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História
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A «Resposta histórica»

Texto por João Pedro Silveira
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A 7 de abril de 1924, José Augusto Prestes, Presidente do Vasco da Gama, assinou uma missiva com um valor impar na história do futebol brasileiro. Nessa carta, o Vasco da Gama anunciava uma rutura com o status quo reinante no futebol carioca, afastando-se de todos os outros que defendiam a separação entre brancos e negros nos campos de futebol.

Para a direção do Vasco, para os seus sócios e atletas, era chegado o tempo de assumir que o clube não queria compactuar com os segregacionistas e o racismo vigente nas instituições desportivas do Rio de Janeiro. O Vasco da Gama abandonava a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos, recusando-se a excluir os seus atletas de cor, só para poder competir com os seus rivais.

A decisão deu brado na época, com polémica e acusações várias aos dirigentes do Vasco. As reações foram violentas, com os dirigentes de outros clubes a acusarem o «clube dos portugueses» de ajudar a destruir um desporto amado por todos, ameaçando o seu futuro, mas o tempo provou que os dirigentes do Vasco é que estavam certos, com a sua pioneira tomada de posição a ser um ponto de partida para a longa luta pela erradicação do racismo no futebol brasileiro.

O Brasil da viragem do século
 
A sociedade brasileira vivia momentos de transformação. A de 15 de novembro de 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca, apoiado pelas elites repúblicanas, proclamou a República, tendo de seguida demitido o Conselho de Ministros e destituido o Imperador. Nessa mesma noite, o marechal assinava a proclamação da República e instalava um governo provisório.
 
Três dias depois, D. Pedro II e a família imperial partiam rumo à Europa. Ao fim de 67 anos a monarquia chegava ao fim, depois de uma longa agonia, que nada conseguira inverter, nem a abolição da escravatura em 1888, a famosa «Lei Áurea», proclamada pela Princesa Dona Isabel, regente na ausência do pai.
 
Abolida a escravatura, o racismo não acabou e a sociedade brasileira continuou segregacionista e feroz na sua oposição à convivência entre brancos e negros.
 
Os grandes proprietários começaram a importar mão-de-obra emigrante para colmatar a falta dos escravos, e centenas de milhares de europeus começaram a aportar nos portos brasileiros, como ou o Rio.
 
Italianos, espanhóis, suíços, alemães, todos procuravam a fortuna em terras brasileiras, mas também os portugueses, antigos senhores coloniais, partiam para o novo eldorado. 
 
Diferente desde a fundação
 
Foram alguns desses portugueses que ajudaram a fundar o Vasco, que pelas cores e emblema, queria homenagear a pátria distante e a gesta gloriosa dos heróis lusitanos, quiçá o mais importante de todos fosse Vasco da Gama, o Almirante que descobrira para El Rei D. Manuel I, o caminho marítimo para a Índia.
 
Fundado em 1898, com o nome de Clube de Regatas Vasco da Gama, tornou-se no clube representativo da comunidade portuguesa do Rio de Janeiro, mas desde cedo foi abrindo as suas portas a todos além dos lusos, fossem eles cariocas, ou provenientes de outras partes do Brasil, com incidência para os nordestinos. Brancos, negros e mulatos começaram a conviver no clube, que queria unir irmãos de diferentes raças, para desdém dos adversários que consideravam essa situação vergonhosa e um atentado aos bons costumes e civilização.
 
qSem o Vasco, o futebol brasileiro não teria conhecido Pelé.
A abertura do clube a pessoas de outras raças era de tal forma, que o Vasco rompeu os caducos hábitos da época, não só abrindo «as portas» aos negros, como elegendo um mulato para presidente, Cândido José de Araújo, eleito em 1904, e reeleito um ano depois, uma verdadeira pedrada no charco, num ato pioneiro na sociedade brasileira. 
 
«A questão da cor»
 
Em 1923, o Vasco participa na liga com os seus rivais, usando diversos jogadores negros e mulatos na equipa, para profundo incomodo de adversários e organizadores da competição.
 
Insatisfeitos, os adversários tentam alegar que o Vasco usa jogadores profissionais, o que ia claramente contra as regras estabelecidas, que apenas permitiam a participação de jogadores amadores. Mas no fundo, todos percebem que o que realmente incomoda os restantes clubes é a presença de jogadores não brancos no campeonato.
 
Um ano depois, Botafogo, Flamengo, Fluminense e outros clubes resolvem abandonar a Liga Metropolitana e fundar a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), deixando deliberadamende de fora o Vasco da Gama.
 
Quando os vascaínos tentaram aderir à nova associação, receberam uma dura condição para poderem se filiar na AMEA. O Vasco recebeu uma lista de doze atletas - todos negros - que deviam ser excluídos do clube, com acusação de que teriam uma «profissão duvidosa».
 
Confrontado com o triste ultimato, o Presidente José Augusto Prestes, enviou uma carta à AMEA, que ainda hoje é recordada como a "resposta histórica", recusando liminarmente as condições impostas e  desistindo de filiar-se a AMEA.
 
Deste modo, o Vasco manteve-se na LMDT, que vencera em 1923 - defrontando todos os cinco grandes carioca. Em 1924 defrontando equipas de menos gabarito, venceu todos os jogos, mas em 1925, acabou por ser admitido na AMEA, podendo enfrentar os adversários podendo utilizar todos os seus jogadres, fossem eles brancos, negros ou mulatos.
 
A Resposta histórica
 
Uma reprodução do documento, pode ser encontrada nos nossos dias, na Sala de Troféus, localizada na Sede em São Januário, encimada por um frase que faz pensar a todos os amantes do futebol, sejam eles brasileiros ou não:
 
«Sem o Vasco, o futebol brasileiro não teria conhecido Pelé.»
 
Para os vascaínos, e com razão, o documento é um dos grandes orgulhos da história centenária do clube de São Januário. No momento da sua redação, poucos fariam ideia do impacto que a carta teria no futebol brasileiro. E a lista de craques que vestiram a canarinha durante estes anos todos, é a prova cabal da importância fulcral para o futuro do jogo no Brasil, que teve a decisão tomada, nesse 7 de abril de 1924.
 
Todavia, não haverá nada melhor do que ler as palavras inscritas na carta, para se perceber a real dimensão da importância da mesma:
 
 
Rio de Janeiro, 7 de Abril de 1924.
Ofício nr. 261
Exmo. Sr. Dr. Arnaldo Guinle
M.D. Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos

As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de ontem pelos altos poderes da Associação a que V.Exa tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama numa tal situação de inferioridade, que absolutamente não pode ser justificada nem pela deficiência do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa sede, nem pela condição modesta de grande número dos nossos associados.

Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma por que será exercido o direito de discussão e voto, e feitas as futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.

Quanto à condição de eliminarmos doze (12) dos nossos jogadores das nossas equipes, resolve por unanimidade a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama não a dever aceitar, por não se conformar com o processo por que foi feita a investigação das posições sociais desses nossos consócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.

Estamos certos que V.Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se à AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do campeonato de futebol da cidade do Rio de Janeiro de 1923.

São esses doze jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de sua carreira e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias.

Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V.Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA. Queira V.Exa. aceitar os protestos de consideração e estima de quem tem a honra de se subscrever, de V.Exa. At. Vnr. Obrigado

(a) Dr. José Augusto Prestes
Presidente
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