Não foi propriamente uma novidade a chamada de Nuno Gomes ao Euro 2000, mas não era, de todo, a primeira opção para o ataque. Aliás, até se podia dizer que era a última. Sá Pinto tinha sido o habitual titular na qualificação, Pauleta seguia-se na hierarquia e só depois vinha o então avançado do Benfica. Só que, por um conjunto de fatores (o açoriano cumpria um jogo de castigo, Sá Pinto não estava nas melhores condições físicas), Humberto Coelho usou-o como autêntico coelho saído da cartola no arranque daquela fase final, contra a poderosa Inglaterra. Mais de quatro anos depois da estreia de quinas ao peito, Nuno Gomes ainda nem sequer tinha qualquer golo para a amostra... mas seria ali, ali mesmo, contra os ingleses, a consumar uma reviravolta fantástica, num dos jogos mais marcantes do futebol português. E então a vida do avançado mudou...
Nuno Gomes foi dos mais importantes avançados do futebol português no século XXI. Na seleção, apesar de muitas vezes parecer estar na sombra de outras opções, como Pauleta no início ou Hélder Postiga no fim, teve vários momentos marcantes, nomeadamente nos Europeus (é dos poucos jogadores que se podem gabar de terem marcado em três fases finais. Nos clubes, e pese embora a aparição no Boavista, é ao Benfica que mais fica ligado, mesmo com uma passagem por Itália pelo meio. Em termos globais, ficam duas amarguras claras: nunca ter sido melhor marcador do campeonato e não ter conseguido chegar às finais europeias. Mesmo sem coroa, nos golos conseguiu ser de realeza.
Foi pouco depois da revolução de Abril que, no verão de 1976, nasceu Nuno Miguel Soares Pereira Ribeiro. O "Gomes" viria mais tarde e seria ajustado ao Nuno em referência ao Bibota Fernando Gomes, seu ídolo, tal como Van Basten. Tal como o avançado do FC Porto, também o jovem de Amarante demonstrava uma tendência notável para fazer golos, pelo que foi ali, no interior do distrito do Porto, que se começou a apreciar essa tendência. Mesmo que, numa infância bem feliz, tenha também sido interessado praticante de canoagem, vários anos e várias medalhas, e arrastado (por um amigo) praticante de andebol, uma época apenas.
À medida que crescia, os golos entravam, numa relação muito estreita entre o avançado e a baliza. Sim, neste caso não há registo de algum momento de mudança em que Nuno tenha passado para a frente. Toda a vida foi avançado. E, apesar de ter sido campeão nacional em juniores vestido de xadrez, a seleção era onde mais mostrava serviço, como na conquista do Europeu de sub-18 em 1994 em Espanha, em que marcou em três dos quatro jogos. Os pais também lá estavam, tal como Dani, com quem começava uma forte parceria.
No ano seguinte, já depois da época de estreia nos seniores do Boavista - marcou logo no primeiro jogo, contra os finlandeses do MyPa, lançado por Manuel José, e somou 23 jogos - voltaria a ter um fim de época mediático. Com o mesmo grupo do Euro de sub-18, viajou para o Qatar e disputou o Mundial sub-20, em que Portugal acabou com o bronze depois de uma fantástica reviravolta contra a Espanha (3x2), jogo em que Nuno (ainda) Ribeiro marcou dois dos quatro golos que fez na competição.
Os êxitos de verão pouco lhe permitiam fazer as pré-épocas, mas nem por isso o avançado deixava de contar para Manuel José. O início de 1995/96 foi mais goleador e a primeira metade da época foi bem conseguida, tanto que em janeiro até se pôde estrear pela seleção principal (António Oliveira meteu-o num amigável contra a França), ao contrário da restante, em que saiu quase sempre do banco. Porém, no verão, havia mais uma nova competição e Nuno Gomes seguiu com Dani como os mais jovens da tribulação que rumou a Atlanta para os Jogos Olímpicos. Não jogou sempre, até porque Paulo Alves foi um dos mais velhos que se juntou ao grupo, mas registou um golo importante contra a Argentina.
A vida de Nuno era um rodopio. Aos 20 anos, já era internacional e tinha um vasto repertório internacional. Afirmar-se e confirmar-se na Primeira Divisão era o passo que faltava.
O normal decurso do trajeto encontrou na época seguinte a fase perfeita para a afirmação. Já não era um menino e Mário Reis, o novo treinador, apostou firmemente nele, muitas vezes ao lado de Jimmy Floyd Hasselbaink, outras vezes à frente do goleador holandês. No fim da época seriam ambos vendidos.
Aliás, no caso do português, até foi antes que tudo ficou alinhavado. No começo de abril, numa ida a Lisboa para defrontar o Estoril para a Taça, reuniu-se com João Loureiro (presidente do Boavista) em casa de Manuel Damásio, então líder do Benfica, e aí ficou fechada a sua transferência para a Luz, onde estava Manuel José, seu ex-treinador, por 600 mil contos (3M€). Não foi isso, contudo, motivo para não meter o pé com a mesma vontade do costume quando, em junho, as duas equipas se juntaram no Jamor. Ou seja, foi com um golo seu e um penálti ganho a ajudar que o Boavista levantou a Taça, num triunfo por 3x2 que foi uma despedida em beleza para o jogador.
Dentro do mau, Nuno Gomes era do pouco bom que havia, como Preud'Homme, João Vieira Pinto ou Poborsky. Todos eles dali sairiam sem mais títulos e Nuno Gomes foi o único a render verdadeiramente. Porque houve a tal montra, com a tal mudança...
A passagem no Euro 2000, que descrevemos no começo deste artigo, foi o cenário ideal para Nuno Gomes mostrar ao mais alto nível a veia goleadora. Atenção: aqueles tinham sido os melhores anos do avançado ao nível da eficácia (fez 76 golos em três épocas na Luz, na segunda passagem faria 90 golos em nove temporadas), sempre acima da barreira dos 20. Só que o Benfica estava num período de clara amargura, tanto que, quando o Europeu chegou, João Vieira Pinto chegou aí como jogador livre, depois de ter sido dispensado por Heynckes e Vale e Azevedo. Nuno não pensava em sair, só que aquele verão trouxe uma procura enorme pelos seus serviços.
Não foi só o golo à Inglaterra, o seu primeiro pela seleção. Quando chegou a fase a eliminar, o avançado foi letal outra vez, com os dois golos da vitória contra a Turquia (duas assistências de génio de Figo) e com o golo que deu vantagem na meia-final contra a França. Numa equipa onde a famosa Geração de Ouro (Baía, Couto, JVP, Figo, Rui Costa) estava no auge, Nuno Gomes surgia como um complemento perfeito. Apesar da mancha no final do jogo [ver foto].
A Fiorentina viu nele o «sucessor de Batistuta» (quiseram, inclusivamente, que ele ficasse com a camisola 9, e foi o próprio a insistir em querer ser o 21), conforme disseram os responsáveis do clube quando as negociações terminaram, num verão em que o mítico avançado argentino se transferira para a Roma. Por isso, pagou ao Benfica os três milhões de contos (15M€) que constavam na sua cláusula de rescisão e que fizeram dele a maior venda das águias.
«Tinha espírito para emigrante, só que as saudades foram mais fortes. Quando saí do Boavista para o Benfica foi na altura em que passou a ser mais habitual os jogadores saírem para o estrangeiro, por isso aquilo foi visto pelos outros, como eu, como algo apelativo. Fiquei sempre com esse desejo de jogar no estrangeiro, embora sem estar obcecado com isso. Depois do Euro 2000, bateram à porta muitos clubes e achei que essa devia ser a altura. Escolhi a Fiorentina porque era o clube onde estava o Rui Costa, o que me ia ajudar muito na adaptação», contou, muito mais tarde, no programa Conversas à Benfica.
O reflexo da má época de 2001/2002, em que um problema no tornozelo o afetou e fez com que voltasse mais cedo para Portugal para o tentar debelar, viu-se nos 23 minutos que somou no Mundial. Chegou a marcar à China no particular antes da competição, mas depois pouco António Oliveira o usou, também porque Nuno tinha perdido o comboio da titularidade ao ter sido suspenso oito meses por causa do atribulado fim do tal jogo contra a França.
O reflexo de ser um jogador livre viu-se... no regresso ao Benfica. O processo foi demorado, até pelo braço de ferro com a Fiorentina em termos legais, mas o jogador conseguiu aquilo que era o seu desejo. Aos 26 anos, um reforço de peso para um clube que tinha mudado de direção.
«Só tinha olhos para o Benfica na altura. Disse aos responsáveis do Benfica que, se acontecesse alguma coisa na Fiorentina, eles seriam os primeiros com quem ia falar», revelou na mesma entrevista.
Os dois primeiros anos desde o regresso não foram fáceis, por causa da concorrência do FC Porto de Mourinho, mas já foram bem melhores que os anteriores e, além de dois segundos lugares, os encarnados venceriam a Taça de Portugal no Jamor aos dragões, dias antes da final de Gelsenkirchen, naquele que seria, ao fim de cinco épocas na Luz, o primeiro troféu do avançado. Pelo meio, a morte de Fehér, o «pior momento» da carreira de Nuno. Também pelo meio, os dois golos que inauguraram o novo Estádio da Luz, precisamente no regresso após a tal paragem por lesão. No fim, a chamada para o Euro 2004.
«Durante o Europeu planeei as férias com a minha mulher e estávamos sempre a mudar de destino até que chegámos a esse consenso de ir para a Grécia. Naquela altura não sonhava era em ir à final com a Grécia e, principalmente, em perdê-la. Depois do jogo, cheguei a casa e já passava da meia-noite, portanto já era o meu dia de aniversário, e tinha uma festa preparada com a minha família e vários amigos. Foi a partir daí que se começou a tentar esquecer o jogo, mas era ainda muito a quente. Foi um grande balde de água fria termos perdido essa final. Passados dois dias vou para a Grécia e, não sei se foi no primeiro dia, se no dia a seguir, estava na praia e começo a ver chegar uma cara conhecida. Era o Fyssas, que jogava comigo no Benfica. Ele olhou para mim e disse-me: “Vamos passar aqui uma semana”. E eu: “Mas quem?” E ele: “O dono do hotel ofereceu, como um prémio, uma semana a todos os jogadores da selecção”. Eu olhei para ele: “Mas todos?”. De repente, começo a ver a praia a ser invadida por jogadores gregos e tive de levar com eles ali uma semana. Felizmente, o hotel tinha duas zonas de praia e eu ia sempre para onde eles não estivessem, ou então ia visitar a ilha para não estar muito tempo com eles. À noite ficava a jantar pelo hotel e às vezes havia uma festa mesmo dedicada aos jogadores da selecção. E houve uma vez ou outra em que os jogadores estavam todos lá a jantar e a ouvir música, começaram a dançar e tentavam, assim meio na brincadeira, vir buscar-me à mesa para ir dançar com eles. E eu: “Bem já estão a ultrapassar os limites! Isso não. Estou aqui, mas não vamos confundir as coisas”. [risos]», contou, numa entrevista à revista Playboy.
A glória voltava a ser apenas parcial, tal como depois no Mundial, onde integrou a comitiva de Scolari, ainda que de forma limitada, razão para só ter entrado em dois jogos, mas conseguindo marcar à Alemanha. Muitos questionaram se não teria sido subaproveitado pelo selecionador, até pela capacidade goleadora em fases finais anteriores.
Nessa altura, era também já o capitão do Benfica, depois da saída de Simão em 2007, e com o seu amigo Rui Costa também de volta a casa. Só que o avançar da idade e as pequenas lesões foram fazendo com que as suas prestações, apesar de imprescindível sempre que estava apto, fossem menos vistosas.
Com Quique, perdeu o estatuto de intocável, numa altura em que aparecia Cardozo. Com Jorge Jesus, as aparições foram ainda menos. No fim de 2009/10, pôde festejar novamente o título de campeão nacional e, nesses dois anos, ganhou duas taças da liga, mas a relevância foi sendo progressivamente menor, tanto que Carlos Queiroz não o chamou para o Mundial 2010, uma das grandes mágoas com que ficou. Um período que, ainda por cima, coincidiu com o falecimento do pai Joaquim, vítima de doença oncológica, um episódio que muito o abalou.
Ainda ficou mais uma época no Benfica, a sua 12.ª, e com um score muito interessante de cinco golos em oito jogos, todos eles vindo do banco. A média foi impressionante, pois, em média, fazia golos a cada 20 minutos, o que fazia com que os adeptos reclamassem a Jorge Jesus maior preponderância para o 21, que era cada vez mais um elemento útil de balneário, só que não era aquilo que Nuno queria. O contrato acabou e o avançado decidiu sair, rumo a Braga e a um clube que tinha acabado de ir à final da Liga Europa.
O objetivo na cabeça de Nuno era claro: ir ao Euro 2012. Paulo Bento chamou-o novamente à seleção, em agosto de 2011.
«Este era um dos objetivos que tinha e que revelei quando decidi vir para o SCBraga. A minha carreira não terminou. Sempre me senti bem, sinto-me bem, capaz de continuar a oferecer muito trabalho e dedicação. Ao vir para o Braga, estava implícito continuar a alimentar este sonho e esta certeza de poder ser ainda selecionável», disse, na altura.
Ainda emigrou uma segunda vez, para terminar no futebol inglês. O Blackburn fez-lhe o convite, o avançado aceitou e, ao fim de seis jornadas no Championship, já tinha quatro golos. Foi o último registo de Nuno, o homem-golos, na casa do futebol.
«Nos jogos fora tínhamos duas/três mil pessoas a acompanharem o Blackburn Rovers, no Championship, e o clube atravessava problemas de relação entre adeptos e os donos do clube. Tinha acabado de ser comprado há pouco tempo e a relação não era a melhor, mas, mesmo assim, perdemos uma ou outra vez em casa e saíamos aplaudidos. Houve uma vez, perdemos 3 ou 4-0 em casa, fui para o carro depois do jogo e ninguém me tinha riscado o carro, furado os pneus, nem sequer um adepto à minha espera ou à espera de alguém da equipa para mandar umas bocas. [risos] Bateram palmas no final e depois foram à vida deles e passados três dias estavam lá outra vez a encher o estádio. Isso para o espectáculo em si, depois também para a confiança da equipa é de louvar. Temos muito a aprender com eles».