Academy, do Qatar. A conversa estendeu-se até ao campeonato local e aos seus principais destaques, com portugueses ao barulho. E ainda houve espaço para falar de Xavi. Esse mesmo.
ZEROZERO: Olhando para o campeonato, Jesualdo Ferreira sagrou-se campeão ao leme do Al Sadd. É um clubes mais históricos, certo?
Neste momento temos o controle de várias equipas que até treinam nas nossas instalações, como o Al Sadd, o Al Duhail, o Al Rayyan, o Al Gharafa, que têm os melhores jogadores. Agora, os atletas que não são utilizados são imediatamente emprestados a outros clubes. Isso acrescenta qualidade e torna tudo mais competitivo. É óbvio que o campeonato não está em condições de competir com qualquer outro na Europa porque aí contratam jogadores já feitos e aqui estão a apostar em jogadores em processo de formação.
ZZ: O Al Sadd e o Al Duhail têm nos seus plantéis jogadores com números incríveis. Jesualdo Ferreira tem um avançado, o Baghdad Bounedjah, por exemplo, que deixa todos de boca aberta. Aqui no zerozero fartamo-nos de falar dele.
JCP: O Bounedjah é um jogador de grande qualidade que teria lugar na maioria das equipas de topo da Europa, mas a capacidade financeira de alguns clubes acabou por atraí-lo. Foi contratado muito jovem pelo Al Sadd e aconteceu algo curioso depois. Ele não se impôs no imediato porque jogava o Raúl [González] e outros com mais maturidade e acabou por ser emprestado com opção de compra. Essa equipa adquiriu-o em definitivo e o Al Sadd viu-se obrigado a comprá-lo de novo. É um caso particular. Tanto o Al Duhail como o Al Sadd e até mesmo o Al Rayyan têm feito grandes campanhas na Liga dos Campeões Asiática. Na época passada, o Al Sadd atingiu as meias-finais.
ZZ: O campeonato decidiu-se nas últimas jornadas entre o Al Sadd de Jesualdo Ferreira e o Al Duhail de Rui Faria. Curiosamente, duas equipas historicamente distintas…JCP: O Al Duhail é um clube recente e foi fundado por via da fusão de dois clubes. Veio na sequência da reestruturação efetuada no futebol profissional e juntaram o Lekhwiya, clube do Emir, e o El Jaish para criar um clube fortíssimo. Neste momento, é o clube que tem maior poderio financeiro, digamos assim.
ZZ: Felicitou o mister Jesualdo pela conquista?
JCP: Sim, de vez em quando encontrávamo-nos.
ZZ: Com todo este investimento, pretende o Qatar tornar-se numa superpotência?
JCP: Bem… Não queria entrar pelo exagero. O Qatar será sempre, mesmo nos próximos anos, um país que investiu imenso e em várias áreas. Aqui não se compram jogadores, produzem-se. E é preciso tempo para ter o retorno desse investimento. O futebol do Qatar é profissional há meia dúzia de anos e na Alemanha, por exemplo, já eram profissionais há 40 anos. Convém não dar um passo maior do que a perna e é necessário ter os pés bem assentes no chão. É justo afirmar, sim, que o Qatar tem reduzido distâncias em relação aos melhores. Nos últimos anos, a seleção AA jogou duas vezes contra a Islândia, uma das equipas emergentes do contexto mundial, e creio que empatou duas vezes. Está ainda muito longe de seleções como Brasil, Holanda, França, Itália, Espanha, Alemanha e Portugal, naturalmente.
ZZ: Então os casos do Qatar e da China são opostos.
JCP: Sei que a China investe muito dinheiro também. A diferença é que na China investem no imediato e no Qatar investe-se a prazo. Há uma visão e apesar de querermos resultados imediatos, como todos querem, não saltamos etapas.
ZZ: Verdadeiros exemplos de como investir bem e/ou mal.
JCP: Por exemplo, eles investem no selecionador nacional, como o Marcelo Lippi, e esquecem-se de toda a cadeia. No futebol de formação não há grande investimento e o que existe não é consertado, estruturado. É aleatório, não há uma linha de continuidade. No Qatar tudo foi construído mediante um plano bem delineado.
ZZ: Então com uma Academia como a Aspire, os clubes não têm academia.
JCP: Os clubes também têm academias, mas não se assemelham à Aspire. A Aspire trabalha com os melhores jogadores dos clubes. Eles não são nossos para todos os efeitos, mas trabalham connosco a semana inteira e depois vão competir pelos clubes. A par disso, quando temos torneios internacionais eles vestem ou a camisola da Aspire ou da própria seleção.
ZZ: O regresso a Portugal está próximo... Em que medida cresceu como treinador durante este período?
Xavi Hernández 31 títulos oficiais |
Há uma quantidade incrível de campos e as equipas de topo estagiam na academia. O Bayern Munique, por exemplo, vem todos os anos para o Qatar, trabalhar connosco. E existem outras como o PSV, o Ajax, Real Madrid, Barcelona, Manchester United, etc… Todos os treinadores passam por cá e acabamos por desenvolver uma relação próxima. Assistimos aos treinos, discutimos ideias, fazemos intercâmbio de conhecimentos…. Temos parcerias com clubes da América do Sul, como Brasil e Argentina, América do Norte e todos os anos realizamos uma conferência para a qual convidamos alguns dos melhores treinadores do mundo, Villas-Boas, Mourinho, Pep Guardiola… Tudo isto serviu para repensar o futebol, aprofundar conhecimentos, avaliar ideias porque quando temos a possibilidade de privar de perto com figuras como o Xavi, não és mais o mesmo [risos]. Vêm o futebol de forma diferente e eu considero-me um afortunado porque tive a oportunidade de fazer parte deste processo. Estou muito mais bem preparado para o que vier. Espero que seja uma equipa portuguesa e profissional. Vamos ver…
ZZ: Por falar no Xavi, ele vai assumir o cargo do mister Jesualdo Ferreira no Al Sadd? Pelo menos é o que apontam os rumores...
JCP: Exatamente. Eu acompanhei o processo porque tenho uma relação próxima com o irmão dele [Óscar Hernández] que gere a sua carreira e que fazia parte do meu grupo de trabalho. Partilhámos ideias, fui dando as minhas opiniões e ele é uma pessoa que tem um tremendo conhecimento sobre futebol, tem ideias claríssimas que toda a gente sabe quais são e acho que ele tem todas as condições para ser uma referência também como treinador. Vai-se tornar num técnico de topo a curto prazo.
ZZ: Para mais tarde assumir o Barcelona: Cruyff-Guardiola-Xavi.
JCP: É bem provável que isso aconteça. Aliás, ele está a preparar-se para isso, precisamente.
ZZ: Com tantos anos de formação, sente saudades do futebol sénior?
Assumo que cometi alguns erros no passado quando estava a treinar equipas seniores e muitas vezes, por desconhecimento ou pressão dos resultados, olhei demasiado para a organização coletiva e descurei em alguns momentos o desenvolvimento individual. Assim que entrar num clube, o meu grande desafio é de obter resultados jogando de uma determinada forma, mas essencialmente ter impacto individualmente. Eles têm que sentir que podem crescer connosco. Não me sentiria bem enquanto treinador que algum jogador me passe pelas mãos e que não saia melhor do que era.