A história da vida de Bernhard Carl Trautmann é um desafio constante das probabilidades. Um misto entre «As Fantásticas Aventuras do Barão de Münchhausen» e um filme de guerra com Steve McQueen no papel principal.
Da desolação da Bremen da «Grande Depressão» durante os anos vinte à glória nos estádios de Inglaterra nos anos cinquenta, passando pela Juventude Hitleriana e por uma mítica final da FA Cup, esta é a história do homem que os ingleses conheciam como o «bom alemão».
Durante a Segunda Guerra Mundial foi um paraquedista da Luftwaffe, esteve preso por mau comportamento, depois de ter sido julgado em tribunal de guerra, mas passou grande parte da pena hospitalizado com uma apendicite. Recuperado, foi lançado na frente oriental, onde acabou por conquistar cinco medalhas, uma das quais, a Cruz de Ferro de primeira classe, por heroísmo e bravura em combate.
Preso primeiro em Ostend na Bélgica, foi transportado para Inglaterra onde ficou detido num campo provisório em Essex, onde foi interrogado, antes de ser transferido para o campo de prisioneiros de guerra em Marbury Hall, em Cheshire.
Mais tarde foi transferido para Ashton-in-Makerfield, Lancashire, onde ficou detido até 1948. Seria aí que passou a ser conhecido como Bert, dado que os ingleses tinham dificuldade em pronunciar Bernhard. Foi também em Ashton-in-Makerfield que começou a jogar futebol, primeiro como avançado e depois como guarda-redes, participando em jogos contra equipas locais que visitavam o campo.
Com o fim dos campos de prisioneiros, Bert recusou a repatriação para a Alemanha, radicando-se em Milnthorpe, trabalhando primeiro numa quinta e depois numa bomba de gasolina. Começou a jogar no St Helens Town, um pleno clube amador da zona de ##Liverpool, onde conheceu e se apaixonou pela filha do secretário, Margaret Friar, com quem se casou mais tarde.
Em 1948, as memórias da guerra ainda estavam muito presentes na sociedade inglesa. Havia entre os jogadores do City quem tivesse combatido os nazis no conflito e alguns haviam mesmo desembarcado nas praias da Normandia no Dia D. Ultrapassar a desconfiança dos colegas foi a primeira barreira que Bert teve de vencer. Seguiram-se os adeptos, que não gostavam de ter um kraut (3) no seu clube e muitos dos sócios, com lugar anual, ameaçavam não comparecer em Maine Road.
O capitão Eric Westwood, um veterano do desembarque na Normândia, lembrava que no balneário não havia guerra. Trautmann começava a impressionar os adeptos com as suas exibições, mas o ambiente longe de Maine Road era duro, e o alemão não conseguia lidar bem com a pressão, como aconteceu no jogo em que sofreu sete golos em Derby, às mãos do Derby County.
A sua defesa pública seria feita pelo rabi de Manchester, Alexander Altmann, que tinha fugido das políticas anti-semitas da Alemanha de Hitler e escapado para Inglaterra antes da guerra. Numa declaração pública, Altmann defendeu que «nenhum homem pode ser julgado em nome de um povo inteiro», insistindo que os adeptos de futebol deviam deixa-lo provar que era um grande desportista e desfrutar das suas qualidades.
A maré começou a mudar e o seu estilo destemido entre os postes valeu-lhe uma crescente falange de apoio. Mas a sua popularidade não ficava entre os adeptos do clube. A sua estampa, a figura alta e magra, o cabelo louro e os olhos azuis faziam as delicias das inglesas.
A sua ligação pessoal com Adolf Dassler fez com que Trautmann se tornasse no primeiro desportista a equipar com a Adidas em Inglaterra, corria o ano de 1949. Dentro das quatro linhas, as suas defesas conquistavam os adeptos, mas o City arrastava-se pela cauda tabela, acabando despromovido.
Em 1955, o City chegou à final da Taça em Wembley, mas foi uma presa fácil do Newcastle United (3x1). Bert teve de se contentar com uma medalha de finalista, mas prometeu voltar.
Um ano depois cumpriu a promessa chegando a nova final, desta feita contra o Birmingham City. Os citizens tinham acabado de conquistar o quarto lugar na Liga e Trautmann vencera o prémio de Futebolista do Ano, tornando-se não só o primeiro estrangeiro, como também o primeiro guarda-redes a ser distinguido. As expectativas eram boas.
A equipa estava muito mais confiante que um ano antes e chegou com naturalidade ao 3x1. Aos 75 minutos, Bert saiu aos pés de Peter Murphy e levou acidentalmente uma joelhada no pescoço. A impossibilidade de efectuar substituições obrigou Bert a continuar em campo, se bem que tenha confessado mais tarde que além de se sentir tonto, via tudo meio desfocado nesse último quarto de hora. Conseguiu ainda efectuar mais um par de defesas de relevo, segurando a vitória e sendo o herói da equipa.
Ao receber a medalha, o Príncipe Filipe gracejou com o seu estado e o pescoço, Trautmann agradeceu e revelou que não conseguia mexer a cabeça. Essa noite ainda esteve presente num banquete para homenagear os vencedores e foi-se deitar com esperança que a dor passasse durante a noite.
O guarda-redes ficou uma época sem jogar, regressando aos poucos, para participar na estranha época de 1957-58, ano em que o City terminou com 104 golos marcados e 100 golos sofridos em 42 jogos.
Até ao fim da sua carreira, em 1964, Bert foi fiel ao seu clube de sempre, ao serviço do qual jogou em 545 ocasiões. Terminada a última época em Maine Road, jogou ainda duas partidas pelo Wellington Town.
Penduradas as botas, dedicou-se à carreira de treinador, acabando por conhecer meio mundo, ao serviço de seleções tão distintas como a Birmânia, a Tanzânia, a Libéria e o Paquistão.
Um homem que chegou a Inglaterra como um soldado inimigo e prisioneiro de guerra, terminou os seus dias como um herói, honrado com a OBE, a Ordem do Império Britânico, por serviços prestados ao país, tornado-se num caso único, ao ter sido agraciado tanto com uma OBE, como com uma Cruz de Ferro, além de ter sido eleito o Futebolista do Ano em Inglaterra, uma distinção que premiou entre outros Stanley Matthews, George Best, Bobby Moore, Bobby Charlton, ou mais recentemente Gareth Bale, Thierry Henry e Cristiano Ronaldo.
Faleceu a 19 de Julho de 2013, em Las Rosas, Espanha, onde se encontrava radicado. Não sobreviveu às complicações causadas por dois ataques cardíacos que sofrera no começo do ano.
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(1) - Luftwaffe - Força Aérea Alemã
(2) - Fritz - Jargão que os ingleses utilizavam para se referir aos soldados alemães na Segunda Guerra Mundial.
(3) - Kraut - Termo depreciativo usado em Inglaterra, durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial para se referir os alemães. O uso da palavra Kraut supostamente deriva de Sauerkraut, um prato à base de couve, muito apreciado na Alemanha.