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    zerozero esteve com Amine e Fadhil

    Da I Liga à Distrital: entre jejum, orações e treinos, fomos viver um dia de Ramadão

    2024/03/29 09:05
    E1

    Entrar em campo com as mãos abertas em oração.

    Marcar um golo e levantar os braços em direção ao céu como forma de agradecimento.

    A ligação entre o mundo do futebol e a religião é estreita, sendo vários os jogadores que têm na vertente espiritual um forte aliado no dia a dia de trabalho. Sendo certo que, estatisticamente falando, Portugal é um país maioritariamente cristão, a verdade é que o fenómeno da globalização permite que sejam cada vez mais as religiões representadas no contexto desportivo em território luso.

    Com isto em mente, há uma altura em específico do ano em que o tema 'Religião' é mais discutido: o mês do Ramadão. Quantas vezes, caro leitor, ouviu o treinador da sua equipa dizer que tem de gerir muito bem o jogador X porque este está a cumprir o Ramadão?

    Perante este cenário, e tendo em conta que o mês sagrado para os muçulmanos começou no passado dia 10 de março- perdura até 9 de abril-, o zerozero procurou conhecer esta celebração de forma mais profunda. O plano de ação? Acompanhar um dia completo de um jogador (neste caso dois) que viva de forma efetiva o nono mês do calendário islâmico. Mais do que conversar sobre esta realidade, quisemos vivê-la de perto e perceber quais os desafios e as conquistas de quem, durante estes dias em concreto, procura ligar-se ainda mais a Alá.

    Cedo erguer por uma causa maior

    Não mentimos quando dizemos que vivemos esta experiência durante um dia completo.

    4h45. Numa altura em que ainda não há vislumbre de luz no céu, estacionamos o carro e enviamos uma mensagem a Amine. «Estamos cá em baixo». A espera é curta e interrompida pelo som da abertura automática da porta do prédio do jogador do Rio Ave, em Vila do Conde. O elevador conduz-nos até ao terceiro andar, onde o médio franco-marroquino nos recebe com uma cara que denota algum sono e cansaço (inevitável a um hora destas, não é verdade?).

    Na cozinha há já ovos na frigideira, uma tosta mista na torradeira e tâmaras e leite na mesa. O primeiro raio de sol está 'agendado' para daí a pouco, pelo que Amine tem poucos minutos para ainda introduzir algo no estômago. 

    @Kapta+

    «O Ramadão é um mês sagrado para nós. Não é só fazermos o sacrifício de não comermos e bebermos nada desde o nascer do sol até ao pôr do sol, é também um mês em que nos aproximamos à nossa religião. O objetivo é tentarmos fazer da melhor forma possível aquilo que não fazemos tão bem durante o resto do ano», começa por nos dizer Amine, acrescentando que, «além das orações», os muçulmanos procuram aproveitar este período para ter um comportamento ainda mais «correto» com as outras pessoas.

    O relógio indica 5h03, num cenário que obriga o camisola 10 rioavista a deixar a tosta mista a meio. Já depois de passar água no corpo como forma de purificação, o jogador estende o tapete na sala- direcionado para Meca, cidade do profeta Maomé- e procede à primeira de cinco orações que irá realizar no dia (as restantes acontecerão às 13h, 16h, no momento do pôr do sol e às 20h30).

    «O corpo habitua-se e vai-se tornando uma normalidade. Para mim, o mais difícil é a sede, não beber depois do treino é muito difícil. No fim do dia, quando falta uma hora ou meia hora, ficamos a tremer para podermos comer. No entanto, cada dia que passa torna-se mais fácil. Neste momento tenho 31 anos e já faço o Ramadão desde os 14/15, portanto acaba por ser sempre a mesma coisa». É com este apontamento que Amine se despede momentaneamente da equipa de reportagem do zerozero, isto de forma a dormir mais um pouco, das 5h30 às 8h.

    Tripé às costas e bola no pé

    Não muito longe de Vila do Conde, no caso na cidade do Porto, a rotina de Fadhil é muito semelhante à de Amine. A única diferença? O iraquiano não tem um plano alimentar preparado pela estrutura de um clube profissional, isto na medida em que representa o Inter de Milheirós, emblema que compete nas divisões distritais da AF Porto.

    Atualmente com 27 anos, o avançado está há sete em Portugal e concilia a atividade desportiva com o trabalho como operador de câmara. De forma natural, viver esta rotina durante o Ramadão provoca algum desgaste. «Por volta das 15h, num dia longo de trabalho que envolve esforço físico, começo a sentir fome. Costumo dizer que os primeiros dez dias do Ramadão são tranquilos; nos segundos dez dias já notas algo; nos últimos dez dias 'morres'. Estás muitos dias sem comer e há aqui estas três divisões. Por norma perco dois quilos nesta fase, mas, como sou atleta, tento comer bem quando posso e tomar suplementos vitamínicos», refere o iraquiano, que optou por deixar o seu país quando este entrou em guerra. 

    Avançado está no Inter de Milheirós desde janeiro @Arquivo Pessoal

    A cumprir o Ramadão desde os 18 anos, Fadhil, que se diz já habituado a todo este processo, vinca um pequeno pormenor que o beneficia neste ano de 2024: «Este ano o Ramadão é um pouco mais cedo e isso acaba por ser benéfico, já houve alturas em que o sol se punha às 20h, altura em que ia treinar. Assim, pouco depois do treino começar, o treinador mandava-me ir comer; eu levava sempre umas barras de cereais para o banco. O mais importante era mesmo água, depois de beber fico logo melhor.»

    Para quem não está ligado ao Islamismo, este esforço pode parecer hercúleo. No entanto, à semelhança de Amine, Fadhil diz que esta é uma celebração sem a qual já não consegue viver. «Desde o momento em que abri os olhos percebi que a minha família faz isto, é uma coisa cultural.  É muito mais do que não beber e não comer. Nesta altura para tudo, até numa perspetiva sentimental. Aqui as pessoas associam mais à questão da comida, mas há muito mais do que isso, no Iraque há vários convívios com a família e os amigos nesta fase. É como se houvesse um botão de reiniciar», destaca.

    Monitorização é a chave

    Enquanto Fadhil carrega câmaras e tripés de um lado para o outro, Amine, já depois de preparar o filho Ayden para a escola, chega ao estádio do Rio Ave para mais uma sessão de treino. A entrada do médio no balneário coincide com a chegada de Elton Gonçalves, nutricionista dos vila-condenses, ao recinto. Numa altura em que a equipa orientada por Luís Freire tem cinco jogadores a cumprir o Ramadão- para além de Amine, também Aziz, Boateng, Úmaro Embaló e Amine Rehmi estão em jejum do nascer ao pôr do sol-, torna-se imperativo falarmos com Elton. 

    Amine Oudrhiri
    2023/2024
    28 Jogos  2271 Minutos
    0   6   0   02x

    ver mais �

    «Em termos de necessidades energéticas diárias de um jogador, as nossas aqui estão a variar entre 3000 e 3500 kcal/dia. Dividir isso só por três refeições faz com que tenham de ser ingeridas muitas calorias em cada refeição e isso é um grande desafio. Mesmo tendo eles muita fome e sede, quando podem voltar a comer têm de o fazer de forma faseada para não ficarem maldispostos e enjoados», diz, destacando os pequenos ajustes que tem de fazer para cada atleta: «Os nossos planos alimentares têm de ir ao encontro dos objetivos estabelecidos em termos de necessidades energéticas, sendo que temos de ter atenção à distribuição de macronutrientes e às preferências alimentares de cada jogador. Era mais fácil dizer «Meus amigos, estamos no Ramadão e é isto que têm de comer», mas não é assim que funciona. Por exemplo, o Amine gosta de ovos e tâmaras e isso é incluído- o plano parte sempre do jogador.»

    De forma natural, o facto de Elton estar associado ao Rio Ave há vários anos faz com que a atuação neste período já seja algo 'natural'. Ainda assim, o nutricionista já foi surpreendido em algumas ocasiões, isto na medida em que já viu, por exemplo, atletas a comer «arroz com frango» no intervalo de jogos. 

    Louzeiro acompanha Luís Freire há vários anos @Gonçalo Pinto/zerozero

    A boa disposição de Ukra é uma constante e estende-se do período de aquecimento no ginásio à palestra pré-treino. Amine, com o relógio a bater nas 11 horas e com o sol bem alto no céu, prepara-se para um esforço físico que, só por si, já é digno de registo, mas que ganha contornos ainda mais extraordinários se se tiver em conta que o franco-marroquino não coloca nada à boca desde as 5h03.  

    De resto, uma das imagens mais impressionantes do treino surge quando, já depois do meiinho, do exercício de finalização e do jogo em campo reduzido, a maioria dos jogadores aproveita uma pausa no treino para se hidratar, ao passo que Amine fica imóvel no centro do terreno

    qComo ele também não se hidrata, temos de ter especiais cuidados no final do treino porque o risco de lesão aumenta nesta fase
    Tiago Louzeiro, adjunto do Rio Ave

    Tiago Louzeiro, treinador-adjunto do Rio Ave, dá-nos a conhecer como é feita a gestão de cargas dos jogadores que estão a cumprir o Ramadão. «Falamos com o Amine mal ele chega para percebermos como é que ele está. Durante o treino a comunicação é fundamental, sendo que, no pré-treino, vemos se é preciso fazermos algum ajuste. Podemos usar o Amine mais como joker e podemos tentar fazer com que ele, durante o treino, recupere mais do que os outros. Como ele também não se hidrata, temos de ter especiais cuidados no final do treino porque o risco de lesão aumenta nesta fase, principalmente quando fazemos exercícios em campo grande. De forma resumida é isto: comunicação, preparação e reajustes constantes durante o treino», assevera.

    E sendo certo que este período é exigente, o técnico considera que, neste caso em específico, o médio sabe proteger-se: «Este é o terceiro ano que estamos com o Amine e nunca senti uma quebra de rendimento dele em jogo. Já tivemos de ajustar algumas coisas, mas a experiência que tenho diz-me que, no Ramadão, os jogadores têm o objetivo de cumprir tudo o que é necessário e não cortarem-se a algo.»

    Diferença religiosa não abala estabilidade familiar

    «De 0 a 10, em que nível de fome/sede estás?»

    «Cerca de 3/4.»

    «E em termos de cansaço?»

    «Aí já é um pouco mais, talvez um 5/6.»

    Esta conversa, logo após o treino (12h30), é o gancho ideal para o passo seguinte no dia de Amine: uma sesta de uma hora e meia. É certo que o médio aproveita para descansar o corpo, mas este curto período de sono permite-lhe também 'controlar' melhor a fome. 

    Amine com o pequeno Ayden à entrada da piscina @Gonçalo Pinto/zerozero

    «Em casa estou sempre a pensar 'Que horas são? Quando posso voltar a comer?', portanto é bom sair de casa», explica-nos o médio quando saímos às 16 horas para ir buscar o pequeno Ayden, que está prestes a completar dois anos, à escola. A tarde ainda reserva uma ida à piscina de pai e filho, sendo que o regresso a casa dá-se às 17h45- a uma hora do pôr do sol.

    Ainda que todo este processo não seja fácil de gerir, Amine conta com uma fiel escudeira durante este mês: a esposa . «Eu ajudo nas refeições, procuro equilibrar as refeições. Tive ajuda do nutricionista do Rio Ave, que nos fez recomendações, e procuro seguir o plano para garantir que o Amine mantém a performance nos treinos e nos jogos», partilha connosco Geraldine, que descreve ainda como foi adaptar-se a alguém com quem não partilha a religião: «Eu não conhecia o islamismo, descobri-o com o Amine e com a família dele. É algo ao qual te vais adaptando com o tempo, já que fui aprendendo mais sobre o Ramadão e sobre as orações, por exemplo.»

    Enaltecendo o papel da esposa, uma «pessoa chave» neste processo, Amine assume que gostava que o filho seguisse as suas pisadas em termos religiosos, mas sempre sem pressões e com bastante calma. Apesar de reconhecer as diferenças que existem entre França e Portugal no que ao Ramadão diz respeito- em território gaulês chegou a jogar em clubes em que «cerca de 70 por cento do plantel era muçulmano»-, Amine considera que tal cenário nunca foi um problema.

    «Nunca senti preconceito, as pessoas nunca falaram de mim de uma forma diferente. Sei que não é a religião predominante no país, mas nunca tive problemas. Faço as minhas coisas, respeito todas as pessoas e este país que eu adoro desde que cheguei. As pessoas têm a sua forma de estar e crenças diferentes, temos só de respeitar e aceitar». remata. 

    Geraldine é o grande apoio de Amine nesta fase @Gonçalo Pinto/zerozero

    O nível de sede já subiu para 9 e o de fome para 7, ao passo que o cansaço está agora em 7.

    Às 18h50 o sol começa a pôr-se e, depois de fazer a oração, o médio pode finalmente sentar-se à mesa para comer (pudemos comprovar que a comida marroquina feita pela esposa de Amine é realmente divinal) e beber, ao cabo de quase 14 horas.

    Bon appétit, Amine!

    «O Ramadão tem influência na utilização dele»

    Se as últimas horas do dia de Amine são dedicadas à reposição de nutrientes e ao descanso, Fadhil, por seu lado, ainda tem muita ação pela frente depois do sol se pôr. O avançado do Inter de Milheirós regressa a casa por volta das 18h30, reza, come e prepara tudo para seguir para o treino.

    «Eu sinto que os treinadores pensam 'Ah, ele está a fazer o Ramadão, portanto não pode jogar porque não tem energia'. Eles não dizem diretamente, mas eu entendo que eles pensam dessa forma. No entanto, isto é algo mais mental para mim, não sinto grandes diferenças. Ainda assim, eu entendo. Às vezes até me dizem para comer alguma coisa, mas é mais na brincadeira», confidencia, entre risos, o iraquiano. 

    Plantel do Inter de Milheiróes prepara-se para o treino @Gonçalo Pinto/zerozero

    Ao contrário de Amine, Fadhil, como treina à noite, pode hidratar-se durante a sessão de trabalho ministrada pelo treinador Luciano Souza. Ainda assim, o atacante não esconde a tormenta que é cumprir o Ramadão nos dias de competição: «Os nossos jogos são sempre às 15h/16h e essas são as piores horas. Na primeira jornada após o início do Ramdão foi difícil, ainda para mais tendo em conta que trabalhei na manhã do jogo. Já me aconteceu, em dias de muito calor, ter de pedir para sair ao intervalo porque estava sem energia, mas agora, com o tempo fresco, é mais fácil.»

    Apesar de Fadhil já ter alguma experiência na forma como se gere durante o Ramadão, esta situação acaba por ser nova para a equipa técnica do Inter de Milheirós, tal como nos explica o treinador Luciano Souza.

    «É a primeira vez que lido com esta situação e não é fácil. Esta questão do Ramadão tem influência na utilização dele. Há debilidade a nível alimentar, já que os colegas, a meio de um jogo, podem comer um chocolate ou uma banana no balneário. Eu prefiro que ele me dê 100 por cento em 30 minutos de jogo e depois, quando o Ramadão terminar, será mais fácil. Não estou a dizer que ele não é opção nesta fase, mas tenho de saber gerir muito bem esta particularidade», considera o técnico, acrescentando ainda que a comunicação entre atleta e equipa técnica é fundamental e que é importante que esta situação seja «melhorada no futebol distrital». 

    Técnico chegou ao clube há poucas semanas @Gonçalo Pinto/zerozero

    (Estaríamos a mentir se disséssemos que acompanhamos o Inter de Milheirós numa base regular, mas a estratégia de Luciano Souza parece ter surtido efeito: na semana em que fomos ao treino do clube, o Inter defrontou o rival AC Milheirós e triunfou por 5-2. Fadhil teve direito a 40 minutos em campo e respondeu... com um golo!)

    Com o treino finalizado, é hora de recolher a casa para jantar e voltar a rezar antes do merecido descanso. Amanhã, e até 9 de abril, cumpre-se mais um dia de Ramadão.

    Comentários

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    motivo:
    Parabéns Zerozero
    2024-04-09 16h40m por Echelon77
    Estas reportagens são sempre de louvar.
    Trazem histórias e factos que podemos desconhecer e são sempre interessantes de se ler.

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