No futebol não existe nenhum grupo de regras ou passos em particular que levem um clube ao sucesso, uma vez que, como já foi inúmeras vezes provado, esse é alcançável de várias formas. Seja ao longo de décadas de crescimento em torno de uma cidade/cultura, ou ao longo de poucos anos de evolução menos orgânica com ajuda de investidores bilionários. A segunda opção aproxima-se mais do caso do Red Bull Salzburg, mas não pinta nem metade da imagem.
É tudo uma questão de probabilidades. Não o futebol, mas tudo. Quem construiu o projeto deste clube austríaco sabe disso e trilhou um caminho para o sucesso que começou por ser inovador, mas já foi, entretanto, copiado e emulado pelo Mundo fora. Muitos questionam, considerando negativa a forma como um clube já antigo foi quase riscado, mas, no final, o sucesso fala por si.
Esta é a história de uma das maiores potências do desporto austríaco, hoje com o nome de uma bebida energética.
A história da instituição, tão diferente de como a conhecemos hoje, começa em 1933. Nasce em Salzburgo, considerada a quarta maior cidade do país, um clube chamado SV Austria Salzburg. Surgiu da fusão de dois clubes locais, o Rapid Salzburg, que jogava de verde e branco, e o Hertha Salzburg, que, tal como o homónimo germânico, vestia azul e branco. Violeta era a nova cor.
A glória demorou a chegar. Demorou... muito. Nesses anos, o maior clube da fortaleza do sal (é esse o significado literal do nome da cidade) era o SAK 1914, que alternava entre os dois principais escalões. Para o Austria Salzburg, foi só em 1953, 20 anos depois da fundação, que chegou a promoção ao principal escalão, às costas daquele que foi, também, o primeiro troféu conquistado: o de campeão ocidental.
Entre a elite, o clube só se estabeleceu na segunda vez que subiu, depois de uma queda inicial ao fim de dois anos. Só nessa altura chegou a ter o seu primeiro internacional pela Áustria (Erich Probst). Mas a estabilidade, se pode ser chamada dessa forma, não durou assim tantos anos e o clube voltou a alternar entre escalões, ganhando a fama de equipa elevador.
Foi em 1970/71 que o clube finalmente chegou ao topo. Uma temporada em que lideraram a classificação durante algum tempo, pelo meio chegando à final da Mitropacup (uma competição europeia sem alçada UEFA), mas que acabou apenas como vice-campeão devido a um empate na derradeira jornada. Esse resultado, ainda assim, permitiu a primeira participação na Taça UEFA, de onde foi eliminado pelos romenos do UTA Arad por 5-4 em agregado. Em 1974, novamente vice pela primeira vez, mas na Taça.
Depois dos leões, eliminaram dois clubes alemães no caminho para a primeira final UEFA, que terminou em derrota a duas mãos frente ao Inter de Milão. Vice, uma vez mais, embora tenha secado as lágrimas com a conquista do título austríaco pela primeira vez na história, nessa mesma temporada. O clube revalidou o título no ano seguinte, o mesmo em que se estreou na Liga dos Campeões num grupo que contou com os dois eventuais finalistas: Milan e Ajax.
Em 1997, ano em que se sagraram campeões pela terceira vez na história, voltaram a mudar o nome. Passava a ser SV Wüstenrot Salzburg, devido a um patrocínio com um grupo financeiro do país (não, a red bull não foi pioneira...), mas a verdade é que o clube nunca tinha deixado de ser conhecido como SV Austria Salzburg. Até 2005, isto é.
«Isto é um clube novo», disse Dietrich Mateschitz, dono da Red Bull, depois de comprar o Austria Salzburg em 2005. «Não há tradição, não há história e não há compromissos».
As cores e símbolo foram alterados para encaixar com a identidade da marca e até o site oficial do clube indicava 2005 como ano de fundação, até a federação austríaca de futebol intervir e obrigar a respeitar a data original. Quem não apreciou estas mudanças repentinas? Não será uma surpresa.
Os fiéis adeptos do Austria Salzburg, naturalmente, lutaram contra esta repentina e radical mudança de identidade do seu clube. Manifestaram-se e resistiram, com apoio de grupos de adeptos de outros clubes pela Europa, mas, ao fim de seis meses de protestos, foi aceite a realidade de que nada iria mudar. Essa aceitação surgiu depois da única (e insultuosa) oferta de compromisso por parte da Red Bull: manter o violeta... mas só como cor das meias... no equipamento alternativo... do guarda-redes!
Daí, a massa adepta dividiu-se em dois grupos. Os vermelho e brancos, que apoiariam o Red Bull Salzburg, e os violetas que, leais a uma tradição de 72 anos, fundaram imediatamente o novo Austria Salzburg.
Para a Red Bull, estava dado o primeiro passo de um projeto que se estenderia por outros continentes, com a compra de mais clubes para a formação de uma rede internacional no futebol, estratégia que já foi, entretanto, adotada por outros poderosos grupos. Em 2006 foi o New York Red Bulls, que nasceu na MLS a partir dos ex-MetroStars; o RB Leipzig, que erradicou o SSV Markranstädt em 2009 e que, desde a subida à Bundesliga alemã, é o clube principal do projeto; o já extinto Red Bull Ghana; o Red Bull Bragantino, no Brasil; e, por fim, um regresso à Áustria para fazer do FC Liefering uma espécie de equipa secundária para os touros de Salzburgo.
O objetivo deste texto garantidamente não é publicitar uma bebida energética, ao contrário do que o título deste capítulo possa indicar. Aliás nem para o clube era esse o objetivo principal, já que a marca só ultrapassaria a má reputação ganha com a compra do clube se este passasse a ter verdadeiro sucesso. Foi isso que aconteceu, à formação que ganhou asas e tornou-se na força dominante do futebol na Áustria.
A confusão fora dos relvados não impediu o Red Bull Salzburg de terminar como vice-campeão da Bundesliga logo na primeira temporada. A seguinte (2006/07), já com Giovanni Trapattoni ao leme e Lothar Matthaus como adjunto, terminou em título... com 19 pontos de avanço. O quarto da história do clube, mas apenas o primeiro da nova era.
Na época seguinte o título voltou às mãos do Rapid Wien, mas em 2008 chegou Co Adriaanse, mais um célebre treinador, e o Salzburg foi novamente campeão, com Marc Janko, avançado que mais tarde representou o FC Porto, a destruir a competição com 39 golos em 34 jornadas. O treinador seguinte foi Huub Stevens, que fez da equipa bicampeã mas falhou o tri, o que foi suficiente para ditar a saída.
Schmidt, que uma década depois seria feliz ao leme do Benfica, chegou como um promissor treinador. Não foi campeão no ano inaugural, mas marcou o início de uma nova filosofia de jogo no clube - gegenpress, como é conhecido - e isso valeu-lhe a permanência para uma segunda temporada, na qual o Salzburg fez a dobradinha doméstica e chegou aos oitavos da Liga Europa, com uma icónica equipa carregada pelo quarteto ofensivo de Jonathan Soriano, Alan e os jovens Kevin Kampl e Sadio Mané.
Depois desse feito, Schmidt foi o primeiro de muitos treinadores a saltar para o topo com selo Red Bull, mas a máquina continuou a carburar sem ele e a dobradinha foi repetida. Com a filosofia implementada e jovens jogadores de qualidade a chegar todos os anos, via recrutamento e formação, o Red Bull Salzburg assumiu-se como crónico campeão na Áustria. A Bundesliga é deles, ano após ano!
O domínio na Áustria criou ambição europeia, mas surgiu uma espécie de malapata. Apesar de ser campeão todos os anos, o Red Bull Salzburg não conseguia chegar à Liga dos Campeões. Entre 2012/13 e 2018/19, a equipa tombou sempre nas rondas de qualificação para a liga milionária, ou na 3ª pré-eliminatória ou no play-off, sendo obrigada a disputar a Liga Europa. Nessa segunda competição ganhou o hábito de passar a fase de grupos, mas só em 2017/18 esteve perto de disputar o troféu, tendo caído nas meias-finais. O regresso a uma final europeia foi travado por Rolando, defesa português que, no prolongamento do segundo jogo, atirou o Marseille para a final.
Para o resto da Europa, a participação deste clube ficaria recordada para sempre como nascimento do fenómeno Erling Haaland, avançado norueguês que, então com 19 anos, fez oito golos nos primeiros cinco jogos da competição, o que, aliado aos números domésticos, significou uma luta de tubarões pela sua contratação em janeiro.
Essa participação abriu novo precedente e o Red Bull Salzburg passou a ser presença frequente na fase de grupos da Liga dos Campeões, mesmo quando voltaram a precisar de disputar o play-off para lá chegar. Em 2021/22, na terceira participação consecutiva, conseguiram passar o grupo pela primeira vez, caindo de forma pesada nos oitavos (7-1 em Munique, frente ao Bayern, depois de um 1-1 em casa). Nas temporadas seguintes, não deixaram de marcar presença na fase de grupos.
Não tem na sua base o lado mais bonito do futebol, mas não há como negar a qualidade que esta marca de bebidas energéticas coloca em todos os departamentos dos seus vários projetos desportivos.
O sucesso do Red Bull Salzburg fala por si mesmo. O clube é absolutamente dominante no seu país e é cada vez mais temido nas competições internacionais, onde continua a crescer de ano para ano. Deixou de ser a equipa mais forte do projeto Red Bull, com a ascensão do RB Leipzig, mas a verdade é que isso não teve impacto negativo em Salzburgo, onde o talento continuou a crescer mais rápido e frequentemente do que em qualquer outro lugar.
A filosofia seguida encaixou com aquilo que o futebol moderno precisava, tanto que o clube se tornou cada vez mais numa casa de formação de treinadores de métodos de trabalho e estilos de jogo sempre semelhantes.
Ralf Rangnick, um dos pais desse gegenpress, foi diretor desportivo e esteve na origem dessa tão rara facilidade na produção de treinadores. Em poucos anos pós-Schmidt, o clube foi orientado por vários técnicos que dariam, mais tarde, o salto para desafios maiores: Adi Hutter, Thomas Letsch, Marco Rose, Óscar García, Jesse Marsch ou Mathias Jaissle são alguns dos exemplos.
Mas é na produção de talentos que brilham do lado de dentro das quatro linhas que o Red Bull Salzburg se destaca ainda mais. Os métodos e instalações de topo no treino e formação permitem a evolução de muitos jogadores, mas os departamentos de prospeção e identificação de talento também permitem a chegada de qualidade de vários pontos no globo. Talento nutrido, utilizado, e mais tarde vendido com grande lucro.
Falamos, no parágrafo acima, apenas do verão de 2014. Desde aí, o talento nunca parou de chegar nem de sair, com os valores a subirem cada vez mais em ambos os sentidos.
O clube vendeu nomes como os que aqui listamos, por ordem cronológica: Péter Gulácsi, Stefen Ilsanker, André Ramalho, Dayot Upamecano, Jonathan Soriano, Martin Hinteregger, Bernardo, Amadou Haidara, Valentino Lazaro, Valon Berisha, Hannes Wolf, Xaver Schlager, Stefan Lainer, Diadié Samassékou, Munas Dabbur, Erling Haaland, Marin Pongracic, Igor, Hwang Hee-chan, Dominik Szoboszlai, Enock Mwepu, Patson Daka, Maximilian Wober, Rasmus Kristensen, Mohamed Camara, Karim Adeyemi, Brenden Aaronson, Nicolas Seiwald, Benjamin Sesko, Noah Okafor... etc.
Caso a lista acima não seja intimidante o suficiente, sublinhamos que não é o fim da mesma. De onde esses e outros nomes vieram, mais vêm a caminho. Há mesmo uma fábrica de futebol na cidade austríaca de Salzburgo.