Heleno de Freitas foi alvo de crónicas de Gabriel García Márquez, um dos autores mais importantes do século XX. Foi tema de filme. Foi Deus. Foi mortal e pecador. Foi boémio. Foi craque. Foi desprezado. Foi louco. Foi, simplesmente, Heleno.
O facto de Heleno ter virado tema de filme em 2011, interpretado por Rodrigo Santoro, reflete uma trajetória cinematográfica. Nos campos e fora deles. Heleno foi de herói a vilão na bola, e acabou como louco, sozinho, num hospital psiquiátrico em Barbacena.
Copacabana, o quintal de casa
O craque, e Heleno foi, sim, um craque, nasceu em São João de Nepomuceno em 12 de fevereiro de 1920. Ainda jovem, se mudou com a família para o Rio de Janeiro no início da década de 1930, após a morte do pai. Enquanto jogava à bola na praia de Copacabana, foi descoberto por Neném Prancha, que o levou para o Botafogo.
A estreia no profissional veio no fim da década, e Heleno já se mostrava um atacante ágil, habilidoso e, principalmente, goleador. Heleno tinha uma média de 20 golos por temporada quando foi chamado para representar a seleção brasileira na Copa América de 1945. Foi o artilheiro, com seis golos em cinco jogos, mas o Brasil perdeu o título para a Argentina.
Apesar de o título não ter saído também no ano seguinte, em novo revés para a Argentina, Heleno era visto como o substituto de Leônidas na seleção. Mas na medida que o seu sucesso ia ficando maior, quantos mais golos Heleno marcava, mais agitada ficava a sua vida fora de campo.
Heleno era boémio. Gostava de frequentar grandes festas no Copacabana Palace, tinha um estilo de vida de um verdadeiro astro e se achava melhor que os seus companheiros. Por várias vezes discutiu com colegas de equipa e recebeu o apelido de Gilda, personagem de Rita Hayworth em filme da época que tinha um comportamento irascível.
Heleno: entre o irascível e o genial
E Heleno foi irascível. Era intuitivo dentro e fora de campo. Quando se tornou notícia mais pelo que fazia fora de campo do que dentro, deixou o Glorioso, sem títulos, para jogar no Boca Juniors. O avançado tinha 28 anos e, embora ainda prometesse grande desempenho em campo, certamente era problema fora das quatro linhas.
Ainda assim, o Boca o levou para a Argentina numa transferência recorde. Heleno estreou-se com dois golos e parecia um sucesso. Mas, na medida que os resultados não agradavam, o jogador começou a perder a cabeça. Teve desentendimentos com companheiros. Com o técnico. Foi noticiado até que chegou a ter um caso com Eva Perón, então primeira dama da Argentina.
Quando arguiu também com o presidente do Boca, não teve jeito: Heleno foi mandado de volta ao Brasil. Acertou com o Vasco, para a irritação da torcida botafoguense, e conquistou o seu único título por clubes: o do Carioca de 1949. Apesar do título, Heleno não tinha uma boa relação com o técnico Flávio Costa e, no ano seguinte, foi para a Colômbia jogar no Junior Barranquilla.
Lá, apesar de não ter ficado muito tempo, ganhou a admiração de Gabriel García Márquez, Nobel da literatura. Numa crónica, Gabriel, que chamava o brasileiro de Dr Heleno, chegou a relatar os altos e baixos que já vivia Heleno, genial quando ainda conseguia ser.
«O dr. De Freitas mostrava-se capaz de conjugar perfeitamente os tempos simples do verbo 'fazer'. 'Farei milagres', declarou à imprensa, ao dar-se conta de que o público queria exatamente isso. Que fizesse milagres. E, segundo me contam alguns que estiveram nesse dia no Estádio Municipal, o que o brasileiro fez foi uma milagrosa atuação. Praticamente, disseram, o dr. De Freitas - que deve ser um bom advogado - redigiu nesta tarde, com os pés, memoriais e sentenças judiciais não apenas em português e espanhol alternadamente, mas também citações de Justiniano no mais puro latim clássico».
Não foram muitos os milagres de Heleno na Colômbia, e nem 1950 foi o seu ano. Naquele ano, o atacante acabou de fora do Mundial e, no Rio de Janeiro, apareceu com um revólver para tirar satisfações com o técnico Flávio Costa, num encontro que acabou entre socos.
Fim melancólico
Nos anos finais da carreira, Heleno já sucumbia. Sofria da sífilis, doença que veio pelos anos de farras, bebedeiras e drogas. O tal sex, drugs and rock-roll antes do tempo. Heleno ainda foi contratado pelo Santos, mas, depois de um desentendimento com o técnico Aymoré Moreira, deixou o clube.
Já ninguém queria Heleno. O futebol desistiu dele. No América, fez a sua última partida, a única da carreira no Maracanã. O jogo diz tudo sobre Heleno: foram apenas 25 minutos de Heleno em campo. Após se desentender com companheiros, foi expulso. Ouviu a arquibancada gritar Gilda, o apelido que tanto odiava, e desistiu do futebol.
O fim da carreira acabou com Heleno, que ainda frequentou por alguns anos o clube do coração, o Botafogo, mas acabou num hospício em Barbacena e morreu de forma melancólica. Formado em direito, fã de jazz e apreciador de literatura, Heleno terminou a vida como um louco. Um louco que fez louca muita gente quando jogou bola. Um louco que encantou, mas que pagou o preço da fama.
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