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História
Cultura do Futebol

Quando o clube do Papa visitou Portugal

Texto por João Pedro Silveira com António Ferreira Dias
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No tempo em que não havia diretos televisivos, nem viagens de poucas horas para percorrer a distância que separa Lisboa do Porto, houve uma digressão que marcou uma era no desporto rei e uma memória no futebol de Portugal, Espanha e Argentina.

Essa viagem teve lugar no fim de 1946, por Espanha e Portugal, tendo o histórico San Lorenzo de Almagro, clube do coração do Papa Francisco, como protagonista. Os argentinos percorreram a Península Ibérica, deixando uma marca tal em quem presenciou ao vivo esses jogos inesquecíveis que, ainda hoje, há quem possa jurar que craques como Rinaldo Martino, René Pontoni e Armando Farro não deixavam nada a desejar a Lionel Messi, Cristiano Ronaldo ou Neymar.

Um marco histórico

Há um antes e um depois da visita do San Lorenzo da Portugal e Espanha, tal foi o impacto da visita dos mágicos argentinos entre os apaixonados do futebol nacional. Essa visita decorreu numa época em que os contactos internacionais eram raros e espaçados.

Sua Santidade recebe dos jovens católicos um cachecol do San Lorenzo, o clube do seu coração. Momento registado durante as Jornadas Mundiais da Juventude, no Rio de Janeiro, julho de 2013.
O mundo recuperava ainda do fim da II Guerra Mundial e a visita da esquadra argentina à Península Ibérica foi acompanhada com grande entusiasmo desde o momento em que a comitiva sul-americana pisou solo europeu.

Durante quase dois meses, entre as vésperas do Natal de 1946 e o começo de fevereiro de 1947, a tour do San Lorenzo visitou oito cidades dos dois países, espantando tudo e todos com a sua mestria e a arte dos seus jogadores, especialmente em Portugal, onde os argentinos humilharam o FC Porto e uma Seleção lisboeta, formada por jogadores de BenficaSporting e Belenenses.

Mas não foi só em Espanha e Portugal que a visita do San Lorenzo de Almagro deixou marcas. Os anos passam, e em Boedo (1), ainda todos se lembram da famosa Gira por España y Portugal, reconhecidamente um dos grandes momentos da história do clube.

O clube do Papa

Jorge Mario Bergoglio, nome de batismo do Papa Franciso, era então um menino, que além dos estudos e de uma paixão pelas Milongas, onde ia ver dançar e ouvir o seu adorado tango, tinha um profundo amor pelo futebol e pelo seu San Lorenzo de Almagro, um dos cinco grandes clubes argentinos.

O Viejo Gasómetro, então conhecido apenas por Gasómetro, era a casa do Club Atlético San Lorenzo de Almagro. Localizado em Boedo, era ponto de romaria obrigatória para todos os cuervos.
Quando completou 10 anos, a 17 de dezembro de 1946, o tema de conversa no bairro das Flores, barrio porteño (2) onde nasceu e cresceu, era a tourné ibérica que o grande San Lorenzo de Almagro ia começar dias depois. O verão estava quase a começar no hemisfério sul, os rapazes jogavam futebol pelas ruas, em Boedo e Flores não se falava de outra coisa. Todos queriam despedir-se dos campeões que iam partir para a Europa com vontade de mostrar aos europeus toda a valia do futebol argentino. O pequeno Jorge era um dos muitos que orgulhosamente aguardava a viagem da sua equipa, um fã declarado daqueles heróis que um dia sonhava poder imitar.

 
 
Salimos de Buenos Aires en un DC4 de IBERIA rumbo a España, haciendo escala en Canarias, para llegar al día siguiente a Madrid
Pontapé de saída na Gira
 
A comitiva saiu de Buenos Aires a bordo de um DC4 da Ibéria, rumo a Madrid, fazendo escala nas Canárias, como era costume nesses tempos. Chegando à capital espanhola em vésperas de Natal, quando os termómetros batiam recordes negativos em Espanha. Apesar do frio, a reacção dos espanhóis foi quente e os craques argentinos sentiram-se em casa desde o primeiro minuto...

Imprensa argentina destaca a equipa do San Lorenzo de Almagro, campeão argentino de 1946.
Dentro do campo, tudo começou a 23 de dezembro de 1946 quando o San Lorenzo de Almagro enfrentou o Atlético Aviación (3), num Estádio Metropolitano (Madrid), então o palco de cerimónias da capital espanhola, lotado. A superioridade dos azulgranas foi tão vincada que o único golo do colchoneros foi festejado como se de uma vitória se tratasse. Os comentários da época relatam que o San Lorenzo «joga sem pensar nem um instante, com brilho individual, ânimo e músculos disciplinados de uma maneira perfeita para uma entrega total», numa clara alusão à superior forma física que os sul-americanos demonstraram na partida. Os quatro golos dos cuervos deixaram os adeptos madrilenos rendidos ao «onze» dos santos

Capa do El Gráfico, destacando René Pontoni e Rinaldo Martino com a camisola alviceleste da seleção argentina.
Na manhã seguinte, pôde ler-se na imprensa madrilena: «é uma classe, um estilo de futebol harmonioso e compacto, cada peça funciona matematicamente e no momento oportuno», ou ainda que os cuervos «jogam a bola com tanta habilidade e destreza», uma coisa nunca vista por aquelas bandas. Futebol arte, só ao alcance dos verdadeiros artistas. Da defesa dizia-se que era segura, mas que não havia sido testada, enquanto «a linha avançada leva o jogo com os seus velocíssimos extremos e os dois interiores de extraordinária valia». O grande teste ainda se adivinhava, escrevia uma certa imprensa afeta ao Real Madrid.

De Madrid para Barcelona

No dia seguinte, a neve cobriu a capital espanhola e os jogadores do San Lorenzo percorreram as suas principais artérias, da Gran Via ao Paseo del Prado, maravilhados com o bulício da cidade que ultimava as compras do natal. No Parque del Retiro, onde o lago se encontrava totalmente gelado, houve batalhas com bolas de neve que fizeram as delicias dos jogadores. Estes aproveitaram assim o seu descanso curto, já que na manhã seguinte tinham novo jogo em Madrid, desta feita contra o Real.

Com a cidade gelada, a Marca deu eco do enorme respeito que o povo espanhol sentia pelos «irmãos de raça, de fé e idioma». Nessa fria manhã de Natal, perante um Estádio Metropolitano novamente lotado, os argentinos, visivelmente cansados, perderam com os merengues por 4x2. Terminado o jogo, voltaram para o hotel, onde comemoram o dia de natal como uma grande família. Na manhã seguinte, rumaram à estação de Atocha para iniciarem a viagem em direção à Cidade Condal, onde os aguardava a Seleção Nacional de Espanha, que se reunira para defrontar o San Lorenzo no primeiro dia 1947.

Em Les Corts, Barcelona, o San Lorenzo dá uma magistral demonstração de classe, batendo a Espanha por 5x7, depois de estar por duas vezes em desvantagem no placard.


No Les Corts, estádio do FC Barcelona à epoca, não cabia nem mais uma pessoa. Aos 15 minutos os espanhóis já venciam por 2x0, mas vinte minutos depois, René Pontoni reduziu e iniciou uma reviravolta ciclónica, que demorou mais três minutos a completar. No recomeço, a Espanha deu a volta (4x3), mas o San Lorenzo reagiu e voltou para frente com mais três golos de rajada. A Espanha ainda reduziu, a dois minutos do fim, mas Vicente De La Mata marcou o sétimo golo argentino e estabeleceu o placard final. Espanha 5x7 San Lorenzo! Barcelona aplaudiu de pé e El Ciclón continuou a fazer estragos por terra de nuestros hermanos!

Terminado o jogo, pouco deu para apreciar as Ramblas ou a Sagrada Familia, pois houve nova longa e extenuante viagem rumo a Bilbau. A 5 de janeiro, o San Lorenzo empatou com o Athletic local a três bolas.

Jornais bascos relatando a visita do San Lorenzo a Bilbau.

De estação em estação

No tempo em que uma viagem entre Barcelona e Madrid demorava um pouco mais do que 24 horas e que uma viagem Lisboa-Porto nunca demorava menos que meio dia, não é de surpreender que o cansaço se fosse acumulando na comitiva argentina. A 16 de janeiro houve novo embate com seleção espanhola, novamente em Madrid. A vitória argentina por 1x6 não deixou de surpreender os locais, que no dia seguinte eram desculpados pela imprensa madrilena, que invocou o desgaste que La Roja sofreu com a viagem desde a Cidade Condal, esquecendo deliberadamente que os argentinos também tinham vindo de Barcelona, tendo além do mais feito um 'pequeno' desvio até Bilbau, para jogar mais uma partida... 

Mais seis dias passados e já os jogadores do San Lorenzo passeavam junto às águas do Mediterrâneo, na luminosa cidade de Valência. A 22 de janeiro, um empate a um golo com o clube ché, antecipou nova viagem duríssima, que levou os argentinos de uma ponta da Península à outra, para defrontarem o Deportivo, na Corunha, onde empataram a zero. Sem tempo para descanso, rumaram a sul e passaram a fronteira... rumo a Portugal...

Próxima etapa: Porto

René Pontoni, Rinaldo Martino e ArmandoFarro, em nova capa de El Gráfico, desta vez vestidos de azulgrana, foram fundamentais na goleada conseguida sobre o FC Porto.
Era uma sexta-feira, aquele 31 de Janeiro em que os artistas argentinos efetuaram o seu primeiro jogo em Portugal, contra o FC Porto, no Estádio do Lima. A lotação estava esgotada e os dragões alinharam com o seu melhor onze, onde se destacavam o mágico António Araújo, o goleador Correia Dias e o grande Barrigana na baliza. Logo à abrir, os azuis e brancos adiantaram-se, por intermédio de José Lourenço, mas a reação argentina foi imediata e aos cinco minutos, René Pontoni empatou o jogo.

Os portistas ainda voltaram ao comando do marcador, contudo os argentinos viraram o resultado antes da meia hora. No segundo tempo, a superior forma física dos visitantes veio ao de cima e o FC Porto foi atropelado, com um resultado final de 4x9, que deixou os adeptos portistas literalmente boquiabertos. Por mais que os portistas cerrassem fileiras, a superior técnica sul-americana deixou os defesas adversários pregados ao chão, ficando uma sensação de impotência no ar, perante uma plateia rendida, que vitoriava cada golo dos argentinos como se fosse da sua equipa.

Nova dose em Lisboa

A capital portuguesa foi a próxima paragem da tour. A imprensa lisboeta recordou o jogo no Porto para avisar os lisboetas do que aí vinha. Ribeiro dos Reis escreveu n´A BOLA que os sul americanos  eram «uma orquestra afinadíssima, com avançados primeiros violinos, com dribles num palmo de terreno, passes repetidos para trás e para os lados, extenuando os adversários, tantas as voltas que obrigavam a dar. Basta! Basta! Basta! Dá vontade de gritar aos malabaristas de circo, que são os jogadores argentinos!», entre outros encómios, que apresentava o «ciclone argentino» como a mais afinada máquina que os portugueses tinham tido o prazer de ver jogar. Tão bons como os melhores, ao nível dos artistas da própria Inglaterra.

Em Lisboa a expectativa era grande. Para enfrentar o San Lorenzo, criou-se uma equipa composta pelos melhores jogadores de Benfica, Belenenses e Sporting, o célebre Misto B-S-B, que alinhou naquele 2 de fevereiro com o seguinte onze: Manuel Capela (CBF), Cardoso (CBF) e António Feliciano (CBF); Mariano Amaro (CBF), Francisco Moreira (SLB), Francisco Ferreira (SLB); Jesus Correia (SCP), Arsénio Duarte (SLB), Fernando Peyroteo (SCP), José Travassos (SCP) e Rogério Pipi (SLB).

No Estádio Nacional, um misto formados por jogadores do Benfica, Sporting e Belenenses é esmagado por um inacreditável 4x10.
As bancadas do Estádio Nacional estavam repletas, com uma multidão sedenta por bom futebol e que acorreu, em números nunca antes vistos, a um estádio, tal era a fama dos argentinos e a vontade de presenciar in loco à magia sul-americana.  Em boa verdade, o jogo não teve muita história e, à meia hora, os lisboetas já perdiam por 0x4. No segundo tempo, houve reação portuguesa, mas o 4x10 final não deixou espaço a grandes dúvidas. Na crónica do jogo, o Mundo Desportivo lembrou os 10 golos sofridos (mais um que o FC Porto) e rematou, afirmando que «o futebol na mais pura expressão de arte foi interpretado no Estádio Nacional, pelos famosos jogadores do San Lorenzo de Almagro». 

Portugal rendeu-se à arte das Pampas e os rapazes de Buedo continuaram, rumo a Sevilha, onde quatro dias mais tarde encerraram a tournée, com um empate a cinco golos com o Sevilla. Partiram então para a sua Argentina, onde foram recebidos como heróis nacionais, pelos muitos adeptos que tinham acompanhado dia a dia, as diversas crónicas publicadas na imprensa argentina sobre a famosa gira do San Lorenzo. 

Marca indelével

Alguns meses depois, em junho, a atriz e líder política Evita Péron, outro símbolo argentino, iniciou uma outra tour pela Europa, conhecida como a «Tournée Arco Iris», com passagens marcantes também por Portugal e Espanha (4), marcando a época e um imaginário.

Em jogo contra a seleção nacional de Espanha, os jogadores do San Lorenzo de Almagro entram em campo com as bandeiras dos países.
Na passagem por Lisboa, o povo vitoriou a mulher do líder argentino (5), com muitos dos que a receberam em euforia a recordarem o impacto da visita que o San Lorenzo teve em Portugal e no país vizinho. Estes foram os anos em que os argentinos deixaram uma marca em Portugal e Espanha, que perdurou no tempo, chegando aos nossos dias como um misto de realidade e lenda, que passa de geração em geração...

De Evita Perón aos mágicos do San Lorenzo, das acelerações de Juan Manuel Fangio aos tangos de Carlos Gardel, a distante Argentina entrou para sempre no imaginário dos dois países ibéricos que, por esses tempos, viviam a longa noite da ditadura, envoltos num cinzentismo que perdurou até meados dos anos 70...

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(1) - Boedo, Bairro de Buenos Aires onde nasceu o San Lorenzo de Almagro.
(2) - Porteño é o nome por que são conhecidos os habitantes de Buenos Aires.
(3) - Nome utilizado à época pelo Atlético Madrid.
(4) - Além de França, Itália, Vaticano e Suíça.
(5) - Evita Péron, Primeira-Dama argentina entre 1946 e 1952 (ano da sua morte) era a segunda esposa do General Juan Péron, Presidente da República Argentina, num primeiro mandato entre 1946-55.

Comentários (3)
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motivo:
Fantástico
2015-01-28 23h07m por paulo218927
Simpatizo com San Lorenzo mas a minha equipa favorita é sem duvida o grande River Plate.
Magnífico
2013-11-21 17h17m por Thirteenth
San Lorenzo de Almagro e Boca Juniors são as minhas equipas preferidas da Argentina, adorava ir ver um jogo entre elas ao vivo em Buenos Aires.
VE
ooohhhh
2013-07-28 02h31m por verucasalt
tanto trabalho q teve o estagiário e ninguém comentou . . .

( sad face ) . . . .