Da pequena aldeia de Touro até à baliza do FC Porto na final do Jamor. A história de Cláudio Ramos está cheia de surpresas, twists e até algum suspense, bem à moda de M. Night Shyamalan. Aos 31 anos, o beirão está mais perto do que nunca de se tornar o dono da baliza dos dragões - se Diogo Costa for vendido, Cláudio provou ser alternativa mais do que fiável.
Em visita aos estúdios do zerozero, o guarda-redes responde com consciência à pergunta obrigatória: está preparado para ser o sucessor de Diogo Costa? «Tenho de demonstrá-lo dentro do campo», atira, sempre com muitos elogios para o colega e companheiro na luta pela baliza, «um fora de série sem defeitos».
A conversa toca em vários pontos, da infância até estes três anos de dragão ao peito. Dos dias em Touro, até à pressão de defender os portistas nas finais da Taça da Liga e da Taça de Portugal. Sempre com Gustavo, o pequeno filho de três anos, no pensamento.
Por ele, e por culpa dele, o número 14 nunca sairá das costas de Cláudio. Chama-se amor.
zerozero – Nas férias, com o que se preocupa um futebolista profissional?
zz – É possível cometer alguns abusos com a alimentação nesta fase?
CR – Com a comida temos sempre de ter algum cuidado (risos), porque depois não é fácil recuperar. Dá para cometer alguns excessos.
zz – O Cláudio é natural de Vila Nova de Paiva, mas vive e trabalha entre o Porto e Gaia. Nesta fase de descanso procura voltar às raízes?
CR – Eu estava mal habituado, porque jogava no Tondela e até à casa dos meus pais era um saltinho. Agora, em Gaia, estou a uma hora e meia da minha aldeia. Eu sou do concelho de Vila Nova de Paiva, mas de uma pequena aldeia chamada Touro. Nas folgas mais alargadas tento ir lá e os meus familiares também me visitam. O Gustavo, meu filho, tem saudades dos avós e precisa de estar com eles. Mas é verdade, durante a época passo bastante tempo longe do Gustavo e da minha mulher, agora procuro dar-lhes o tempo que merecem.
zz – O pequeno Gustavo tem pouco mais de três anos. Ele já percebe que o pai joga no FC Porto e que por isso tem de estar mais ausente?
CR – Com esta idade já começa a perceber. Sabe que vou trabalhar ou que vou ter um jogo longe, consegue assimilar isso.
zz – Foi difícil para um jovem de uma pequena localidade, como é Touro, chegar a um gigante como é o FC Porto?
CR – Foi bastante fácil, por acaso. O FC Porto, apesar de ser um clube enorme, é muito familiar e as pessoas recebem-nos da melhor maneira possível. A integração é feita rapidamente. Sei que as pessoas ouvem muitas vezes que os clubes são uma família, mas no caso do FC Porto isso é mesmo assim, somos mesmo uma família. Eu vinha do Tondela e podia sentir que o FC Porto era diferente, mas nada. Fui tão bem recebido como se fosse o Cristiano Ronaldo a chegar ao Porto. É isso que também faz a força do clube. Independentemente da nossa origem, somos sempre bem recebidos.
CR – Até foi tudo muito rápido. Eu estava em final de contrato com o Tondela, tinha decidido que não ia renovar porque tinha outros objetivos para a minha carreira e sempre o disse abertamente, e quando surgiu a possibilidade de representar o FC Porto foi impossível recusar. Ligaram-me, vimos que a proposta era real e foi só dizer ‘sim’.
zz – Lembra-se de onde estava quando recebeu o convite?
CR – Lembro-me que os meus empresários foram ter comigo a Tondela. ‘Cláudio, temos uma coisa boa para ti e vamos ter aí contigo’. Fomos a uma esplanada tomar um cafezito e foi lá que me contaram tudo. Não estava nada à espera de receber uma oferta do FC Porto. Tinha várias propostas para fora, mas de Portugal não tinha nada. E, de repente, apareceu-me a do FC Porto. ‘Ok, é para ir, não há possibilidade de recusar o Porto’.
zz – Mesmo sabendo que no FC Porto a realidade seria diferente, porque no Tondela era titular indiscutível.
CR – Sabia que não ia ser titular e que ia ter de fazer pela vida. Mas isso é natural, nenhum jogador é contratado para, desde o início, ser titular. És contratado para trabalhar e dares o teu melhor, foi isso que sempre fiz. Era um desafio difícil, mas era o que eu precisava para a minha carreira. Estava há nove anos no Tondela, como titular, e inconscientemente acabámos por acomodar-nos. Queria um desafio novo, difícil, e o FC Porto era tudo isso. Não tenho concorrentes para a baliza, tenho colegas e amigos, neste caso com muita qualidade.
zz - «A família da baliza», como já o ouvimos dizer.
CR – Tenho tido a sorte de apanhar ao longo da carreira grandes colegas de baliza. Temos os outros colegas, mas é com os guarda-redes que passamos mais tempo juntos, tanto no treino como fora. Nestes anos no FC Porto tive também a sorte de apanhar um grupo espetacular.
zz – A baliza é um lugar solitário, como tantas vezes dizemos?
CR – Realmente, estamos ali sozinhos e abandonados (risos). É uma posição solitária, um pouco ingrata, há jogos em que estamos 90 minutos quase sem trabalho e as pessoas só se lembram do golo sofrido.
zz – Como se combate essa solidão?
zz – Em que aspetos evoluiu no seu jogo com a mudança para o FC Porto?
CR – Sinceramente, acho que evoluí em todos os sentidos. Fisicamente, acho que estou na minha melhor forma de sempre, nunca estive assim. A exigência é outra, temos mais condições de trabalho, melhor análise dos nossos jogos, era impossível não evoluir no FC Porto. Só mesmo se não quisesse. Sinto-me muito melhor guarda-redes e evoluí em tudo.
zz – Se pensarmos neste ciclo de sérgio Conceição no FC Porto, há episódios impossíveis de esquecer. José Sá foi titular da baliza com o Iker Casillas no banco, talvez por o espanhol não dar nessa altura o que o treinador queria.
CR – Se calhar, relaxou…
zz – Como é o Sérgio Conceição convosco?
zz – É um paizão?
CR – É um paizão que não nos deixa sair da linha (risos). É um pai ali do grupo. Apesar de toda a exigência dele, da maneira dele ser, sabemos que temos uma pessoa que nos vai defender até à morte. Podemos contar com ele para tudo.
zz – Os pedidos para o Sérgio ficar são repetidos por jogadores e adeptos. O que é que ele vos disse no final do jogo contra o SC Braga, na final da taça?
CR – Depois do jogo? Nós estivemos a festejar com as famílias, no relvado, depois arrancámos e não houve tempo para grandes conversas. Não houve grande assunto. Nesses momentos de vitória, o mister fala sempre com o coração. Tudo o que ele diz é sentido, vive muito os momentos, o dia a dia, o futebol. Adora isto. Às vezes é mal interpretado e as pessoas analisam-no de uma maneira errada. Exige-nos o máximo, mas depois somos recompensados. Em quatro títulos ganhámos três, no final da taça o mister estava felicíssimo e deu-nos os parabéns. Ele é o primeiro a admitir que não é fácil aturá-lo uma época inteira, mas fomos uma excelente equipa esta época e merecemos esse momento no Jamor.zz – O Sérgio Conceição é a grande figura da vossa equipa?
CR – É a grande figura do FC Porto nos últimos anos, num período em que não tivemos um investimento tão grande como outros clubes. Conquistou muitos títulos, bateu os recordes dos antigos treinadores do FC Porto e se o clube tem melhorado nos últimos tempos, muito deve ao mister. Os jogadores têm qualidade, também lá andamos, mas muito do mérito é dele.
zz – Foi difícil estar tanto tempo à espera de tocar numa bola a defender a baliza da equipa principal do FC Porto?
CR – Sim, sim, a primeira época no FC Porto foi a mais difícil que tive na carreira. No futebol, claro, mas também fora do trabalho. Não jogava, chegava a casa e tinha um filho pequenino, foi difícil. Nunca desisti, sou uma pessoa que gosta de treinar e de lutar, mais tarde ou mais cedo eu sabia que ia colher esses frutos. No ano seguinte também não joguei muito, mas o mister permitiu-me ser campeão ao ser titular no último jogo. Não era qualquer treinador que fazia isso, até porque íamos ter a final da taça depois e podia ter colocado o Marchesín para ganhar ritmo. Entrou o Meixedo, também. Temos-lhe gratidão por isso.
zz – Ao saber que seria titular nesse último jogo da Liga 21/22 [Estoril], ficou com pele de galinha?
CR – Eu achava que ele me ia dar essa oportunidade e foi fantástico. Já éramos campeões, mas joguei em casa, entrei com o meu filho pela mão. Estava mais feliz por entrar com o meu filho pela mão do que por ser campeão (risos), esses momentos que proporcionamos a um filho são marcantes.
zz – O Marchesín saiu, o Cláudio subiu na hierarquia e fez bastantes jogos esta época. No total, sofreu golos apenas contra o Mafra e nos dois jogos frente ao Famalicão.
zz – Em algum desses golos sofridos ficou a pensar ‘eh pá, menos uma «clean sheet»’?
CR – (risos) Todos os guarda-redes querem acabar sem sofrer golos. Entre um 0-0 e um 4-3… ficamos na dúvida, porque se sofremos três golos alguma coisa não está bem. Mas é verdade que nos dias em que sofremos golos, chegamos a casa e metem-se connosco, dizem ‘desta vez não levas nada’. É a vida de guarda-redes. É muito gratificante ver esses números: 14 jogos feitos, golos sofridos em três, 11 sem sofrer golos.
zz – Está pronto para ser o guarda-redes titular do FC Porto?
CR – É sempre aquela questão… (risos) toda a gente responde que sim, mas quando chegamos lá e temos essa oportunidade, precisamos de mostrar isso em campo. Não basta dizer que estou preparado. Se aos 31 anos, e com três anos de FC Porto, dissesse que não estava preparado, então não andava lá a fazer nada. Só posso demonstrá-lo em campo.
zz – Esta é a pergunta que toda a gente que gosta do FC Porto faz nas férias: o Diogo fica ou não fica?
CR – Vamos ver, ninguém sabe de nada.
zz – O Cláudio só tem mais um ano de contrato. Vai renovar?
CR – Estamos todos de férias, tenho mais uma época com o FC Porto e acho que vou cumpri-la. Depois, logo se verá.
zz – Como tem sido trabalhar com o Diogo Costa diariamente, um dos melhores guarda-redes da atualidade?
CR – Sou colega de equipa do Diogo há três anos. Falava-se muito do Diogo, à minha chegada, mas eu não o conhecia. Tinha-o visto na equipa B, mas não tinha um conhecimento total sobre o que ele valia. Começámos a trabalhar juntos e vi que estava ali um fora de série.
zz – Qual é o ponto mais forte do Diogo?
CR – Normalmente, olhamos para um guarda-redes e identificamos um ponto forte. O Diogo é diferente. Queres arranjar um defeito ao Diogo e não consegues. O que é que ele tem de mau? No que é que ele é pior? Não consegues dizer. Chegas a um computador e queres fazer um guarda-redes quase perfeito. Um guarda-redes top. Vai-te sair o Diogo. Rápido, bons nos cruzamentos, bom no jogo de pés, bom entre os postes.
zz – Nas conversas que têm, o Cláudio consegue perceber de que forma o Diogo construiu esta qualidade?
zz – Há uns anos, dizia-se que o guarda-redes só era maduro com 28 anos.
CR – O Diogo tem 23, pois. Há uma abertura enorme com o Samuel, o Meixedo, o Roko, se o Diogo não estiver bem em determinado lance. Falamos disso. ‘Olhem, ali naquele momento não estive tão bem…’ Um guarda-redes do nível dele, que vai ao Mundial, ao Europeu, chega ao lado dos mais jovens, de todos, e fala dessa maneira… ‘O que achas que podia ter feito ali?’ Isto prova a excelente pessoa que ele é, além do tremendo guarda-redes que conhecemos. Vai ter um futuro incrível.
zz – E defendeu aqueles penáltis todos este ano.
CR – Nós até brincávamos com ele. Eu até acho que nem é um dos pontos mais fortes dele e o Diogo andava a defender tudo (risos). O guarda-redes que até é mais forte nos penáltis é o Meixedo, é uma coisa incrível. Espero que seja titular na seleção de sub21, no Europeu. E se formos aos penáltis, ganhamos de certeza. Ele é mesmo muito bom nos penáltis. Não só, mas nisso é excelente.
zz – O Cláudio ainda é o detentor do número de jogos seguidos a titular no campeonato: 101.
CR – Podiam ter sido mais, se não tivesse sido expulso num jogo do Tondela. Foram anos muito bons para mim. Se não tivesse sido o Tondela, não tinha chegado ao FC Porto e à Seleção Nacional. Mas também foram anos difíceis. Lutar para ser campeão é ótimo, lutar para não descer é horrível.
zz – Onde há um sofrimento maior? Na luta pelo título ou pela manutenção?
CR – Vou tentar explicar. Sempre que o FC Porto não ganha, eu chego a casa e o meu filho chora. A minha mulher diz que ele não pode ser assim e eu digo-lhe isto: ‘ainda bem que ele nasceu quando eu estava a vir para o FC Porto, porque no Tondela ele ia estar habituado a perder e não ia chorar’. No Tondela fizemos épocas boas, nem é habitual para um clube daquela dimensão estar tanto tempo seguido na I Liga. É difícil chegar ao fim e andar a fazer contas, ver o que os outros fazem, enfim. Ninguém quer estar ligado a uma descida. Espero que subam depressa, é um clube que estará sempre no meu coração e feito por pessoas boas. A região precisa de clubes no escalão máximo.
zz – Sabe de quem foi esta camisola [o zerozero mostra uma camisola antiga da Seleção Nacional, sem nome nas costas]?
CR – Não tem nome, mas acredito que tenha sido do Vítor Baía (risos). Tinha de ter força para aguentar isto.
zz – Esse é um desejo seu, voltar à Seleção Nacional?
CR – Fiz um jogo, fui internacional, mas claro que é um dos objetivos. Neste momento é impossível, porque não sou titular, mas enquanto estiver no FC Porto e a jogar, claro que a seleção será sempre um objetivo. É uma coisa que está ali, é o máximo a que qualquer jogador pode aspirar.
zz – Este senhor da camisola já elogiou o Cláudio publicamente. Como é privar com ele no FC Porto?
CR – Além do grande guarda-redes que foi, o Vítor é uma excelente pessoa, é um orgulho privar com ele, estar muitas vezes com ele. Transmite aos guarda-redes tudo o que passou, é um orgulho estar na baliza em que ele tantas vezes esteve.
zz – Ganhar três troféus em quatro significa que a época foi boa ou não ganhar o campeonato diz que a época não foi boa?
CR – No FC Porto queres ganhar tudo e o campeonato é o objetivo principal. Se não ganhas o objetivo principal não podes dizer que a época foi excecional. Mas, se analisarmos o que fizemos… na Liga dos Campeões fomos eliminados por um dos finalistas, fomos aos oitavos; ganhámos a Supertaça, a Taça da Liga, a Taça de Portugal, levámos o campeonato até à última jornada, não podemos dizer que foi uma má época. Foi uma boa época, mas não estamos satisfeitos porque não fomos campeões nacionais.
zz – Das duas taças ganhas pelo Cláudio na baliza, qual foi mais saborosa?
CR – A Taça de Portugal. Qualquer futebolista sonha jogar e ganhar lá no Jamor. O ano passado foi contra o Tondela, um clube importante para mim.
zz – O pequeno Cláudio, que foi jogar futsal com os amigos do pai e escolheu ir à baliza, alguma vez pensou viver o que está a viver?
CR – Sinceramente, não. Não sou de pensar muito no futuro, mas mesmo quando fui para Guimarães com 14 anos, não pensava que um dia ia ser profissional. Fui jogando, comecei a ir às seleções jovens, de repente assinei contrato profissional, foi tudo muito natural. Não sou de pensar antecipadamente: ‘olha, tenho de fazer isto para chegar àquele clube’, não. ‘Agora estou no FC Porto e tenho de jogar para ir para o real Madrid’. Não sou assim. Uma criança do interior de Portugal, chegar ao FC Porto e à seleção, sou abençoado. Alguém olha por mim lá em cima.
zz – O que dizem os seus pais, a esta distância do dia em que saiu de casa?
zz – O Cláudio foi logo para a baliza?
CR – O meu pai ainda mantém o hábito de jogar futsal com os amigos na segunda-feira à noite. Eu ia ver os jogos, não jogava, e no intervalo ia para a baliza e o meu pai ficava a fazer uns remates. O meu pai treinava o Paivense e um dia levou-me aos treinos e acabei por ficar.
zz – O nosso diretor de informação escreveu, no dia em que o Cláudio assinou pelo FC Porto, que qualquer jogador deveria olhar para si. Subscreve?
CR – Subscrevo, no sentido do exemplo, de superar as dificuldades, na crença. Se acreditarmos que é possível, no futebol ou noutra área, as coisas podem acontecer. Temos de ir atrás do que queremos.
zz – É o número 14 do FC Porto. Se o Diogo sair, vai querer o 99?
CR – Não, o meu filho não me deixa trocar de número. O meu número preferido é o 1, mas quando cheguei ao FC Porto esse estava indisponível e perguntei se podia ficar com o 14, dia do nascimento do meu filho. Ele cresceu, eu expliquei-lhe e agora ele não me deixa trocar de número (risos).
zz – Nas férias de 2024, o que vai querer o Cláudio contar se fizermos mais uma entrevista?
CR – Vou querer contar que a ida aos Aliados foi incrível (risos). Fui à seleção, mas vivi isso no FC Porto e a ida aos Aliados é incrível. Espero poder falar sobre esse sentimento, mais uma vez.