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    A Guerra do Futebol

    Texto por João Pedro Silveira
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    «Pequenos países do terceiro Mundo têm a possibilidade de despertar muito mais interesse quando decidem derramar sangue. É uma triste verdade, mas é mesmo assim

    ― Ryszard Kapuściński, in "A Guerra do Futebol"

    «Futebol, é uma metáfora para guerra, que às vezes se torna mesmo numa.»

    ― Eduardo Galeano
     

    Que o futebol desperta paixões e é certamente um desporto de emoções é uma «verdade» que ninguém contesta. A intensidade com que os jogos são disputados muitas vezes roça a violência. Na bancada e ao redor dela, os adeptos fazem juras de ódio aos rivais e prometem dar a vida pelo seu clube ou seleção. Há impropérios, insultos, desabafos e ameaças, mas normalmente tudo termina depois do apito final do árbitro.
     
    Todos sabemos que por mais violenta que seja a retórica dos adeptos do futebol, a verdade é que a maior parte da violência no «desporto rei» é verbal e poderá ser considerada na melhor das hipóteses, como um exacerbado dramatismo. Como um balão que enche e que depois rapidamente se esvazia. 

    Nem Brian Clough, que um dia disse que “o futebol não é uma questão de vida ou morte; é muito mais do que isso” terá pensado algum dia que uma rivalidade futebolística poderia conduzir a um conflito armado entre dois países, mas foi precisamente isso o que aconteceu em 1969, na chamada "Guerra do Futebol", que opôs as Honduras e El Salvador. 

    @STR / Getty Images
    Foram três jogos, na qualificação para o mundial de 1970 no México, que fizeram espoletar a faísca, mas a tensão entre os dois países já tinha raízes.

    Como é que um conjunto de jogos de futebol se transforma num conflito em que dias depois se via a força aérea de El Salvador largar bombas sobre o aeroporto da capital hondurenha, Tegucigalpa? 

    Dias de tensão

    Em 1969, as Honduras tinham uma população de 2,333,000 habitantes, enquanto o vizinho El Salvador contava com cerca de três milhões. Se recordarmos que El Salvador ocupa um quinto da área geográfica das Honduras, é fácil perceber que o pequeno estado banhado pelo Pacífico sofria de um excesso de população, que naturalmente procurou emprego nas nações vizinhas, destacando-se entre elas as Honduras. 
     
    O crescimento e o sucesso dessa população salvatoriana emigrante nas Honduras que trabalhava nos campos e na indústria local começou a provocar ressentimentos nos locais, que sem emprego e sem terrenos para arar, culpavam os emigrantes pelo seu insucesso. 
     
    Ao mesmo tempo que o excesso populacional pressionava a fronteira, os dois governos tentavam resolver através de diversos acordos um conjunto de velhas disputas territoriais, que há muito provocavam tensões nas relações entre os dois países.
     
    Em 1969 havia cerca de 300 mil salvadorenhos nas Honduras, que perfaziam cerca de 20% da população rural do país, estavam reunidas todas as condições para a «bomba» estalar. 
     
    De fora para dentro do campo

    No primeiro jogo em Tegucigalpa, nas Honduras, a equipa salvatoriana foi recebida por uma multidão furiosa. A noite foi longa, com adeptos a fazerem barulho a noite toda, impedindo a equipa de dormir. 
     
    O jogo foi intensamente disputado, sem golos até aos 90 minutos, só seria resolvido no prolongamento, com o golo da vitória hondurenha. Na bancada começaram confrontos entre as duas claques e a equipa de El Salvador teve de ser retirada do campo - e do país - com proteção policial. 
     
    A noticiada morte de uma adepta salvadorenha, mesmo que após um suicídio, incendiou a opinião pública em El Salvador. A televisão local transmitiu em direto as exéquias públicas e o país "jurou" vingança.

    Segunda mão
     
    A segunda mão começou com a "calorosa" receção à seleção hondurenha, em San Salvador, capital de El Salvador. Os adeptos locais assobiaram, insultaram e ameaçaram a comitiva hondurenha. Enrique "el Conejo" Cardona foi o alvo principal das atenções locais, com direito a cartazes ameaçadores, um deles exibia até um coelho enforcado. 

    @Wikipedia
    Os adeptos salvatorianos provocaram o caos na própria capital, cercaram o hotel e partiram as janelas do edifício, atirando pedras, ovos, tomates, ratazanas mortas...

    A polícia salvadorenha informou as autoridades hondurenhas que era incapaz de proteger a comitiva e esta teve de se refugiar na embaixada das Honduras. Daí saíram para o estádio, onde perderam inapelavelmente por 3x0.
     
    Aliviado, o treinador Mário Griffin Cubas confessou estar feliz com a derrota da sua equipa, pois garantia que se «a equipa tem ganho, nenhum deles saía com dali com vida». 
     
    O jogo não teve muita história. Nas bancadas houve caça aos adeptos hondurenhos. A bandeira das Honduras foi vandalizada, o hino foi gozado, o terror dos jogadores hondurenhos era total. A vitória salvadorenha obrigava a um terceiro jogo, obviamente em lugar neutro. 
     
    Do México às bombas
     
    A 27 de Junho, dia em que os dois países se encontravam na Cidade do México, o governo hondurenho cortava relações com o vizinho. Nas últimas semanas antes do jogo, as Honduras tinham sido palco de diversos ataques aos emigrantes salvadorenhos, quem em pânico procuravam a fronteira. 

    A ameaça era clara, com as casas dos emigrantes a serem incendiadas para não terem razões para voltar atrás. Cerca de 17 mil atravessaram a fronteira durante esses dias. Do outro lado da fronteira muitos clamavam por justiça e por uma "lição". «É preciso civilizar as Honduras» clamava um jornal local. 
     
    Quando a bola começou a rolar na Cidade do México, ambos os países sabiam que o que estava em disputa era muito mais que um lugar na fase final do Campeonato do Mundo. Em 90 minutos, jogava-se o orgulho e quiçá a independência nacional.

    O jogo foi emocionante e bem disputado. El Salvador chegou aos 2x0 com facilidade mas as Honduras voltaram à luta e empataram o jogo que seguiu para prolongamento. Seria José Antonio Quintanilla a marcar aos 101 minutos o golo que deu a vitória a El Salvador. 

    Nesse mesmo dia El Salvador respondeu às Honduras e rompeu as relações diplomáticas. O primeiro passo para a guerra estava tomado.
     
    A Guerra 
     
    Tal como no jogo que deu a qualificação aos salvadorenhos, no conflito, a iniciativa também pertenceu a El Salvador. A 14 de Julho, aviões da força aérea salvadorenha entram no espaço aéreo das Honduras. 
     
    @Wikipedia
    A superioridade do exército salvatoriano, melhor equipado e treinado, fez-se sentir nas primeiras horas do conflito. A movimentação do exército em direção à Tegucigalpa fez-se sem grande oposição até à conquista de Nueva Ocotepeque. 

    A resistência das populações locais, as dificuldades com o terreno e as difíceis condições climatéricas atrasaram o avanço da ofensiva salvadorenha. 

    Entretanto a força aérea hondurenha retaliava bombardeando posições estratégicas em solo salvatoriano. Entrou então em ação a Organização de Estados Americanos que negociou um cessar-fogo que entrou em vigor a 20 de julho.

    Em poucos dias, cerca de duas mil pessoas tinham perdido a vida. A destruição causada pelos combates e bombardeamentos era evidente, especialmente no lado hondurenho. Os deslocados, os refugiados deixavam atrás de si um rasto de tristeza e pobreza.
     
    Muitos hondurenhos e salvadorenhos não percebiam a razão porque tinham pegado em armas. O mundo olhava para os dois países e esta «Guerra do Futebol» como uma extravagância que só podia ter lugar em distantes e exóticas repúblicas de que poucos tinham ouvido falar.
     
    Para a memória futura ficou a incerteza geopolítica, uma inimizade que décadas depois ainda não se desvaneceu completamente, e a certeza de que as emoções que o futebol gera, quando mal canalizadas, podem ter os mais nefastos resultados. 

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    jogos históricos
    U Sexta, 27 Junho 1969 - 00:00
    Estadio Azteca
    3-2
    a.p.
    José Cardona 19'
    Rigoberto Gomez 50'
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