162 golos sofridos, crianças desmotivadas e ganância vizinha: «Quem tudo tem, tudo terá sempre»

18-0, 20-0, 34-0. Não, caro leitor, a reportagem não é sobre uma equipa de andebol... Trata-se dos resultados das camadas de formação do AC Gervide, clube de futebol sediado em Oliveira do Douro.

Enquanto os sub-19 vão com 54 golos sofridos depois de quatro partidas, os sub-17 vão com 67 sofridos (!), em apenas três jogos. Por fim, a equipa sub-15 segue a mesma tendência, mas com números 'mais simpáticos': 41 golos sofridos em quatro jogos disputados. No total são 162 golos sofridos, apenas um golo marcado e nove derrotas.

Fundado em 1938, o emblema gaiense nunca assistiu a uma catástrofe deste tamanho nas camadas jovens. Afinal, o que se passa? Porque é que que o AC Gervide está com resultados tão funestos?

O zerozero foi, junto do presidente do AC Gervide - Joel Marques -, à procura de respostas e a conversa fluiu sem filtros. Desde a ganância dos 'vizinhos' ao menosprezo de quem «dá sempre tudo aos mesmos», o líder de 48 anos abriu o livro perante aquela que considera ser «a pior prestação da história ao nível da formação».

«Não podemos ser o bombo da festa»

Começando pelo ponto óbvio: Como é que AC Gervide se tornou o pior clube - ao nível da formação - na distrital do Porto?

«Somos incapazes de manter uma equipa que faça um campeonato razoável com 23/24 atletas. Nós, no ano passado, inscrevemos 190 atletas. Este ano devemos andar nos 130, perdemos muita gente. Outro aspeto muito grave: a Câmara Municipal só nos deixou entrar no único espaço que temos para treinar no dia 29 de agosto, ou seja, todos os outros clubes já tinham pelo menos um mês de treinos e captações feitas», começou por lembrar.

Em relação à constituição dos plantéis para esta época, o presidente referiu que a maior dificuldade prende-se nos sub-19, pois vê-se obrigado a jogar com vários jogadores mais novos e sem «andamento» para a exigência.

«Nos iniciados temos um plantel vasto, mas nos juvenis temos 16 atletas e nos juniores apenas 10. Em acréscimo, a maior parte dos juvenis estão no seu primeiro ano [no escalão], ou seja, vieram dos iniciados», prosseguiu.

«Nós, como só tínhamos 10 juniores, tivemos que levar quatro ou cinco juvenis aos juniores. E se eles já são fracos no primeiro ano de juvenis... ao apanharem juniores de segundo ano a diferença é abismal e eles não aguentam», sublinhou.

Os piores resultados de cada escalão:

Data	Competição	Fase
2022-10-29	Jun.A (2ª)	J3	Vila FC	20-0	AC Gervide
2022-11-06	JunB(D)	J3	Sport Canidelo B	34-0	AC Gervide
2022-11-06	JunC(D)	J4	AC Gervide	0-18	Panther Force B

Como é que as crianças e os treinadores lidam com os maus resultados? Joel afirma que existe desmotivação, mas que nenhuma criança desistiu neste início de época.

«Não podemos ser o bombo da festa, porque é vergonhoso e desmotiva todas as crianças. Depois, claro, desmotiva os treinadores, os pais e a mim. Vejo eles a levar 30... e não é fácil, mas uma coisa é certa: todos vêm treinar», afirmou.

«Temos uns processos para pôr a muitos clubes»

Ponto 2 - Concorrência. Em Vila Nova de Gaia, a procura por atletas é imensa e os 'vizinhos' são muitos: Vila FC, Panther Force, Oliveira do Douro, CD Candal, Avintes e a lista continua...

Posto isto, Joel admite não conseguir segurar os atletas durante muito tempo no clube, mas também não esconde a frustração: «Não respeitam ninguém». 

«Como nesta região há muita escolha, os miúdos vão, por exemplo, para o Avintes ou Oliveira do Douro... Mas esses clubes não querem saber se eles sabem andar para frente, ou caminhar para trás. Eles querem fazer duas ou três equipas com os miúdos, receber as mensalidades e está feito. Nós até dizemos em jeito de brincadeira: 'esses clubes têm uma equipa para competir e outra para a Coca Cola', isto é, apenas para fazer número», explicou.

Joel admite ver clubes adversários abordar os seus jogadores sem conhecimento prévio @AC Gervide

«Temos aqui clubes que nos vieram buscar uns quatro ou cinco jogadores. A lei diz que, a partir do quarto jogador, podemos pedir o dinheiro da transferência. Temos uns processos para pôr a muitos clubes. Nós até temos reuniões com os presidentes de todos os clubes e o que estava acordado era: se gostarmos de um atleta de outro clube falamos com o respetivo clube, mas ninguém faz isso», elucidou.

De sublinhar que a lei - que o presidente do AC Gervide refere - remete para o artigo 37 do Regulamento do Estatuto, Da Categoria, Da Inscrição e Transferência de Jogadores (FPF).

«Passámos a ficar com os restos»

Ponto 3 - Ganância, incapacidade financeira e menosprezo: «Quem tudo tem, tudo terá sempre...»

«O que é que muitas vezes acontece: os miúdos saem um ano ou dois e regressam porque vão para clubes que a formação, na finalidade, não existe. Passámos a ficar com os restos, aquilo que ninguém quer. É a ganância. Só querem um certo número de atletas para a mensalidade», lamentou apoquentado com a realidade dos clubes vizinhos.

«Se tivermos aqui um miúdo que se evidencie, eles saltam para o campo e vão ter com o atleta. Há clubes que não respeitam ninguém e isto é à vista de todos», patenteou o presidente do AC Gervide, apontando para a falta de transparência entre instituições.

Para além da «concorrência desleal», Joel reforça outro grande problema: (in)capacidade financeira.

«Nós somos os que praticamos a mensalidade mais baixa. Posso-lhe garantir que 60% dos miúdos não pagam nada, ou porque são de pais divorciados, ou porque não têm condições», reforçou.

O clube gaiense, inclusive, fez esforços para captar atletas oferecendo inscrições gratuitas, ao passo que a junta de freguesia não tem ajudado como expectável.

«A junta de freguesia, por exemplo, dá oito mil euros ao Coimbrões, seis mil euros ao Candal, dois mil euros ao Torrão e dá 1000 euros ao AC Gervide! E ainda não recebemos o dinheiro. Quem tudo tem, tudo terá sempre...»

«Se eu sair... o clube fecha»

Ponto final, parágrafo. Quer dizer... mais ou menos. Antes da época começar, o presidente - que está há 11 anos no clube - comunicou que ia abandonar a presidência, contudo, ninguém apareceu para assumir o emblema sediado em Oliveira do Douro.

AC Gervide já conta com 84 anos de existência @AC Gervide

«Este ano eu tinha decidido abandonar. Houve três assembleias, muitas incertezas e, claro, isso também ajudou para construir a pior prestação da história ao nível da formação. Mas não apareceu ninguém para tomar conta do clube. Se eu sair... o clube fecha», informou.

Por fim, o presidente anunciou que o clube não vai morrer: «Em março de 2023 vamos começar a tratar de captar miúdos e assinar documentações», mostrando um misto de sentimentos pelo furacão de emoções que tem vivido nos últimos meses.

«Sinto-me feliz por não ter deixado o clube morrer, mas também sinto-me desgastado. Não é fácil andar com a casa às costas e custa-me isto ter descambado tanto...», rematou rememorando os resultados nefastos nas camadas de formação.