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Pedro Mantorras: A Alegria da Luz

Texto por João Pedro Silveira
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O jogo podia estar a correr mal aos encarnados, os passes não saíam, as jogadas emperravam, os remates pareciam não ter rumo. Na Luz, ouviam-se alguns assobios e contestação ao treinador, mas tudo parava quando o treinador olhava para o banco e mandava um jogador aquecer.

Ouvia-se o bruááá nas bancadas do anfiteatro benfiquista. «Aí vem ele!», o público apoiava e gritava «Benfica! Benfica! Benfica!», a equipa acordava e começava a jogar. Bastava Pedro Mantorras começar a aquecer para a equipa reagir e o adversário sentir a força do Terceiro Anel e tremer...

O efeito-Mantorras, como alguns lhe chamaram, é um caso de estudo da sociologia e da psicologia. Como é que um jogador com limitações, que só podia jogar 20 minutos por partida, podia despertar tanta alegria e confiança nos adeptos, empolgar a própria equipa e atemorizar os adversários?

As respostas, como em tantas outras questões emblemáticas do futebol, ninguém as tem. É futebol, dirão alguns, e a bola tem esta relação especial com os seus heróis... Os golos, a carreira promissora e uma vida que tinha tudo para ser trágica, mas que se tornou numa paixão de multidões, tornaram Mantorras no menino bonito da Luz, na alegria benfiquista, na festa do futebol.

Menino do Huambo

Pedro Manuel Torres nasceu a 18 de março de 1982, no Huambo, em pleno Planalto Central de Angola. Aí foi crescendo, sendo mais um dos muitos «Meninos do Huambo» eternizados «à volta da fogueira» na canção/poema do cantor angolano Ruy Mingas. O pequeno Pedro cresceu num período difícil da história de Angola, quando esta se encontrava dividida pela luta fratricida entre o MPLA e a UNITA.

O início no Benfica @Getty / Getty Images
Ao contrário da capital, o Huambo estava desde 1976 no centro da luta entre os dois grupos armados, sofrendo constantes ataques de ambas as partes e assim se manteria durante grande parte do interminável conflito.

Nos anos noventa, após o falhanço do Acordo de Bicesse e das tréguas, a cidade foi praticamente destruída, com combates casa a casa, provocando milhares de mortos e feridos, tornando a vida na cidade um total inferno para os locais. Com medo que os filhos crescessem naquele ambiente de guerra, violência, fome e ódio, a mãe, Dona Cristina Inácio, viúva de Domingos Manuel «Lixa», voltou para Luanda com os seus meninos, onde viveram com imensas dificuldades no bairro de Sambizanga.

Vida difícil em Sambizanga

Em Luanda, com o problema de saúde da mãe, o pequeno Pedro tornou-se responsável pelos irmãos mais novos, trabalhando nas ruas, mendigando ajuda alheia e jogando futebol sempre que podia, num dos imensos descampados, onde os rapazes jogavam à bola com um esférico improvisado com trapos ou papel.

No título ganho no Bessa @Getty /
Sonhava jogar um dia no Sporting de Lisboa, mas a mãe colocava água na fervura, dizendo-lhe que esquecesse a bola e se concentrasse no trabalho.

Desses primeiros anos difíceis, guarda a alcunha de Mantorras, ganha após um acidente com uma panela com água a ferver em que se queimou, provocando-lhe ligeiras queimaduras. Durante o acidente, os amigos gritaram «Cuidado! Mano torras!», e, saradas as feridas, pouco depois, o «Mano torras» tornou-se Mantorras, o herói do bairro de Sambizanga.

Começou no Progresso de Sambizanga e sonhava jogar no Primeiro de Agosto. Deram-lhe pela primeira vez chuteiras para calçar, mas não se habituava e teimava em jogar descalço. Custou a habituação, mas acabou por singrar nos juvenis do clube, ao ponto de passar logo para os juniores, chegando à primeira equipa e tornando-se titular apenas com 16 anos. Com o dinheiro que ganhava, podia comprar o arroz, açúcar e demais bens essências para alimentar a irmã e o irmão mais novos.

De Sambizanga para Alverca (com passagem por Barcelona)

Carlos Alhinho, que era o selecionador nacional, chamou-o para vestir a camisola dos «Palancas Negras», num jogo com a Etiópia, onde apontou o golo decisivo que valeu a vitória de Angola. Passou a jogar na seleção de esperanças e foi aí que viajou a Portugal pela primeira vez, para participar num torneio, onde despertou o interesse de diversos clubes. 

A Luanda chegou uma proposta do Barcelona e o empresário Jorge Mendes levou-o para a «Cidade Condal», onde agradou aos treinadores blaugrana, só que um desacordo de verbas fê-lo ter de regressar à casa da partida, volvidos somente três meses. 

Seria então a vez do Alverca o resgatar a um destino complicado, chegando-se à frente de leões e águias, que também desejavam contratar o jovem prodígio angolano. 

Em Alverca, cresceu, protegido por colegas, mas especialmente pelo presidente Luís Filipe Vieira, que o tratou como um filho, "adotando-o" e tornando-o uma visita habitual para jantar em casa da sua família.

No Ribatejo, brilhou com a camisola azul-e-vermelha, tornando-se na nova coqueluche do clube, subindo de divisão, e apontando nove golos na primeira época na Primeira Liga. O estrelato chegou a 17 de fevereiro de 2001, quando uma exibição de sonho e um grande golo ajudam a derrotar o então campeão Sporting por 3x1. 

«Deixem jogar o Mantorras!»

Luís Filipe Vieira, que entretanto se mudara para o Benfica para fazer parte da nova direção eleita por Manuel Vilarinho, levou-o consigo para a Luz, onde foi recebido em euforia pelos adeptos, que rapidamente passaram a fazer associações ao novo Eusébio.

@Getty / PEDRO FERRARI
O próprio Eusébio da Silva Ferreira não hesitou em lhe prever um futuro radiante, ajudando ao estado de euforia com que os encarnados começaram o campeonato. Na Póvoa do Varzim, o Benfica chegou com facilidade ao 0x2, mas uma reação varzinista nos últimos minutos arrancou um empate a dois. 

Mantorras, apagado, foi vítima da marcação cerrada do central poveiro Alexandre, não conseguindo fazer a diferença que se esperava. No fim, os dirigentes do Benfica não calaram a revolta, e para a memória futura ficou o apelo de Luís Filipe Vieira: «Deixem jogar o Mantorras!»

A «Alegria da Luz»

À terceira jornada, a sua primeira explosão apareceu: contra o Vitória FC, um hattrick que deu a vitória por 3x2. Desconcertante, selvagem, explosivo, imprevisível, Mantorras encantava as bancadas, bem mais do que o resto da equipa, da qual também seria vítima. Mesmo assim, foi do melhor que se viu naquela época e, atentos, os gigantes europeus chegaram a perguntar por ele: só por 18 milhões de contos (90M em euros), terá respondido o Benfica, que rejeitou a abordagem do Barcelona e a proposta do Inter, com números bem mais baixos.

Após o sexto lugar da época anterior, o verão de 2001 trouxe para a Luz um punhado de jogadores com nome, como Simão, Zahovic ou Drulovic, só que a instabilidade vivida pelo clube até então impossibilitava que existissem verdadeiras condições para a luta pelo título. Além disso, a constante mudança de treinadores também não era benéfica. No fim, as águias não conseguiram mais do que o quarto lugar, num fim de época penoso, com a lesão de Simão e do próprio Mantorras - voltou de forma apressada e tudo correu mal...

Entre 2002 e 2004, Mantorras sofreu quatro intervenções cirúrgicas ao joelho, regressando com limitações a meio da época 2004/05, com muito poucas garantias de real utilidade em campo, após dois anos parado. Poucos podiam prever a dose de importância que teria na conquista do campeonato. O italiano Giovanni Trapattoni percebeu que, apesar das limitações, Mantorras podia jogar um quarto de hora a vinte minutos e, durante esses momentos, ser fundamental para a equipa (ainda que o jogador dissesse que aguentava todo o jogo).

Foi sendo opção, quase sempre como suplente @Getty / PEDRO FERRARI
Os benfiquistas recuperaram ali um dos seus ídolos e começaram a puxar por ele sempre que Trap o mandava aquecer. Começava o «efeito Mantorras», uma espécie de talismã e o angolano tornava-se na «Alegria da Luz». Em 15 presenças nessa época, apontou cinco golos, quatro deles nos últimos dois meses de competição, o que o devolveu à paixão das massas benfiquistas.

Não obstante a sua recuperação ser constantemente adiada, muitos - e o próprio - acreditavam que a recuperação chegaria a um dia e seria total. Contudo, para tristeza de Mantorras, dos benfiquistas e dos apaixonados de futebol, o angolano nunca mais voltaria a ser o mesmo jogador, e só resta conjeturar a carreira que podia ter tido, se não fosse a malfadada lesão.

Após alguns anos com contribuições diminutas para as campanhas benfiquistas, Mantorras colocou um fim à sua carreira no Benfica, em meados de fevereiro de 2011, a apenas um mês de festejar o 29º aniversário.

Jogou o Mundial 2006 @Getty / Laurence Griffiths
Foi tentar a sua sorte em Angola, no Primeiro de Agosto, onde tinha sonhado jogar quando era criança, mas o joelho não deixou, acabando por desistir pouco depois.

Em Junho de 2012 regressou à sua casa, tornando-se num embaixador itinerante do Benfica, vendo reconhecido pela direção o seu papel de símbolo benfiquista e de ídolo dos adeptos. A sua devoção ao Benfica custou-lhe um papel mais fundamental na seleção, onde o Mantorras do Benfica nunca parecia jogar, marcando apenas quatro golos em 29 jogos pelos «Palancas Negras». Ficou, ainda assim, o registo para a memória de uma convocatória e presença no Mundial da Alemanha em 2006, a primeira vez que Angola jogou o torneio mais importante do Mundo.

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Pedro Mantorras (ANG)
Pedro Mantorras (ANG)
Comentários (4)
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motivo:
Vieira, Bernardo Silva e Cia.
2022-02-15 13h56m por joaotomaz
Um dia, seria bom os benfiquistas perguntarem-se qual foi o papel do padrinho "LFV", naquilo que foi pressionar médicos e o próprio Pedro Mantorras para jogar quando não tinha condições de o fazer. . . mas. . . há sempre um mas. . . importante é que o jogador "90 milhões" jogasse como jogasse para ter mercado. . . depois o papel do chefe do departamento médico do SLB que o foi durante mais de 15 anos, o Dr. Bernardo Vasconcelos, que precipitou (justamente porque sofreu pressões aceitáveis o...ler comentário completo »
AT
Mantas
2015-09-20 11h00m por ateles
se não fossem os Pedros Emanuéis a fazerem 18 faltas por jogo e só a levarem amarelos no final dos jogos, aí sim, poderia dizer-se que teria todas as condições para fazer uma grande carreira.
Pedro Mantorras
2014-09-26 17h58m por JoseTiagoVale
Não tenho duvidas que se o Benfica não o estragasse, poderia ter sido um dos melhores senão o melhor jogador africano de sempre.
Pedro Mantorras
2014-08-03 03h57m por JoseTiagoVale
Como é possivel. . . ? Podia estar aqui quem sabe um dos melhores senão mesmo (sem exagerar!) o melhor jogador africano de todos os tempos, e por causa de um gajo do Benfica, ficou com a carreira completamente arruinada. Tinha eu 5 anos, tinha o Mantorras 18/19 anos, no Alverca, e ja era um ganda craque a sério, foi para o Benfica e puxaram tanto dele que o fuderam para toda a vida. . . Vá lá que o Vieira ao menos tratou o com respeito e dignidade e sempre o manteve mais uns anos no Benfi...ler comentário completo »
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