Há comboios que só passam uma vez. Há oportunidades de uma vida. E há que as agarrar. Quando Carlos Queiroz, naquele verão de 2003, aceitou a proposta de Florentino Pérez para sair da sombra de Sir Alex Ferguson e ir para Madrid comandar o mais mediático conjunto de estrelas da altura, até podem ter surgido muitos surpreendidos pela escolha do presidente do Real Madrid, mas nenhum pôde questionar a escolha do técnico. De repente, Carlos Queiroz tinha nas mãos o maior desafio da sua carreira.
Lançado em termos internacionais com as conquistas de Riade (1989) e Lisboa (1991), Mundiais de sub-20 que Portugal ganhou sob o seu comando, o técnico passou por várias experiências, desde a seleção portuguesa às dos Emirados Árabes Unidos e África do Sul, passando pelo Sporting, EUA e Japão. O currículo já era bom. Um ano antes, em Manchester, chegou para coadjuvar aquele que era um dos melhores, senão o melhor, treinadores do Mundo. A sucessão já era tema e, com essa mudança, muito se especulou de que seria Queiroz a ficar com a cadeira de Ferguson um dia. Só que o Real Madrid bateu à porta...
O contexto
«Quando me convidaram para o projeto, não fui enganado por ninguém. Sabia o que tinha em mãos, a partir do momento em que o Jorge Valdano [antigo jogador e ex-diretor desportivo do Real Madrid] me fez o convite. “Precisamos de um treinador para este projeto e o treinador és tu.” Quando é o Real Madrid a convidar, dizes sim primeiro, e só pensas depois»
A frase pertence ao próprio Queiroz, numa entrevista à Tribuna Expresso, e é perfeita para ilustrar o quanto a abordagem significou. Mais do que contratos e políticas a seguir, treinar o Real Madrid foi, para o técnico, algo obrigatório de aceitar. Alex Ferguson ainda o tentou demover, mas, num segundo encontro, entendeu a sua decisão e até lhe terá dito que ficaria desiludido se não o visse aceitar. Pois bem, rumou à capital espanhola.
O cenário encontrado foi de uma equipa campeã nacional e à procura de nova Liga dos Campeões, assente na política de «Zidanes e Pavones» (leia sobre isso aqui) que Florentino Pérez tinha instituído e que, basicamente, procurava misturar grandes estrelas do futebol mundial a promissores jogadores da cantera. Se a primeira se resolvia com os milhões do presidente, a segunda necessitava de um gestor competente, habituado a lidar e potenciar novos atletas - no fundo, aquilo em que Carlos Queiroz tinha a reputação de ser forte.
Só que ainda estava fresca na memória a atitude de Florentino para com Vicente del Bosque, treinador bastante querido pela massa adepta, que acabara campeão sem que o presidente lhe renovasse o contrato. Tinha caído na Champions nas meias-finais e na taça perante o Mallorca, mas o título poderia dar para a continuidade - até porque tinha ganho duas Ligas dos Campeões em quatro anos. Não deu, tal como para Fernando Hierro, mítico capitão que também teve uma saída azeda, e ainda o inglês Steve McManaman, que também tinha saído no fim da época e mais tarde se referiria àquele processo como a «Disneyficação do Real Madrid». Os adeptos criticaram bastante a postura do presidente e, ao chegar, Carlos Queiroz tinha um clima adverso. Para piorar, não houve margem de manobra para reforços, porque o grande objetivo de época para Florentino era deixar as contas do clube a zero, uma promessa eleitoral para sossegar aqueles que desconfiavam da sua capacidade de gestão perante tantos investimentos (Figo foi recorde mundial, Zidane superou-o um ano depois, ambos negócios feitos pelo espanhol).
«Não sou muito adepto de estratégias para controlar balneários. Aqui, certamente temos figuras especiais, mas, desde que todos entendam quem é o maestro, tenho a certeza de que a orquestra vai funcionar bem. Eu só peço ao plantel que seja 100% profissional», apelou o português na sua apresentação, ele que escolheu José Peseiro, na altura um desconhecido absoluto em Espanha, para ser seu adjunto.
Um começo de falsa sensação
A primeira missão foi lidar com o facto de David Beckham, obviamente uma contratação de Florentino repleta de intenção mercantil, posicionar-se na direita, a zona que era de Luís Figo, outro dos galáticos.
«Figo é um grande profissional, com mentalidade aberta. Ele joga para servir a equipa e não para se servir dela. Na minha opinião, o seu jogo vai adquirir uma nova dimensão a jogar na esquerda», dizia Queiroz a meio de agosto, já com a pré-época avançada. Uma mudança que, a longo prazo, acabou por não se verificar, pois o rendimento do português era superior na direita, o que fez com que Beckham tivesse de jogar no meio em alguns períodos da temporada para poder coabitar no onze.
Queiroz alertava Florentino: «Não podemos querer vencer a corrida com um Ferrari se ele só tiver três rodas». Uma analogia que não caiu bem no líder merengue, mas que exemplificava o cenário de desequilíbrio. Helguera, um polivalente que atuava a médio ou a central, teve de recuar por causa da saída de Hierro e a equipa partiu-se cada vez mais: à frente, os galáticos, atrás, os miúdos da cantera. Na frente, tinham de jogar Figo, Zidane, Beckham, Raul e Ronaldo, pelo que sobrava uma vaga no meio, ou para Cambiasso, ou para Guti (também ele com mais tendência para a construção). A juntar à polémica, Morientes também saiu no fim do verão, por empréstimo para o Mónaco. Mais uma vez, a opinião de Queiroz não contava.
No campo, o começo foi positivo, com a Supertaça a ser ganha ao Mallorca, de Jaime Pacheco (4x2 no conjunto). No campeonato, alguma inconsistência defensiva, mas que começou por ser bem compensada pela enorme capacidade ofensiva de uma equipa onde o talento individual ia dando para resolver os problemas menores. Quando eram maiores, as quedas surgiam, como no Mestalla ou no Sanchéz Pizjuán.
Na jornada 12, passagem para o primeiro lugar, numa altura em que o grupo da Liga dos Campeões (FC Porto, Partizan e Marseille) já estava praticamente resolvido. Logo a seguir, vitória em pleno Camp Nou contra o Barcelona de Rijkaard (1x2), um desafio em que os culés não puderam contar com a nova estrela emergente, Ronaldinho, e que também ajudou a dar a falsa sensação de que tudo estava bem no Santiago Bernabéu.
O começo do descalabro
Não estava tudo bem. Nunca esteve, mesmo nas vitórias. Anos mais tarde, um dos jovens, Rubén González, não poupou Queiroz por causa do jogo contra o Sevilla (4x1), onde o tirou aos 26 minutos, já com 3x0 no marcador: «Os golos vieram muito rápido e nos primeiros minutos. Queiroz decidiu que a minha saída poderia mudar o rumo do jogo e isso não aconteceu. Sentenciou-me e provocou-me imensos danos, apesar de ter seguido com a minha carreira. Eram lágrimas de raiva, da ilusão de uma criança, ao ver o seu sonho esfumar-se. Carlos Queiroz não me disse nada, na verdade não falei mais com ele, mas não guardo rancor».
Sairia emprestado para a Alemanha, num janeiro onde não houve qualquer entrada. Não havia dinheiro para isso, embora dinheiro não fosse um problema...
No fundo, a lesão, contraída contra o Racing Santander, apenas fez Ronaldo perder três jogos imediatos, isto já depois de Valencia e Sevilla terem sido superados na taça e de o Bayern ter sido passado na Liga dos Campeões. Só que, naqueles meados de março, aquele aparente sucesso de vidro acabou por estilhaçar.
Um final deplorável
No regresso do Mónaco, já só havia uma solução: ganhar o campeonato. O adversário seguinte era o Osasuna, a fazer uma boa época, embora sem que pudessem haver argumentos sobre a lógica do jogo. Pois bem... 0x3 para os de Pamplona, lenços brancos para Queiroz e, apesar da vitória logo a seguir no dérbi contra o Atlético (1x2), que deu liderança partilhada após empate dos che, uma reta final inacreditável.
Cinco jogos, cinco derrotas. Impensável, para um dos maiores, senão o maior, clubes do mundo. O Barcelona começou a série, ao vingar-se na casa do maior rival, com Luís Figo a ser expulso, e depois Deportivo, Mallorca, Murcia e Real Sociedad. Quando a época chegou ao fim, ninguém tinha dúvidas de que o desfecho seria a saída do treinador.
«Foi o período mais triste que vivi no Real Madrid. Recordo-me desses meses e é o período de que mais raiva tenho. Se pudesse voltar atrás dava a volta a muita coisa», admitiria Iker Casillas posteriormente.
«Estávamos a jogar um futebol fantástico, durante muitos meses estivemos a liderar La Liga jogando muito bem, mas o plantel não tinha muitas soluções. Quando se cometem erros, paga-se caro. Vejam o número de treinadores que passaram pelo Real Madrid depois de mim e quantos milhões de euros gastaram em jogadores... Naquele momento bastava ter-se mantido Morientes, não se ter vendido o Makélélé para o Chelsea e ter-se assinado com um bom central para substituir Hierro. Teria sido suficiente, mas todos conhecem Florentino», palavras de Queiroz, em 2016.
Regresso à casa de partida
Carlos Queiroz saiu sem qualquer brilho de Madrid, com culpas próprias, mas muito como vítima da conjuntura que encontrou, e não conseguiu o que dele se esperava. Ainda assim, nada que beliscasse a sua reputação.
Alex Ferguson ligou-lhe a dizer que o lugar era seu e recebeu-o de braços abertos, tanto que o português entretanto teria de recusar o Tottenham por já se ter comprometido com o mítico treinador para o regresso. Tudo voltaria à estaca zero, ou seja, à perspetiva de um dia suceder a Ferguson em Old Trafford - não aconteceu porque Queiroz foi convidado por Gilberto Madaíl em 2008 para ser o sucessor de Scolari na seleção nacional.