Deportivo x AC Milan: O tombo do campeão na Corunha

Reconquistar um título obriga sempre a uma capacidade de superação acima da média. Se estivermos a falar de uma competição europeia, então aí, a tarefa é ainda mais complicada, tendo em conta toda o valor da concorrência. Antes do domínio do Real Madrid nesta década, eram poucos aqueles que, ao mais alto nível, ganhavam duas vezes consecutivas. Uma chegada à final, presenças entre os últimos quatro participantes chegavam a ser habituais, mas sentia-se que defender uma prova como a Champions era um fardo muito duro para carregar às costas. 

O Milan, campeão europeu em 2003, sob as ordens de Ancelotti, experimentou no ano a seguir todas as dificuldades que uma equipa encontra para defender um título de campeão europeu. Um Deportivo absolutamente histórico aproveitou uma noite de apatia geral, onde os nomes e o estatuto não subiram ao relvado do Riazor, para uma das reviravoltas mais improváveis da história recente no desporto-rei. 

Para contar aos netos...

Mas primeiro, a primeira-mão, passe a redundância. Até porque ela serve para valorizar ainda mais aquilo que aconteceu depois e o feito que esta equipa do norte de Espanha alcançou há mais de 15 anos. O Deportivo, na condição de underdog, mostrou-se incapaz de, em San Siro, contrariar o talento e a organização de um adversário que já começava a contar com a versão mais brilhante de Kaká, que tinha em Sheva o melhor (um dos melhores, pelo menos) avançados do planeta e que atrás defendia como poucos. Maldini, Nesta, Cafú...chega para impressionar? 

O Deportivo já era um pequeno fenómeno no futebol espanhol. No virar do século, entre o poderio e o historial de Real e Barça, explodia uma equipa capaz de conquistar todos os títulos domésticos e de, pelo menos, começar a fazer parte do leque habitual daqueles que disputam o melhor futebol do planeta. 

Nestes dias de glória, ainda hoje recordados pelos adeptos fervorosos, nomes como Molina, Manuel Pablo ou Scaloni faziam parte da história. Jorge Andrade também contribuiu nos seus melhores anos, Luque era capaz de deslumbrar e de fornecer, na posição de extremo, muito golo. Pandiani e Tristán davam consequência a esta verdadeira equipa comandada pela mestria e pelo talento de Valerón, um daqueles que mais parecia deslizar do que propriamente correr. 

Em Milão, essa mesma equipa, que fazia as vezes que agora o Atlético faz, de conviver entre duas forças tão poderosas como aglutinadoras em Espanha, passou por muitas dificuldades e parecia mesmo que o favorito Milan ia lançado para as meias. Um triunfo por 4x1 abria perspetivas mais do que otimistas para o gigante italiano. 

Na verdade, poucos ou nenhuns seriam capazes de projetar aquilo que aconteceu num final de tarde de abril, em 2004. Um conjunto de circunstâncias especiais, um dia em que todos os astros se alinharam para que os mais pequenos e menos favoritos pudessem materializar o sonho de uma existência. Só assim se explica que Maldini, uma referência, tenha parecido um central algo desorientado no duelo particular com Pandiani; só assim se explica que Dida tenha falhado uma saída tão fácil à bola como no tento de Valerón; só assim se explica que Cafú, um dos melhores de sempre da posição, ou Nesta, um dos melhores do planeta por esta altura a desempenhar o papel de central, tenham demonstrado total incapacidade para lidar com Luque no lance do terceiro golo. 

O futebol ganhou asas no Riazor, fugindo do controlo de uma potência, recheada de talento e de qualidade em todas as posições. Poucas noites foram tão mágicas como aquela, poucos campos secundários do futebol europeu puderam experimentar aquelas sensações. Quem esteve lá não se esquece. Naquela época em que seria o FC Porto a ser coroado como campeão europeu...