O tempo passa e a época aproxima-se do fim. Alguns campeonatos já acabaram, outros estão prestes a recomeçar e há outros que foram criados durante este tempo de pandemia para enfrentar alguns problemas existentes já antes do aparecimento do coronavírus. As críticas ao formato do Campeonato de Portugal eram recorrentes e esta semana a FPF avançou com um novo modelo para as divisões inferiores do futebol nacional, que vai trazer mais uma competição ao nosso panorama, a 3.ª Liga.
A ideia não é propriamente nova, mas com esta alteração há várias mudanças que importa analisar. Se a reunião entre os dirigentes do futebol nacional levou à decisão da criação da 3.ª Liga e da reformulação do Campeonato de Portugal, o zerozero decidiu ir falar com quem anda no terreno e conhece bem todas estas realidades.
Depois de estarmos à conversa com Toni Pereira foi a vez de ouvirmos outro técnico conhecedor destas realidades. Rui Quinta, atual treinador do Lusitânia de Lourosa, lembra que a opinião é apenas e só a sua e coloca uma série de questões, não apenas ao novo quadro das competições nacionais, mas também à forma como as divisões inferiores são ignoradas pelos dirigentes e por aqueles que militam nos campeonatos profissionais.
zerozero (ZZ): O mister está a par das mudanças nas competições nacionais já a partir da próxima época? Para já, qual é a sua opinião?
Rui Quinta: Acho que há uma série de questões que se devem colocar para uma tomada de posição destas. Percebemos que esta tomada de posição foi no sentido de tentar diluir o impacto abusivo que a FPF teve nas decisões que tomou, ao diferenciar claramente jogadores e equipas. Isto é uma tentativa de mascarar essas decisões que foram tomadas e que vêm agora numa tentativa de transmitir que será uma lufada de ar fresco no futebol nacional. Como neste país estamos habituados a engolir e fomos treinados para engolir as decisões dos donos disto tudo, temos é de ficar bem na fotografia, pôr um sorriso e se possível agradecermos o facto de se terem lembrado deste campeonato. Agradecermos o tempo que as pessoas dispensaram para se preocuparem.
ZZ: Não acha que este modelo vai trazer coisas positivas, como o fim dos play-off de subida?
Rui Quinta: Você nunca consegue mudar nada quando à partida as coisas estão condicionadas. Qual é o primeiro ponto? Só podem descer duas equipas da Segunda Liga. O que dizer depois disto? Temos de arranjar uma forma de entreter o resto do povo. A pergunta que eu vou fazer é: "E quem vai fazer contratos para jogar seis meses?". Como sabe que só vai jogar seis meses e que vai ficar nas equipas que deixam de competir no final de fevereiro? Há uma série de situações que nem comento, só questiono. O que referiu é um ponto importante, finalmente as pessoas perceberam que chegar em primeiro (e este ano nem estar em primeiro em Portugal é sinal de que se vai ter direito a ser premiado, depende da vontade ou da forma como as pessoas acordam), mas essa é a única medida boa: premiar quem chega em primeiro.
ZZ: Esse e ó unico ponto positivo...
Rui Quinta: Depois de estar em funcionamento o que se criou foi mais um obstáculo para que as pessoas consigam atingir os campeonatos profissionais. Nós já todos percebemos. Era muito mais honesto da parte de quem dirige determinar claramente que a coutada profissional não permitia que mais ninguém entrasse. Até podiam fazer convite a um ou outro clube, como se faz a um ou outro clube nas modalidades. Se calhar esse era o melhor processo. Assim todos sabiam as linhas com que se cosia. O campeonato, que eles dizem que é de Portugal, desenrolava-se dentro de uma realidade em que as pessoas não estavam iludidas com nada, era competir e não se ganhava nada com isso. Depois os senhores que estão lá com os seus arranjos tinham o futebol deles, que dizem que é de um nível excecional, até ficamos com os olhos esbugalhados com a qualidade que é apresentada. Eventualmente, quando morresse um ou outro, podiam ser convidados clubes para substituir, mas fora isso acho bem que clarifiquem e digam: "Não queremos mexer com ninguém, estes gajos que aqui estão são os donos disto tudo". Penso que os clubes profissionais deram uma demonstração a toda a gente que as coisas, desde que trocadas a dinheiro, resolvem-se facilmente.
ZZ: ...
Rui Quinta: Eu acho que o importante é os clubes poderem competir numa dimensão que seja promotora do jogar. Este patamar chamado Campeonato de Portugal, embora não interesse divulgar, movimentava 72 equipas, se puser 20 jogadores por equipa faça as contas. Mais importante do que isso, era um espaço onde os jovens, uma grande preocupação dos responsáveis do futebol português, tinham a oportunidade de competir a sério, com séniores, a jogar a sua vida, a jogar num grau de adversidade que faz com que cresçam, que se desenvolvam e é onde a maior parte dos clubes se vai abastecer, não só a nível de treinadores mas também a nível de jogadores. Porquê? Porque é um campeonato que prepara os seus elementos para jogarem a vida todo o fim de semana. Isto é o melhor ingrediente para se crescer, é a necessidade de lutar pela titularidade todos os dias com colegas mais experientes, que os ajudam, que os enquadram, mas ao mesmo tempo que os desafiam. Esta é a melhor forma para crescer. Eu percebo que há uma necessidade grande de apregoar outras coisas, mas esta é a minha visão.
ZZ: Se fosse o mister a decidir, o que mudaria?
Rui Quinta: Esta criação da 3.ª Liga? Enfim... Se isto não fosse um espaço só de alguns, a proposta que melhor servia a situação excecional que se viveu, no sentido de dar um mínimo de justiça, que não é o mérito desportivo que inventaram (as pessoas já perceberam que em Portugal o mérito desportivo é à medida do freguês), o importante, para mim, era pegar nos dois primeiros de cada série, eventualmente o terceiro classificado e fazer duas zonas da Segunda Liga - zona Norte e zona Sul. Isto ia incrementar a rivalidade geográfica, a competitividade e o envolvimento pela proximidade e pela paixão que as pessoas têm pela rivalidade existente entre clubes. Isso seria uma estratégia promotora de uma coisa que todos os clubes se queixam - falta de receitas, recursos, viagens desgastantes. Esta era uma oportunidade para fazer uma mudança nas competições, não precisavam de criar mais uma divisão. Se promovessem a Segunda Liga em duas zonas podia continuar o Campeonato de Portugal a promover os vencedores de Série - dois vencedores para a Zona Norte e dois para Zona Sul. Desciam dois elementos da Zona Norte e dois elementos da Zona Sul e toda a gente era premiada pelo mérito, e o mérito desportivo é a jogar. Lamento profundamente, os treinadores se calhar não têm grande peso no processo, mas era importante ouvir as pessoas que andam no terreno. A FPF andou a fazer visitas aos clubes e a tentar perceber as diferentes sensibilidades e acho que era uma oportunidade face a este desenrolar. Vai continuar tudo na mesma à exceção de que quem chega em primeiro vai ser premiado com a subida. Eventualmente, não é? Neste país nunca sabemos o que é que aí vem.
ZZ: Exato...
Rui Quinta: Eu queria fazer uma pergunta que para mim é determinante: Como é que os jogadores deste campeonato vão aguentar até aparecer a próxima competição, que ninguém sabe quando vai começar? Que preocupação as pessoas estão a ter com estes jogadores? Toda a gente olha para este patamar competitivo como se fosse um part-time. Só para dizer que mais de 80 por cento destes jogadores sustentam a sua vida familiar com as ajudas de custo que têm dos clubes onde estão e é, ao mesmo tempo, um passo que os jogadores dão nesta altura para ambicionarem, com os seus desempenhos, melhorar a sua vida. Este é um espaço extraordinário, basta olhar para onde a maior parte dos jogadores têm ido competir, para a Segunda e Primeira Liga.
ZZ: Sobre a questão do salário mínimo na 3.ª divisão, acha possível?
Rui Quinta: Não sei se têm mecanismos. O poder em Portugal às vezes tem mecanismos que nós não imaginamos, se calhar tem mecanismos para fazer isso funcionar. Nós vemos que nas ligas profissionais há casos gritantes conhecidos de todos de incumprimento salarial. Nesta divisão é conhecido de todos uma série de casos onde os jogadores estão sem receber há algum tempo. Acho que a imposição de colocar o ordenado mínimo nacional é uma boa intenção, espero que seja possível de vincular os clubes a essa dimensão, mas o que eu sei, pela realidade que conheço... Não acredito. Acho que metade dos clubes não vai conseguir cumprir com esses pressupostos. Uma das artes dos dirigentes desta dimensão é conseguirem, com os próprios recursos que têm, fazer muito, construir equipas e plantéis competitivos, com grandes dificuldades em estabelecer patamares de retribuição dessa dimensão. No ano passado e este ano há jogadores que vivem numa realidade que não se aproxima desses valores. São incomportáveis. É preciso termos a noção. A intenção é boa, agora fazerem disso imposição... Ou é dar oportunidade de andar a assinar papéis para dizer que se ganha isto e só se recebe aquilo, há sempre formas e estratégias.