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    Cherbakov: talento eclipsado numa cadeira de rodas

    Texto por Ricardo Miguel Gonçalves
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    Diz-se de cada jovem que arromba as portas do futebol para mostrar o seu e o faz com qualidade que "tem o mundo a seus pés". Para Cherbakov, nem parecia ter sido difícil. Apareceu com 17 anos na equipa do Shakhtar Donetsk, na antiga União Soviética, impressionando desde o primeiro dia e sem nunca mostrar sinais de abrandar. Quando chega ao Sporting vem com o rótulo de uma das maiores promessas no mundo, para além de um salário condizente. Crescera na miséria e estava habituado a viver com menos de 600 rublos por mês, o que significou um interesse especial na multiplicação desses valores que a equipa portuguesa oferecia, para além de um T4 em Lisboa e um carro para uso próprio.

    Foi em menos de um ano e meio que Cherbakov, através do seu futebol, mostrou valer o dinheiro investido pelo clube de Alvalade. Tinha qualidade, isso era inquestionável, mas para além disso parecia ter aquele "dom" especial. O ucraniano fazia crescer água na boca dos adeptos, com promessas de um futuro risonho que tão rapidamente perdeu a graça quando se viu hipotecado, nas ruas de Lisboa, onde o impacto do Renault disponibilizado pelo clube deixou o jovem de 22 anos paraplégico. Num ápice, uma carreira que estava ainda a começar tinha já terminado e Sergey Cherbakov deixou de ser um miúdo com o mundo a seus pés, tornando-se num homem que não os sentia.

    Coração verde, semáforo vermelho

    Na noite de 15 de dezembro de 1993, Cherbakov esteve, tal como todos os jogadores do plantel, num jantar em homenagem ao técnico Bobby Robson. A festa durou até um pouco mais tarde que o esperado e a necessidade de descanso de atletas profissionais pedia um regresso a casa. Bendito carro estacionado lá fora, sempre pronto para ajudar.

    Às 23h20 brindava-se à felicidade do mister, a quem todos os presentes desejaram tudo de melhor. Não era o primeiro copo da noite para o jovem Cherba, que se sentia bem, mas podia jogar pelo seguro e talvez já se justificasse um táxi para casa.

    Cadete com a camisola de Cherbakov na Luz @Getty / Tony Marshall - EMPICS
    Pouco depois, foram as despedidas. Nada que se prolongasse, afinal, todos os presentes viam-se diariamente e daí a umas horas voltariam a estar juntos. Cherbakov seguiu até ao seu carro, na banalidade de um "até amanhã", que se tornaria num permanente adeus à vida como a conhecia.

    Na linguagem universal de um sinal vermelho, no cruzamento da Avenida da Liberdade com a rua Alexandre Herculano, o ucraniano seguiu em frente. O que encontrou não foi um atalho para casa, mas sim o forte impacto com um carro que seguia na via perpendicular. O outro envolvido no acidente era um animador de rádio, e foi quem encontrou o atleta inconsciente no seu carro depois de ainda o ter ouvido gritar.

    Deu entrada no Hospital de São José às 5h43 da manhã, onde seguiu para a unidade de cuidados intensivos, com uma lista interminável de fraturas e hemorragias internas, para além de complicações neurológicas. A notícia correu rápido e na manhã seguinte já toda a esfera sportinguista estava a par do que tinha acontecido, embora alguns tivessem mais dificuldade em aceitar os factos do que outros. Não se tratava apenas de uma lesão difícil, nem de uma situação complicada que um jovem consegue ultrapassar, Cherbakov tinha sofrido um acidente grave, que lhe paralisou os membros inferiores. A luta já não era pela carreira, mas sim pela vida, pois jogar futebol não estava no futuro do ucraniano.

    «Aquilo que eu diria, friamente, é que não volta a jogar futebol», comentou José Sá Figueiredo, diretor do Hospital de São José. «É jovem, há muito que contar com a capacidade física dele e com a vontade de vir a andar, agora jogar futebol não prevejo».

    Terminar a carreira aos 22 anos foi um golpe muito mais doloroso para Cherbakov do que qualquer acidente de carro poderia doer. Parecia haver tanto pela frente, dentro das quatro linhas, mas agora o futuro passava por camas de hospital, cadeira de rodas e clínicas de reabilitação. A dor nunca foi só de Cherba, mas sim de todas as pessoas afetas ao Sporting

    «É muito difícil receber uma notícia destas de uma pessoa amiga, quando sabes que ele tem 22 anos e o futuro lhe pertence... É mesmo muito difícil». Foram estas as palavras do colega de equipa Ivaylo Iordanov, o avançado búlgaro que era muito próximo de Cherbakov.

    Jogadores, funcionários e adeptos uniram-se em torno de uma tragédia. Três dias depois do acidente, havia jogo importante, o dérbi no Estádio da Luz. Nessa altura, Sporting e Benfica estavam juntos na primeira posição do campeonato, com os mesmos pontos, e uma vitória poderia ser não só o tónico necessário para o ataque ao título, como também para tirar o pensamento da tragédia que ocorrera durante essa semana. O capitão leonino, Cadete, falou antes do jogo acerca do que se passou com o colega e deixou-lhe uma promessa: vencer aos rivais.

    «Eu só soube depois das nove da manhã que o Cherbakov tinha tido um acidente grave», admitiu Cadete. «Se vencermos o Benfica no sábado, vamos todos visitá-lo ao hospital juntos, sem dúvida», garantiu o jogador, que teria nova desilusão no fim-de-semana.

    Na Luz, Cadete ainda passeou a camisola nove de Cherbakov antes do pontapé de saída, em homenagem ao companheiro, mas a exibição da equipa nunca chegou a vingar o acidente do ucraniano. O substituto de Cherba, Capucho, acabaria expulso. Luís Figo ainda marcou o primeiro, colocou o Sporting na frente e celebrou com gritos de alívio, depois de uma semana dura para a equipa, mas a vitória acabou por fugir na segunda parte, com dois golos encarnados que ditaram a reviravolta e um Benfica isolado em primeiro lugar.

    O inevitável «o que poderia ter sido»

    «Tinha a certeza na altura e tenho agora também: o Cherbakov ia ser um grande jogador», recordou mais tarde Iordanov. 

    «Era um talento impressionante e, se não tivesse tido aquele acidente estúpido, então iria ser um grande jogador europeu e mundial, disso tenho a certeza absoluta. Era um jogador completo, tinha tudo. Talvez fosse jogar pouco tempo na equipa do Sporting porque seria vendido a um clube maior».

    Um jogador que pendura as botas aos 22 anos não é, certamente, aquele que tem mais histórias para contar. Uma carreira tão curta não deixa escrever livros nem fazer filmes, mas basta ver o que Cherbakov alcançou nos poucos anos como futebolista profissional para deixar correr a imaginação e idealizar o futuro que poderia ter tido.

    Em 1989, com 17 anos, estreou-se pelo Shakhtar. Aos 18, quando já tinha 24 jogos e cinco golos no principal campeonato soviético, foi campeão europeu de sub-19 pela URSS, derrotando os juniores portugueses na final da prova. Seguiu-se mais um ano de grande nível na equipa de Donetsk, que lhe garantiu o lugar na seleção sub-20, que disputaria o Campeonato do Mundo em 1991.

    Cherbakov chegava então pela primeira vez a Portugal, onde se disputou a prova. Tinha 19 anos e era um dos jogadores em forma de uma equipa que estava entre os favoritos à conquista da competição. A URSS ficou pelo terceiro lugar, enquanto que a glória acabou por ser mesmo lusa, com uma equipa portuguesa recheada de futuros colegas de Cherbakov acabou por levantar o troféu. O ucraniano, ainda assim, não saiu de mãos a abanar. Com ele levou o título de melhor marcador do Mundial, uma pequena amostra do que era capaz.

    Jogou mais um ano em 'casa', naquela que foi a primeira temporada da Liga Ucraniana, antes de voltar a Portugal. Chegou para defender as cores do Sporting, e foi precisamente isso que fez, até ao dia do trágico acidente que o colocou numa cadeira de rodas.

    Não voltou mais a haver futebol nos pés do jovem Cherba. O Sporting organizou uma partida de caridade, em homenagem ao ucraniano, em que a receita de bilheteira serviu para cobrir os custos de Sergey durante dois anos. Com o contrato com o Sporting terminado, Cherbakov viajou para Moscovo, onde continuou o seu trabalho de reabilitação.

    Manteve-se ligado ao desporto, como presidente da Federação de Paraolímpicos da Rússia e depois como olheiro no Lokomotiv de Moscovo, mas continua a ser impossível olhar para Cherbakov e não ver aquele jovem que entusiasmou e deu a esperança de que estava uma grande estrela em ascensão no espaço pós-soviético, em vez de um cartaz humano para a responsabilidade ao volante.

    Se ao menos tivesse chamado um táxi...

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