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    Gianluigi Lentini: A tragédia mais cara do futebol

    Texto por Ricardo Miguel Gonçalves
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    Apesar do grande impacto no futebol italiano, Lentini não é um nome frequentemente ouvido. Muitos lembram um jovem extremo de qualidade inegável, que parecia estar pronto para fazer do futebol mundial a sua praia. Para outros, o nome não quer dizer absolutamente nada, sendo facilmente seguido de um «Quem?» quando sugerido a meio de uma discussão no café.

    Esta dificuldade de lembrar ao certo quem era Lentini não é, de todo, estranha. Afinal, a ascensão meteórica do italiano também foi seguida de uma queda a pique. No Torino, construiu o seu nome ainda jovem, ganhando aos 23 anos uma transferência que fez de Gianluigi Lentini o jogador mais caro do mundo, mas apenas um ano depois tudo ficou em risco. A uma velocidade incrível, quase 200km por hora, Lentini passou do pedestal de um dos jovens jogadores mais entusiasmantes do mundo para uma cama de hospital, quando um acidente de carro o viu fraturar o crânio e ficar em coma. 

    Nos primeiros dias ainda se questionou se Lentini voltaria a jogar. Voltou, é claro, mas com exibições que justificaram as perguntas na conversa de café, pois é difícil relembrar o nome de um jogador que passou uma parte tão grande da sua carreira nas divisões inferiores. É esta a história de Gianluigi Lentini, a tragédia mais cara do futebol. 

    A transferência mais cara de sempre

    Lentini nasceu em 1969 em Turim, e foi aí que se evidenciou. Com a bola nos pés, a qualidade era inegável, pois tinha desde jovem a técnica de um grande jogador, mas também as características físicas chamavam a atenção no jovem jogador, que era rápido como um relâmpago e nada franzino para a sua idade.

    Com 17 anos, estreou-se na equipa principal do Torino, embora o sucesso não tenha sido imediato. Fez 23 jogos divididos por duas épocas na equipa onde foi formado, antes de rumar por empréstimo ao Ancona, na Serie B italiana. Na segunda divisão, destacou-se imediatamente como a estrela da sua equipa, e no ano seguinte já estava de volta à sua equipa original, embora o Toro tivesse também descido à Serie B.

    Explosão foi no Torino @Getty / Claudio Villa/ Grazia Neri
    Com Lentini no onze, o Torino foi campeão e voltou à Serie A numa forma completamente rejuvenescida. Conseguiram imediatamente o quinto lugar depois de voltar ao primeiro escalão, o que significou a qualificação para a Taça UEFA, e a ascensão continuou no ano seguinte. Em 91/92, a equipa de Emiliano Mondonico ficou em terceiro lugar, atrás dos rivais Juventus e do campeão AC Milan, mas estiveram ainda mais perto da glória europeia. Uma boa caminhada na Taça UEFA levou-os até à final, então disputada a duas mãos, de onde saíram derrotados pelo Ajax pela regra dos golos fora.

    Lentini não era um goleador, preferia utilizar as suas capacidades de drible e cruzamento para assistir os colegas, mas o facto de ser ambidestro tornava-o muito imprevisível e isso culminou em seis golos na temporada, que fizeram do jovem o terceiro melhor marcador da equipa.

    O campeão AC Milan não ficou indiferente às exibições do jovem italiano que já vestia as cores da seleção. A chegada de Silvio Berlusconi significou a possibilidade de grande investimento e os rossoneri não hesitaram pagar as quase 13 milhões de libras (cerca de 30 milhões de euros no câmbio atual) que o Torino exigiu pelo passe de Gianluigi Lentini. Nem os adeptos do Torino nem Mondonico ficaram satisfeitos por perder as fintas e explosividade da sua estrela, só que não havia nada a fazer.

    «Não queria perdê-lo», lamentou Emiliano Mondonico, «mas a realidade é que o Milan e a Juventus fazem o que querem, as outras equipas fazem o que podem.»

    O valor tornou-se imediatamente o máximo que um clube alguma vez pagara por um jogador de futebol. Um número tão descabido que foi muito questionado na altura, havendo suspeitas no governo de que se tratava de lavagem de dinheiro. As suspeitas nunca foram confirmadas e Lentini manter-se-ia o jogador mais caro da história do futebol durante quatro anos, até que o negócio que levou Alan Shearer para o Newcastle United ultrapassou ligeiramente os valores que deram fama a um já irrelevante extremo italiano.

    Queda a pique

    Gianluigi Lentini era o reforço de peso para a segunda temporada de Fabio Capello, que chegara um ano antes para continuar o trabalho de Arrigo Sacchi. Para além do extremo de 30 milhões, vieram também Jean-Pierre Papin e Dejan Savicevic, isto para uma equipa que já contava com Gullit, Rijkaard e Van Basten, bem como aquela que era considerada a melhor defesa do mundo.

    Fez 13 jogos na seleção @Getty /
    Lentini não foi um 'flop', como consideraríamos atualmente. Se as coisas não funcionaram para o extremo não foi por não ter qualidade, muito menos por não se esforçar. Aliás, o início em Milão ainda foi bastante promissor durante a primeira época, apesar das críticas que surgiam de todo o lado. Até o L'Osservatore Romano, jornal do Vaticano, deixou claro que viam o valor pago pelo AC Milan como «uma ofensa à dignidade do trabalho». Lentini, por outro lado, foi sempre honesto e admitiu que foi o dinheiro que o fez deixar o Torino.

    Esta honestidade não foi apreciada por toda a gente e Lentini rapidamente ganhou a fama de mercenário que jogava pelo dinheiro apenas. O seu estilo fora do campo também não ajudava a melhorar a sua reputação: as roupas estravagantes, o brinco na orelha e a vida glamorosa de celebridade fizeram o jovem de 23 anos tornar-se um alvo dos meios de comunicação.

    Ainda assim, o extremo correspondia em campo. As exibições eram carregadas de expectativa por ser o jogador mais caro do mundo, mas Lentini não fraquejou no ataque demolidor dos rossoneri e já tinha conquistado os adeptos do clube quando o AC Milan chegou ao seu segundo título consecutivo da Serie A, onde Lentini marcou sete golos em 30 jogos. Nas competições europeias é que o desfecho voltou a ser agridoce, com Lentini a perder a sua segunda final consecutiva, dessa vez na Champions League, onde o Marseille venceu por 1x0. Sedento de glória internacional, Lentini prometeu que no ano seguinte seria diferente, mas mal ele sabia o quão diferente podia ser...

    A pré-época é altura de trabalho árduo a nível físico para um futebolista. A objetivo da luta é estar pronto para competir ao mais alto nível quando soar o apito do árbitro no primeiro jogo oficial, mas para Lentini acabou por parecer mais uma luta pela sobrevivência.

    O estilo bad boy @Getty / Neal Simpson - EMPICS
    Foi em agosto de 1993 que teve um acidente de carro enquanto conduzia para casa, depois de um torneio amigável em Génova. Tinha colocado pneus novos no carro um dia antes, e não sabia que não podia ultrapassar os 70 km/h, o que levou a uma colisão quando ia ao triplo dessa velocidade. O carro capotou e explodiu com Lentini já em segurança. Uma fratura no crânio e dois dias em coma depois, o jogador já estava de pé, pronto para voltar aos relvados. Foi um milagre, ou pelo menos pareceu.

    Marcel Desailly foi o primeiro a reparar que alguma coisa não estava bem. O francês tinha defrontado Lentini uns meses antes na final da Champions League, mas quando assinou pelo Milan encontrou um jogador diferente nos treinos:

    «Dava para ver a capacidade de drible, como ele era antes... e depois», declarou mais tarde o defesa. «O equilíbrio era completamente diferente.»

    E infelizmente era verdade. Aos 24 anos, Lentini parecia acabado. Fez apenas nove jogos durante toda a época, e, apesar de ter conseguido conquistar a Liga dos Campeões que tanto queria, o sabor foi completamente diferente sabendo que não tinha desempenhado um papel importante na equipa, que também venceu a Supercoppa italiana e voltou a conquistar a Serie A.

    Um legado anti-climático

    As críticas a Lentini multiplicaram-se no momento em que a sua forma caiu. Os jornais e adeptos começaram a perguntar como é que o jogador seria capaz de justificar o valor astronómico que o AC Milan pagou por ele dois anos antes, mas já não havia dúvidas de que não se tratava do mesmo jogador em campo, e que o investimento de Berlusconi nunca mais seria recuperado.

    Foram mais duas épocas medianas em Milão e, em 1996, enquanto Alan Shearer trocava o Blackburn Rovers pelo Newcastle, batendo finalmente o recorde de Gianluigi Lentini, o italiano mudou-se para a Atalanta por empréstimo, onde reencontrou o seu antigo treinador Emiliano Mondonico.

    Em Bergamo, fez quatro golos em 31 jogos, antes da transferência (por dois milhões de euros) para o seu Torino, onde fez mais três épocas até decidir, com 30 anos, que o futebol de primeira divisão já não era para si. Ainda jogou mais uma década, embora tivesse sido maioritariamente nos escalões amadores ou semi-profissionais do futebol, antes de se reformar do futebol aos 41 anos. Pelo meio, teve outro acidente, em 2006, então de mota, em que colidiu com um carro e do qual ficou com o joelho em más condições.

    Atualmente, dedica-se à apicultura @Mieli Lentini
    Dez anos depois do fim da sua carreira, Lentini leva uma vida completamente atípica em comparação com o quotidiano de outros ex-jogadores com o seu palmarés. Desde 2019 que se dedicou à apicultura, e entretanto já criou a sua própria marca de mel, que vende com uma foto sua enquanto jogador no rótulo. O extremo veloz e acutilante ficou no passado, mas ainda assim o italiano continua a querer fazer as guloseimas dos adeptos de futebol, desta vez não pelas suas fintas, mas com o Mieli Lentini: «A qualidade dos campeões».

    A história de Gianluigi Lentini é mais uma de 'O que podia ter sido', mas os altos e baixos da vida nunca afetaram o próprio, que manteve sempre uma atitude positiva sobre o seu passado. Quando questionado acerca das manchetes e expectativa da sua juventude, Lentini não mostra nenhuma sobra de tristeza, preferindo apenas sorrir e recordar: «Fiz algo importante na minha vida».

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    Gianluigi Lentini (ITA)

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