Henrik Larsson é nome de lenda. Em Glasgow, pelo menos, é. Talvez não com a magnitude de outros que partilharam a sua posição, isto a nível planetário, mas a verdade é que se trata de um avançado dos mais mortíferos que há memória. Daqueles excêntricos cabelos ao penteado, ou falta dele, de uma cabeça tudo menos oca. O sueco de raízes cabo-verdianas namorou o golo ao longo de 25 anos de carreira. Sim, aquela regularidade a um nível competitivo superior não foi uma realidade. Torna-se irrealista não pensar nesse facto, mas falar de Larsson apenas como um goleador nato de campeonatos secundários é inconsequente - os factos não nos deixam mentir - isto porque, se a memória não lhe falhar, foi com duas assistências que conquistou o troféu mais importante de todos no que a clubes diz respeito.
O seu destino já se havia cruzado com uma final europeia frente ao FC Porto, no derradeiro duelo pela Taça UEFA 2002/03. Larsson marcou dois, mas perdeu. O mesmo não aconteceria quando tivesse nova oportunidade e logo num palco ainda maior, para desespero dos adeptos gunners. O Barcelona de Frank Rijkaard protagonizou uma das reviravoltas mais impactantes da história da competição, em pleno Stade de France. Depois de Sol Campbell ter alimentado o sonho, um dos carrascos, o que orquestrou a derrota mais dolorosa de sempre do Arsenal, foi um jogador sueco, saltado do banco a meia hora do apito final. No auge dos seus 34 anos, Larsson entregou o golo de bandeja a dois companheiros, distinguindo-se não pelo que fazia melhor, mas pelas assistências que deram mais uma Liga dos Campeões aos catalães.
O ídolo de Ronaldinho ficava definitivamente no mapa, nas memórias de muitos e nos pesadelos de outros, tudo isto às portas de se tornar veterano. Antes, já muitos o veneravam e outros tantos tinham sofrido aos seus pés. Uma história de golo já há muito tinha conhecido o seu início.
Antes do sucesso, tempos conturbados e até peculiares moldaram a vida Henrik Larsson. Nascido a 20 de setembro de 1971, o filho de Francisco Silva e Eva Larsson efetuou uma caminhada que nunca se revelou fácil. Desde os insultos raciais até ao próprio futuro dentro dos relvados: o destino como o conheceu e como todos nos lembramos podia ter ditado um final diferente, uma história que nem sequer mereceria o devido destaque.
Henrik Larsson 17 títulos oficiais |
Por aí se percebeu que os primeiros passos a nível competitivo eram uma questão de tempo. O Horaborgs BK recebeu o jovem com apenas seis anos, que por lá permaneceu até aos 21 anos. Antes, aos 12, Larsson lidou com a separação dos seus pais, que apesar de tudo, nunca estiveram casados. O apelido pelo qual é conhecido deveu-se a uma estratégia de melhor integração naquela sociedade, pensada por ambos, no entanto, a discriminação racial foi um tema que teve de enfrentar na sua adolescência.
No domínio futebolístico, havia qualidade, no entanto, a afirmação esteve muito perto de não acontecer. Com 21 anos, Larsson atuava no clube que o recebeu bastante jovem... e carregava vegetais para camiões. Nessa altura, viria a assinar pelo clube do coração, dando o clique fulcral para aquilo que conseguiu conquistar em 25 anos de carreira, mas, antes disso, o seu potencial parecia desacreditado, inclusive pelo Benfica.
Três anos antes, com apenas 18, o jovem sueco, que ainda assim dava nas vistas, teve uma oportunidade de ouro para se juntar ao Benfica de Sven-Göran Eriksson. De regresso aos encarnados, o técnico deu uma chance à jovem pérola, mas o caminho de ambos não foi compatível. Larsson não ficou, continuou o seu caminho pelo futebol amador, evoluiu e lá conseguiu subir ao patamar mais alto do futebol sueco, realizando duas épocas a um nível considerável pelo Helsingborgs IF. Marcou que se fartou, a tal fome que mostrava em criança era mais do que saciada. O interesse externo acabou por surgir e teve efeitos práticos em 1993: a primeira oportunidade fora de portas, e logo num histórico holandês. Foi também nesse período, depois de muitas dificuldades, que o ídolo de Ronaldinho tornou-se efetivamente... o ídolo de Ronaldinho.
«Desistir nunca foi verdadeiramente uma opção. Foram tempos duros, eu era sempre pequeno a comparar com os outros rapazes, mas eu gostava demais de futebol para desistir. Muitas pessoas desistem, porque lhe surgem muitos obstáculos, mas tem de se ser persistente para se conseguir o sucesso», admitiu, numa entrevista à FourFourTwo, em 2017.
O primeiro vislumbre deixou a figura de Larsson, atacante que se inspirou desde sempre em Pelé, na cabeça de outro ícone do futebol brasileiro: Ronaldinho. Ambos conviveram em Barcelona e a relação não podia ser melhor. O astro brasileiro referia-se ao colega de equipa como «ídolo», e se pensa que era tudo uma brincadeira, não era. O brasileiro revelou que o Mundial de 1994 teve a sua quota parte de importância nas suas palavras.
«Na verdade, ele era o meu ídolo muitos antes de Barcelona. Lembro-me dele a jogar pela Suécia na Copa do Mundo de 1994. Henrik ensinou-me muito sobre futebol e aprendi ainda mais com ele como pessoa. Fiquei decepcionado por ele ter ido para a Suécia porque eu adoraria ter jogado com ele mais tempo», afirmou, mais tarde, o brasileiro.Era fácil reparar em Larsson. Não só pelos seus dreadlocks, imensamente ligados a uma das suas referências: Bob Marley. A imagem atraía a atenção de qualquer um. A qualidade, a velocidade, o oportunismo ou sentido posicional faziam o resto. Ainda que existissem as normais dúvidas sobre um futuro grandioso, era linear a ideia que havia potencial para a construção de uma grande carreira. O Feyenoord acreditou nisso mesmo. Parecia ser um pontapé nos contratempos do início de carreira, contudo, a passagem por terras holandesas não foi brilhante. Ainda que com golos, a explosão que se esperava do avançado não se sucedeu, sobretudo pela instabilidade no comando técnico do clube e pelas várias posições que ia percorrendo. Larsson despediu-se em 1997, com duas Taças Holandesas. Seguiu-se o Celtic, ou melhor dizendo, a explosão brutal, um verdadeiro festival de golos... e línguas de fora.
«Acabou por acontecer. Vi uma foto depois de um jogo, quando o tinha feito e pensei: 'Porque não ficar com ela?' Mas comecei a receber cartas de pais, chateados porque os seus filhos estavam a correr com a língua para fora. Não queria ser mais incomodado com essas cartas, então parei», contou, Larsson, relativamente à famosa celebração com a língua.
Comecemos então pelo início da cordilheira de acontecimentos que o tornaram lenda do lado verde... e inimigo do lado azul. Logo na primeira época, e talvez apesar de ter sido a menos produtiva, onde teve menos importância, Larsson fez parte de um êxito que considerou, posteriormente, um dos melhores da sua carreira - a conquista do 37º campeonato do clube - e, ao mesmo tempo, a machadada final num ciclo que vinha a coroar o Rangers consecutivamente. Seria o 10º campeonato seguido para o eterno rival, o que significava quebrar o recorde estabelecido pela sua equipa, entre a década 60 e 70.
Os três primeiros anos no Celtic marcaram uma subida de nível gradual, mas ainda houve espaço para crescer mais depois da viragem de século. Nessa fase preambular, apenas na primeira época os celts foram coroados como campeões daquele país, juntando ainda duas taças escocesas. Larsson era utilizado como extremo nos primórdios da sua estadia, mas mais tarde acabou por se fixar no centro. A promessa rapidamente passou a confirmação na segunda temporada pelo clube. Os números, esses, não deixam mentir.
«Muitas pessoas fizeram os possíveis para que eu voltasse ainda melhor: Bill Leach, o cirurgião; os fisioterapeutas Brian Scott e Kenny McMillan; Graham Quinn, o massagista, e Jim Hendry, o instrutor físico. De repente, lutei pelas coisas mais simples da vida, que se tomam como garantidas, como ir tomar banho. Eu acho que alguém que não tenha estado nesta situação, perceba como é. Estas coisas fizeram-me querer lutar ainda mais para voltar a jogar futebol e dar tudo o que tinha».
A 21 de outubro de 1999, num desafio a contar para a Taça UEFA, frente ao Lyon, Larsson partiu a perna num lance com Serge Blanc. Inicialmente pensou-se que poderia até ter de pendurar as chuteiras forçosamente, mas a lesão não correspondeu ao prognóstico inicial. O avançado sueco foi, naturalmente, uma baixa de peso no decorrer da temporada, mas regressou ainda no final da mesma, também a tempo de representar a Suécia no Euro 2000, onde marcou um golo em três jogos. Contudo, a preocupação em torno do seu estado era geral. Multiplicavam-se as questões sobre a sua condição física, se voltaria a ser o mesmo. A resposta não podia ter sido mais categórica...
Melhor do que nunca. Larsson manteve o nível nas duas temporadas seguintes. Juntou mais dois títulos e foi por um triz que não conquistou um troféu europeu, ou será melhor dizer por um Dragão predestinado? Na final da Taça UEFA de Sevilha, em 2003, o ponta-de-lança complicou e muito a tarefa dos pupilos de Mourinho, que conseguiram bater o colosso escocês apenas no prolongamento, com um tento de Derlei. Por falar em tentos, foi também o sueco que apontou o decisivo, o que eliminou o Boavista nas meias-finais da competição. Obviamente que na final molhou a sopa, apontando dois cabeceamentos fulgurantes frente a Vítor Baía. Apesar da derrota, o avançado olha para o momento como o mais importante da sua carreira. Não dava para passar despercebido, sobretudo depois de várias prestações, parecia tratar-se de um verdadeiro diabo à solta, e aquele jogo não fugiu à regra. Os medos das consequências da lesão grave davam lugar a uma certeza quanto à forma estonteante em que se encontrava.
«Tínhamos o FC Porto na mão - eu tinha marcado dois -, mas ainda assim não conseguimos vencer. Foi muito difícil de suportar. Ganhar um troféu europeu com o Celtic significaria muito para nós e para os nossos adeptos. Haviam tantas pessoas que viajaram sem ingresso - elas só queriam estar em Sevilha para nos ver ganhar, mas não conseguimos. Eu ainda fico arrepiado quando falo sobre isso. Essa equipa do FC Porto venceu a Liga dos Campeões. Isso é prova de quão boa foi a nossa equipa naquele ano», proferiu, em mais um excerto da grande entrevista que deu à FourFourTwo.O percurso pelo emblema de Glasgow chegou ao fim em 2004. Quatro temporadas consecutivas a marcar mais de 35 golos chamaram à atenção do Barcelona. Larsson, considerado como o melhor jogador estrangeiro do Celtic de todos os tempos, despediu-se como uma lenda, com um legado invejável, com o estatuto de divindade céltica. 218 golos em 285 partidas falam por si. A Escócia tornou-se demasiado pequena para o atacante de 32 anos e Camp Nou era o novo destino.
A estreia pela seleção sueca, em 1993, já lá ia bem longínqua quando Larsson apareceu em grande incidência no Coreia/Japão 2002 e no Portugal 2004. Tanto no Mundial por terras asiáticas como no Europeu em solo luso, o ponta-de-lança sueco marcou três golos em cada competição. A Suécia acabaria por cair sempre na primeira eliminatória após a fase de grupos, mas o avançado não passava ao lado. Larsson, a viver uma lua de mel infindável em Glasgow, marcava em tudo quanto era sítio, fosse onde fosse. Ficava cada vez mais difícil desvalorizar os feitos e a qualidade que o jogador imprimia.
A nível de clubes, Larsson chegou a Barcelona em 2004. A veia goleadora era por demais evidente, até porque o sueco fazia-se ouvir em competições de maior nomeada em relação ao campeonato escocês. Apesar dessa regularidade, isto na relação com o golo nas provas europeias e por seleções, teoricamente mais complicadas, não se sabia muito bem o que esperar do ponta-de-lança que chegou a custo zero à equipa de Frank Rijkaard.
O Barcelona foi a plataforma perfeita para se visionar o sentido lato de oportunismo mais do que enraizado neste jogador. Os golos não apareceram em abundância, sobretudo na primeira época, lá isso é verdade. O motivo? Larsson sofreu uma lesão no ligamento cruzado anterior, a segunda lesão grave que lhe atormentou a carreira. No entanto, o comboio ainda não tinha partido. A segunda e última temporada seria mais proveitosa em todos os aspetos. Claro que Larsson já não se encontrava na plenitude das suas capacidades. Era como se tivesse chegado uma mão cheia de anos atrasado, ainda assim, a regularidade apareceu no fim. A coexistir com Eto´o ou Giuly, realizou 42 jogos e uma despedida, o tal derradeiro jogo para nunca mais cair no esquecimento.Larsson viu o seu nome inscrito nas duas Ligas Espanholas e uma Supertaça conquistadas pelos blaugrana naquele par de anos. Apontou 19 golos no total, assim como as tais duas assistências que deram ao Barcelona a sua segunda Liga dos Campeões. O sueco fez parte da equipa que deu uma machadada final na seca de títulos que já perdurava desde 1999. Não só por aí, mas também pelas capacidades que mostrava em campo, o balanço das suas prestações com a camisola do Barcelona foi positivo e trouxeram-lhe ainda mais visibilidade, a que sempre mereceu.
Com 35 anos, não se sabia bem o que esperar do futuro, isto até Larsson ter tomado uma decisão. Da rejeição em passar mais tempo no banco até à necessidade de acompanhar de perto o crescimentos do seus filhos, quis voltar a casa, 13 anos depois.
O Helsingborgs IF recebeu novamente Larsson. No seu clube do coração, o avançado fez lembrar os tempos de jovem e voltou com muito golo em si. Ainda na primeira época, e depois de se apresentar a grande nível com uma idade considerável, o Manchester United aproveitou a pausa de inverno no campeonato daquele país e foi buscar o avançado... que atuou pelos red devils por apenas três meses.
«É o único arrependimento que tenho da minha carreira. Devia ter ficado, pois isso significaria que iria receber a medalha de vencedor da Premier League. Mas tinha contrato com Helsingborgs e sinto que quando assinas um contrato, tens de o cumprir. Tudo foi profissional no United. Quando tive que assistir ao batismo dos filhos do meu irmão, o clube pediu um avião para me levar até lá depois de um jogo. O United realmente cuida de todos os seus jogadores», admitiu.
Num nível manifestamente mais baixo, Larsson voltou a calçar as botas para dar uns «toques». Pelo Raa IF e pelo clube que o viu crescer, o Hogaborgs BK, o avançado ainda deu o ar da sua graça nas divisões inferiores daquele país, atuando ao lado do seu filho Jordan. A paixão pelo jogo, a inteligência, a vontade em aprender faziam prever a vida ligada ao futebol depois de pendurar as chuteiras. E assim aconteceu. Henrik Larsson já deu os primeiros passos como técnico no seu país, e a verdade é que se conseguir imprimir aquilo que conseguiu dentro das quatro linhas, temos um caso sério em mãos.
Enquanto jogador, será sempre lembrado pelo seu instinto matador, capacidade de se desmarcar e inteligência na maneira como se movia e segurava a bola. A qualidade nunca poderá estar em cima da mesa quando se ouve o nome deste atacante, no entanto, a sensação agridoce sobre a sua carreira é legítima. 474 golos é uma marca respeitável, impossível de questionar até. Seja como for, os feitos num nível competitivo superior poderiam ter sido ainda maiores para este craque. Eis Henrik Larsson, um dos avançados mais eficientes que o desporto-rei pôde testemunhar.