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    França 1998
    Cultura do Futebol

    A vitória do multiculturalismo

    Texto por João Pedro Silveira
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    Não houvera antes nenhuma seleção campeã do Mundo tão global como a França e não deixa de ser curioso que fosse a pátria de Nicolas Chauvin a dar ao Mundo um campeão com raízes tão diversas. 

    O escritor inglês J.R.R Tolkien escreveu um dia que «as raízes profundas não gelam» e a verdade é que os emigrantes de todo o Mundo levam consigo essas tradições, que por mais adaptações e aculturações, sobrevivem, como manifestações de orgulho nacional, tanto consciente como inconscientemente demonstradas no dia-a-dia.

    País de acolhimento

    Os emigrantes carregam consigo diversos fardos, o mais pesado deles será o do estereótipo e do cliché. Poucos parecem lembrar que a lista de emigrantes famosos inclui nomes tão diversos e respeitáveis como Cristóvão Colombo, Mahatma Ghandi, Karl Marx, Albert Einstein, John Lennon, Vincent van Gogh ou Leonardo da Vinci. A própria França tem a sua fatia generosa de imigrantes, ou filhos destes que ajudaram a tornar a França, como esta lista tão bem atesta:

    Charles Aznavour, Michel Platini, Frederic Chopin, Isabelle Adjani, Serge Gainsbourg, Daniel Cohn-Bendit, Nicolas Sarkozy, Jean-Paul Belmondo, Laetitia Casta, Léo Ferré, Émile Zola, Albert Uderzo, Guillaume Apollinaire, Marie Curie, René Goscinny, Georges Moustaki, Raymond Kopa, Juliette Binoche, Roman Polansky, Paul Celan, Marc Chagall, Jacques Tatti, Joe Dassin, Marguerite Yourcenar, Albert Camus, Éric Cantona, Le Corbusier...

    A França orgulhosa, presta homenagem a Zizou, o herói da vitória na final.
    A França sempre fora uma nação aberta ao Mundo, habituada a acolher gentes à procura de uma vida melhor, de liberdade ou de um local para porem em prática todas as suas capacidades. Pintores, músicos, escritores, cientistas, pensadores, poetas, filósofos, todos rumaram a França tendo Paris como destino, para aí fazerem nome e conviverem com os maiores, viverem entre os seus no «centro do Mundo».

    A sua grandeur, ou a ilusão da mesma à isso obrigava, a França fechava os olhos aos que não interessavam, mas abria o seu seio aos desfavorecidos e perseguidos do Mundo. Noblesse Oblige, dirão os franceses, a verdade é como centro cultural do continente até meados do século XX e como uma das potências económicas da CEE e mais tarde UE, a França atraiu vagas e vagas de emigração, tanto das ex-colónias do entretanto defunto Império francês como a Indochina, a Argélia, Marrocos, Tunísia, a África Ocidental Francesa ou Madagáscar, mas também de emigrações com tradição no «hexágono» como a Arménia, a Polónia, a Rússia e a Hungria, ou da emigração proveniente dos países do sul da Europa, em particular Itália, Espanha e Portugal.

    Emigrantes e imigrantes

    As últimas décadas do século XX viram o crescimento das grandes comunidades emigrantes, especialmente as magrebinas, acumularem-se nas periferias das grandes cidades como Paris, Lião, Bordéus ou Marselha, em guetos «higienicamente» separados da França francesa. 

    Se os portugueses, espanhóis e italianos saíram dos bidonvilles integrando-se discretamente na sociedade; marroquinos, senegaleses e argelinos em breve tomaram o seu lugar. O caminho para o sucesso para um filho de um imigrante na França do fim do milénio não era fácil e foi assim que o futebol surgiu como um caminho de esperança para milhares de jovens por todo o país. 

    Os Campos Elísios, palco da festa gaulesa pela conquista do mundial na noite de 12 de Julho de 1998.
    Enquanto a Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen clamava contra os imigrantes e a invasão estrangeira, agitando as bandeiras xenófobas e nacionalistas que sempre encontraram eco numa margem generosa da sociedade gaulesa, a seleção nacional, indiferente a tudo isso, formava um grupo multicultural que tentava ser um reflexo da França do seu tempo.

    23 eleitos

    Dos 23 que Aimé Jacquet burilou no Centre Technique National Fernand Sastre (CTNFS), mais conhecido por Clairefontaine, doze tinham origem estrangeira. Havia dois arménios (Djorkaeff e Boghossian), um cabo-verdiano (Vieira), um caribenho (Henry), um natural da Argentina (Trezeguet), um ganês (Desailly), um filho de portugueses (Pires), o génio argelino (Zidane), o rapaz da distante Nova Caledónia (Karembeu)... Juntemos à lista Lama, Thuram, ou ainda o basco Lizarazu e podemos perceber a dimensão do puzzle multinacional que a França apresentou ao Mundo em 1998.

    Quando os que se diziam 100% franceses clamavam contra a seleção estrangeira dos «Zidanes», muitos contra-atacavam perguntado se a França devia jogar só com «Guivarch´s e Leboeuf´s».

    Jacquet manteve a equipa à parte das polémicas, sabendo que para o sucesso tanto precisava da estampa atlética da «gazela» Thuram como de Emanuel Petit, que parecia saído diretamente das linhas do exército do gaulês Vercingetórix que enfrentara Júlio César em Alésia. Barthez, Blanc e Deschamps, eram a «cola» do «onze», mas a França não seria nada sem a espinha dorsal formada por Desailly, Vieira e «Zizou», com os arietes Henry e Trezeguet, prontos para substítuir Dugarry e Guivarc´h.

    Dia de celebração

    A grande manifestação da glória francesa, a vitória sobre o Brasil (3x0) na grande final no Stade de France, em Saint-Denis, decorreu curiosamente bem próximo da Catedral ou Basílica Real, esse centro da alma francesa, altar celebrado onde supostamente repousam todos os Reis de França (com exceção de três) desde Clóvis I, «o Rei dos Francos», que se converteu ao cristianismo (496 EC) e uniu a nação bárbara, instaurando a dinastia Merovíngia, a primeira a reinar na Gália unificada, o embrião da futura França. 

    Laurent Blanc, o presidente Jacques Chirac, Didier Deschamps e Michel Platini, comemorando na tribuna do Stade de France.
    A França vencera com três golos, como três é o número das cores da sua bandeira, ou das palavras de ordem da sua revolução: liberté, égalité, fraternité.

    De Saint-Denis onde Didier Deschamps recebeu a Taça do Mundo das mãos do Presidente Jacques Chirac, até aos Campos Elísios, onde uma multidão de milhões de franceses das mais diversas proveniências, cores e credos, se reuniu para celebrar a vitória, na maior celebração que a «Cidade-Luz» conheceu desde a Libertação de Paris da ocupação alemã a 25 de Agosto de 1944.

    Essa noite de 12 de Julho de 1998, ficou marcada para sempre com as três cores que compõem a tricoleur: azul, branco e vermelho. Dois dias antes de os franceses celebrarem a Tomada da Bastilha, o Arco do Triunfo coberto com a bandeira nacional foi o epicentro de la grande fête. Nesse dia não havia pretos nem brancos, todos tinham três cores; não havia argelinos, portugueses, argentinos, arménios, senegaleses ou gauleses, eram todos franceses, eram todos campeões do Mundo.

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    Estádio
    Stade de France
    Stade de France
    França
    Saint-Denis - Paris
    Lotação81338
    Medidas105x70
    Inauguração1998