A influência dos colossos está perto da maioria absoluta, mas em tempos não ganharam tudo. Tempos em que se respirava um futebol diferente, que muitos dizem ser mais puro. Em Espanha, há um conto, que não é de fadas, que encantou uma nação inteira e muitos românticos, analistas, historiadores ou, simplesmente, seguidores do mais incompreendido (e amado) fenómeno desportivo.
Na Galiza, região autónoma que quase se confunde com as nossas raízes, surgiu um dos mais entusiasmantes coletivos do fútbol: o Super Dépor. E o mais curioso é que o sucesso do Deportivo foi faseado: o céu não foi atingido nos tempos de ouro, mas os frutos acabaram por ser colhidos a longo prazo num trajeto marcado por adrenalina, loucura, tristeza profunda e êxtase máximo.
Tudo começou no início dos loucos anos 90. Em 1990/91, e depois de 18 longos anos nas divisões inferiores marcados por crises financeiras e constantes erros de planificação, o Deportivo chegou ao principal escalão para delírio do município de Corunha, com pouco mais de 250 mil habitantes, deixando para trás o Real Murcia na última e derradeira jornada.
Augusto César Lendoiro, presidente, foi um dos grandes responsáveis pela mudança de paradigma do clube: saldou as dívidas e arrancou com um projeto sólido e ambicioso que teve na subida de divisão o primeiro ponto alto. A aposta em Arsenio Iglesias, ídolo deportivista nos anos 50, revelou-se acertada e ajudou na construção de uma base para algo grande.
A explosão aconteceu, efetivamente, em 1991/92, com a criação da Sociedade Anónima Desportiva (SAD) e a aliciante mudança de formato da Liga dos Campeões. Com isso, a visibilidade aumentou em proporções nunca antes vistas e o investimento catapultou o sonho para outro patamar. Lendoiro, advogado de profissão, tinha um trunfo na manga: ele próprio. Para além de conhecedor da realidade desportiva, era um ótimo negociador porque conseguia ser duro e persistente e, ao mesmo tempo, persuasivo. Foi dessa forma que convenceu Bebeto, já uma estrela, e Mauro Silva, ainda jovem, a trocarem o Brasil tropical pela Galiza, pagando, na altura, nada mais, nada menos do que uns espetaculares 500 milhões de pesetas, numa manobra que deixou a Europa de boca aberta.
Bebeto (ex-Vasco da Gama) e Mauro Silva (ex-Bragantino) foram as cerejas no topo de um bolo que também passou a contar com Djukic (FK Rad Belgrado) e Aldana (Real Madrid), sendo que Fran era um dos principais destaques da casa. O Dépor deu um salto qualitativo tão grande que ninguém esperava: o título passou de ilusão a realidade e as vitórias sobre os titãs passaram de quase impossíveis a possíveis.
Iglesias, homem da casa escolhido para liderar desde o banco, construiu uma coluna vertebral de presente e futuro no seu 4x1x3x2: a elegância e inteligência de Djukic atrás, a potência e a omnipresença de Mauro Silva no meio-campo, a visão de jogo e a qualidade de Fran nos flancos e a habilidade e sentido predador de Bebeto na frente. A junção de todas estas peças originou uma máquina temível e extremamente difícil de parar, sendo que nem o Real Madrid, derrotado no Riazor com uma espetacular reviravolta (3x2), e o Dream Team de Johan Cruyff (1x0) escaparam.
Durante 13 jornadas (foi campeão de inverno), Corunha sonhou. Afinal, estavam perante um grupo de super-heróis que pareciam não ter limites. Para infelicidade do universo blanquiazul, as forças caíram na segunda volta e o primeiro lugar ficou à distância de quatro pontos. Ainda assim, as conclusões foram elucidativas: Bebeto sagrou-se Pichichi, com 29 golos marcados, e Fran espalhou classe, conquistando a distinção de Melhor Jogador.
O trajeto, brilhante, fez com que a Galiza voltasse a ser reconhecida na vertente desportiva. O mundo, boquiaberto, procurava respostas para o primeiro e histórico apuramento europeu, engrandecendo o nome do Deportivo um pouco por toda a parte.
Nenhum deportivista, sobretudo os que viveram de perto e intensamente, esquece o ano de 1994. O ano marcado, talvez, pelo maior dissabor da história do clube. A aventura na Taça UEFA terminou nos oitavos-de-final frente ao Eintracht Frankfurt e permitiu virar, a fundo, as atenções para o campeonato que esteve à distância... de 11 metros.
Mais afinado em termos defensivos e mais focado no jogo vertical, o Dépor voltou a agitar - e amedrontar - a Liga, vergando, de novo, rivais mais poderosos. A liderança foi conquistada à passagem da 14ª jornada e, desde aí, a luta com o Barcelona (o famoso Dream Team de Cruyff) foi absolutamente alucinante: taco a taco até à última jornada!
Por isso, ninguém na cidade de Corunha esquece o dia 15 de maio. O dia do famoso penálti de Djukic no último minuto do encontro frente ao Valencia. Uma única falha que custou o título de campeão...
Depois do mérito na Supertaça, na Taça UEFA, a história repetiu-se: queda nos oitavos e de novo contra um adversário alemão, desta vez o Borussia Dortmund. Quanto à Liga, a liderança esteve em posse galega durante um curto período, já que o Real Madrid de Laudrup, Raúl e companhia, liderado por Jorge Valdano, superiorizou-se, a duas jornadas do fim, com um triunfo caseiro e vital para o desfecho da época.
Houve, apesar desse objetivo falhado, motivos para festejar. Foi uma época novamente marcada pelo «quase, quase», mas terminou esses três anos de sonho com um sorriso no rosto. O Dépor, no terreno do Albacete, aplicou um impressionante resultado de 2x8, na maior vitória de sempre do clube fora de portas, e conquistou a Taça do Rei através de um percurso duro e ao mesmo tempo impressionante: na final bateu... o Valencia com o famoso golo de Alfredo. Ironia do destino...
Arsenio Iglesias, el Brujo de Arteixo, deixou a cidade de Corunha em êxtase, com o primeiro título da história do clube, para deixar o futebol em definitivo (acabou por aceitar, mais tarde, um convite do Real Madrid) e obrigou a um período de transição.
Os mercados de transferências foram novamente bem agitados. Em 97/98, saíram figuraças como Liaño, Rekarte e Bebeto, mas numa altura de grande projeção do futebol espanhol, o ouro foi substituído... por ouro. Assim, e acompanhando os fortes investimentos de Barcelona e Real Madrid, Lenoiro optou por não ficar atrás, contratando um trio de brasileiros promissor (Rivaldo, Flávio Conceição e Renaldo), experientes internacionais como Jacques Songo'o e Naybet e ainda os portugueses Nuno Espírito-Santo e Hélder Cristóvão.
Mas se para o elenco as escolhas pareciam acertadas, para o comando técnico a história foi bem diferente. Vários erros de casting: Toshack nunca teve uma boa relação com o balneário, em especial com o craque Rivaldo, e saiu pela porta pequena. Carlos Alberto Silva, aproveitando o embalo do brasileiro, colocou o Dépor no terceiro lugar e saiu no ano seguinte, a meio, com Corral a não conseguir segurar o barco (terminou numa pobre 12ª posição). Aí, já Rivaldo, contratação recorde em Espanha, espalhava magia na Catalunha e Djalminha, seu 'substituto', na Galiza.
No entanto, a principal e decisiva aposta de Lendoiro, tal como havia feito com Iglesias, foi em 1997/98. O mentor do Super Dépor teve, finalmente, um sucessor à altura. Javier Irureta, sem grande destaque na década de 90, vinha de um ótimo trabalho... no rival Celta, levando os de Vigo à Taça UEFA.
O melhor estava reservado para a histórica época 1999/2000. Nova presença nas competições europeias, novos reforços e, desta feita, sem preferência pelo mercado brasileiro. Roy Makaay tinha dado nas vistas no Tenerife e chegou por oito milhões de euros, seguido de outros nomes mais baratos como Jokanovic, Jaime Fernández e Victor Sánchez. No plantel, Mauro Silva, Donato e Fran eram os sobreviventes dos anos dourados do Super Dépor e os grandes líderes.
Contra todos os prognósticos, até porque o objetivo era o de terminar no top-4, o Deportivo conquistou o título de campeão espanhol. Um título atípico, diga-se, visto que nessa época, Alavés (sexto) e Real Zaragoza (quarto) surpreenderam a crítica. O Barcelona (foi vice-campeão) tinha uma constelação de craques como Rivaldo, Luís Figo, Guardiola, os irmãos de Boer, Patrick Kluivert e Litmanen; o Real Madrid não ficava atrás com Morientes, Roberto Carlos, Redondo e Raúl González; o Atlético sonhava voltar à ribalta com Gamarra e companhia e o Valencia via figuras como Mendieta, Angulo, Cañizares ou Claudio López fazerem a diferença.
Contra tudo isso, o Irureta construiu uma equipa temível. Era um 4x2x3x1 organizado, equilibrado e com grande liberdade para a veia artística de Djalminha, atrás do goleador Roy Makaay, que tinha na sua sombra Pauleta e Turo Flores. O Dépor não deu chances aos rivais: tombou Barcelona (2x0) e especialmente o Real Madrid em casa, no célebre 5x2 marcado pela 'lambreta' de Djaminha sobre Raúl.
Um empate frente ao Espanyol era suficiente, mas Donato e Makaay deram mais sabor a uma conquista inédita. Corunha ficou pintada de azul e branco numa festa nunca antes vista. Os 34 mil loucos espectadores que tinham invadido o campo do Riazor juntaram-se a outros tantos milhares nas ruas da cidade para, enfim, viverem um sonho que até então teimava em virar pesadelo.
Irureta, o grande obreiro, manteve-se no cargo até 2004/05, conquistando duas Supertaças e uma Taça do Rei (o Centenariazo, frente ao Real Madrid) e projetando o clube a outras épocas assombrosas, com destaque para a sublime campanha na Liga dos Campeões 2003/04, onde só futuro campeão FC Porto mostrou ser superior.
«Y digo Deportivo, vamos a ganar este partido». O hino entoado nas alturas por milhares de gargantas no sempre escaldante Riazor foi perdendo força. E muita. Mas nunca ninguém esquecerá o Super Dépor, símbolo de um futebol em vias de extinção.