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    Bert Trautmann: O Bom Alemão

    Texto por João Pedro Silveira
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    A história da vida de Bernhard Carl Trautmann é um desafio constante das probabilidades. Um misto entre «As Fantásticas Aventuras do Barão de Münchhausen» e um filme de guerra com Steve McQueen no papel principal.

    Da desolação da Bremen da «Grande Depressão» durante os anos vinte à glória nos estádios de Inglaterra nos anos cinquenta, passando pela Juventude Hitleriana e por uma mítica final da FA Cup, esta é a história do homem que os ingleses conheciam como o «bom alemão». 

    Herói, vilão, desertor, cativo

    Durante a Segunda Guerra Mundial foi um paraquedista da Luftwaffe, esteve preso por mau comportamento, depois de ter sido julgado em tribunal de guerra, mas passou grande parte da pena hospitalizado com uma apendicite. Recuperado, foi lançado na frente oriental, onde acabou por conquistar cinco medalhas, uma das quais, a Cruz de Ferro de primeira classe, por heroísmo e bravura em combate.

    Bert em acção num jogo em Inglaterra.
    Depois de ter fugido a captores russos na frente oriental, mudou-se para França, onde foi um dos raros sobreviventes do bombardeamento aliado de Cleves. Seria capturado pela resistência francesa, mas libertou-se. Com o desembarque aliado na Normândia e a derrota alemã eminente, resolveu desertar e regressar à sua Bremen natal.

    Seria apanhado por dois soldados americanos e quando pensou que ia ser executado pelas costas, começou a correr e fugiu. Após alguns quilómetros em fuga, saltou um muro para acabar cercado por quatro soldados ingleses que lhe apontavam as espingardas, e um deles lhe perguntou: «Olá Fritz (2), apetece-te uma chávena de chá?»

    Dos campos de prisioneiros para o City

    Preso primeiro em Ostend na Bélgica, foi transportado para Inglaterra onde ficou detido num campo provisório em Essex, onde foi interrogado, antes de ser transferido para o campo de prisioneiros de guerra em Marbury Hall, em Cheshire.

    Mais tarde foi transferido para Ashton-in-Makerfield, Lancashire, onde ficou detido até 1948. Seria aí que passou a ser conhecido como Bert, dado que os ingleses tinham dificuldade em pronunciar Bernhard. Foi também em Ashton-in-Makerfield que começou a jogar futebol, primeiro como avançado e depois como guarda-redes, participando em jogos contra equipas locais que visitavam o campo.

    Com o fim dos campos de prisioneiros, Bert recusou a repatriação para a Alemanha, radicando-se em Milnthorpe, trabalhando primeiro numa quinta e depois numa bomba de gasolina. Começou a jogar no St Helens Town, um pleno clube amador da zona de ##Liverpool, onde conheceu e se apaixonou pela filha do secretário, Margaret Friar, com quem se casou mais tarde.

    Acusado e acossado

    Em 1948, as memórias da guerra ainda estavam muito presentes na sociedade inglesa. Havia entre os jogadores do City quem tivesse combatido os nazis no conflito e alguns haviam mesmo desembarcado nas praias da Normandia no Dia D. Ultrapassar a desconfiança dos colegas foi a primeira barreira que Bert teve de vencer. Seguiram-se os adeptos, que não gostavam de ter um kraut (3) no seu clube e muitos dos sócios, com lugar anual, ameaçavam não comparecer em Maine Road.

    Homenagem e tributo a Trautmann no City of Manchester Stadium.
    Também as comunidades judaicas em Inglaterra mobilizavam-se contra a presença de Bert na equipa do City, marcando manifestações para as cidades onde o clube ia jogar. Dos quatro cantos do país chegavam cartas com protestos para o clube de Manchester. Das bancadas surgiam constantes gritos de kraut e nazi. Na estreia, Trautmann fez um belo jogo e acabou por calar a contestação dos adeptos da casa, mas nos jogos fora, o guarda-redes era alvo da ira popular.

    O capitão Eric Westwood, um veterano do desembarque na Normândia, lembrava que no balneário não havia guerra. Trautmann começava a impressionar os adeptos com as suas exibições, mas o ambiente longe de Maine Road era duro, e o alemão não conseguia lidar bem com a pressão, como aconteceu no jogo em que sofreu sete golos em Derby, às mãos do Derby County.

    A sua defesa pública seria feita pelo rabi de Manchester, Alexander Altmann, que tinha fugido das políticas anti-semitas da Alemanha de Hitler e escapado para Inglaterra antes da guerra. Numa declaração pública, Altmann defendeu que «nenhum homem pode ser julgado em nome de um povo inteiro», insistindo que os adeptos de futebol deviam deixa-lo provar que era um grande desportista e desfrutar das suas qualidades.

    O herói

    A maré começou a mudar e o seu estilo destemido entre os postes valeu-lhe uma crescente falange de apoio. Mas a sua popularidade não ficava entre os adeptos do clube. A sua estampa, a figura alta e magra, o cabelo louro e os olhos azuis faziam as delicias das inglesas. 

    A sua ligação pessoal com Adolf Dassler fez com que Trautmann se tornasse no primeiro desportista a equipar com a Adidas em Inglaterra, corria o ano de 1949. Dentro das quatro linhas, as suas defesas conquistavam os adeptos, mas o City arrastava-se pela cauda tabela, acabando despromovido.

    O célebre momento em que Trautmann se lesiona com gravidade na final da Taça de Inglaterra.
    Um ano depois, o City voltou ao primeiro escalão e Trautmann tornou-se nas épocas seguintes um dos melhores guarda-redes do Campeonato. A sua fama chegou ao seu país natal e o Schalke 04 tentou contrata-lo a troco de mi libras. Os dirigentes do City recusaram a proposta defendendo que Bert valia vinte vezes mais.

    Em 1955, o City chegou à final da Taça em Wembley, mas foi uma presa fácil do Newcastle United (3x1). Bert teve de se contentar com uma medalha de finalista, mas prometeu voltar. 

    A final

    Um ano depois cumpriu a promessa chegando a nova final, desta feita contra o Birmingham City. Os citizens tinham acabado de conquistar o quarto lugar na Liga e Trautmann vencera o prémio de Futebolista do Ano, tornando-se não só o primeiro estrangeiro, como também o primeiro guarda-redes a ser distinguido. As expectativas eram boas.

    A equipa estava muito mais confiante que um ano antes e chegou com naturalidade ao 3x1. Aos 75 minutos, Bert saiu aos pés de Peter Murphy e levou acidentalmente uma joelhada no pescoço. A impossibilidade de efectuar substituições obrigou Bert a continuar em campo, se bem que tenha confessado mais tarde que além de se sentir tonto, via tudo meio desfocado nesse último quarto de hora. Conseguiu ainda efectuar mais um par de defesas de relevo, segurando a vitória e sendo o herói da equipa. 

    Ao receber a medalha, o Príncipe Filipe gracejou com o seu estado e o pescoço, Trautmann agradeceu e revelou que não conseguia mexer a cabeça. Essa noite ainda esteve presente num banquete para homenagear os vencedores e foi-se deitar com esperança que a dor passasse durante a noite.

    Trautmann foi o elo de ligação da Mannschaft durante o mundial de 1966 que se realizou em Inglaterra, onde se encontrava radicado depois de ter terminado a carreira.
    Acordou com dores e foi ao hospital, onde o descansaram, falando de uma pequena lesão que desapareceria em pouco tempo. Três dias mais tarde, já em Manchester, visitou o hospital, onde lhe foi diagnosticada uma lesão grave no pescoço. O raio-x era aterrador: Bert tinha deslocado cinco vértebras, a segunda das quais estava partida ao meio e a terceira vértebra estava torta e encostada à segunda, tendo impedido esta de se deslocar ainda mais, o que teria sido fatal para Bert. 

    O guarda-redes ficou uma época sem jogar, regressando aos poucos, para participar na estranha época de 1957-58, ano em que o City terminou com 104 golos marcados e 100 golos sofridos em 42 jogos.

    Até ao fim da sua carreira, em 1964, Bert foi fiel ao seu clube de sempre, ao serviço do qual jogou em 545 ocasiões. Terminada a última época em Maine Road, jogou ainda duas partidas pelo Wellington Town. 

    Penduradas as botas, dedicou-se à carreira de treinador, acabando por conhecer meio mundo, ao serviço de seleções tão distintas como a Birmânia, a Tanzânia, a Libéria e o Paquistão.

    Um homem que chegou a Inglaterra como um soldado inimigo e prisioneiro de guerra, terminou os seus dias como um herói, honrado com a OBE, a Ordem do Império Britânico, por serviços prestados ao país, tornado-se num caso único, ao ter sido agraciado tanto com uma OBE, como com uma Cruz de Ferro, além de ter sido eleito o Futebolista do Ano em Inglaterra, uma distinção que premiou entre outros Stanley Matthews, George Best, Bobby Moore, Bobby Charlton, ou mais recentemente Gareth Bale, Thierry Henry e Cristiano Ronaldo

    Faleceu a 19 de Julho de 2013, em Las Rosas, Espanha, onde se encontrava radicado. Não sobreviveu às complicações causadas por dois ataques cardíacos que sofrera no começo do ano. 

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    (1) - Luftwaffe - Força Aérea Alemã
    (2) - Fritz - Jargão que os ingleses utilizavam para se referir aos soldados alemães na Segunda Guerra Mundial
    (3) - Kraut - Termo depreciativo usado em Inglaterra, durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial para se referir os alemães. O uso da palavra Kraut supostamente deriva de Sauerkraut, um prato à base de couve, muito apreciado na Alemanha. 

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