placardpt
Biografia
Jogadores

Filippo Inzaghi: Super Pippo

Texto por Ricardo Lestre
l0
E0

No dicionário do futebol, o significado de «oportunismo» é descrito como Pippo Inzaghi. Na lista dos marginais contra as regras do fora-de-jogo, em primeiro lugar aparece o nome de Pippo Inzaghi. Na selva futebolística, a pequena área era o habitat e a baliza a presa favorita de Pippo Inzaghi. Para Mourinho, o AC Milan «até podia jogar com 10 jogadores ofensivos, desde que Pippo Inzaghi não jogasse». E as defesas rezavam aos seres divinos para que tal acontecesse.

qNão é o Inzaghi que está apaixonado pelos golos; os golos é que estão apaixonados por ele
Emiliano Mondonico
Esta história não é a de um jogador consensual nem abençoado com um talento fora do comum. Não tinha uma técnica evoluída, não era rápido ou vistoso, mas era um soldado que cumpria exemplarmente a sua missão. Fazendo a analogia com as forças armadas, Pippo Inzaghi era um sniper: letal. À mínima brecha, ao mínimo erro, ao mínimo espaço... golo. De cabeça, de pé direito ou esquerdo. Com a canela, com o joelho, com o ombro. Sempre no sítio certo, sempre no limbo da posição (ir)regular.

Golos seguidos de uma adrenalina incomum. Festejos loucos como se do último balançar das redes se tratasse. A imagem de um autêntico predador durante largos anos.

Diplomado e eterno apaixonado por futebol

Natural de San Nicolo, uma vila perto de Piacenza, Pippo nasceu a 9 de agosto de 1973 no seio de um família humilde governada por Marina e Giancarlo Inzaghi, trabalhador na indústria têxtil. Três anos mais tarde, Marina deu à luz outro menino de seu nome Simone.

Pippo e Simone sempre foram meninos da mamã. Fosse «tortellini ou canelloni», a comida caseira era sempre bem-vinda, tal como uma clássica bola de futebol.

Irmãos coincidiram na seleção e defrontaram-se em clubes diferentes @Getty / Claudio Villa
«Ele apenas come massa ou arroz com um pouco de molho quando se quer cuidar. Depois, um pouco de carne fumada todos os dias. E biscoitos de bebé na sobremesa. Para fazê-lo feliz levo-lhe um ovo do aviário da avó», revelou Giancarlo, o pai Inzaghi, sobre a dieta do mais velho anos mais tarde. A mãe, aquando da presença de ambos na seleção, passou a ser uma autêntica estrela de Hollywood, mas Giancarlo roubou o protagonismo com uma confissão tão íntima que colocava Gennaro Gattuso com os cabelos em pé: «Ficava enojado por vê-lo a comer as mesmas coisas durante 30 anos».

Marina preferia que fossem doutores, o destino ditou que ambos se graduassem em contabilidade. No meio estava o futebol e os irmão Inzaghi só tinham olhos para a bola.

«Em miúdo, eu era ativo, astuto e determinado. E louco por futebol, claro», disse Pippo à FourFourTwo. «Nasci com uma bola na minha cabeça. Estudei apenas para orgulhar a minha mãe e o meu pai, mas sempre soube que, com alguma sorte, seria um futebolista - um ponta-de-lança, para ser preciso». 

Em cheio. Pippo já tinha tudo delineado na cabeça. Um rapaz decidido e ciente das suas prioridades. Nas peladinhas com os colegas, era sempre requisitado porque marcava muitos golos, mas Marina insistia: «Só se o Simone também jogar».

Pippo Inzaghi
Atalanta
Total
33 Jogos  2864 Minutos
24   4   0   12x
ver mais �
Simone, por sua vez, tinha uma enorme aptidão para a liderança, tanto que no clube da terra chegou a capitanear o irmão mais velho. Os dois rapazes de San Nicolo tinham queda. Cresceram com uma fisionomia quase idêntica. Eram altos, esguios e com cabelos escuros. Enveredaram pelo mesmo caminho e conseguiram concretizar o sonho de um dia serem futebolistas profissionais.

Os anos passaram e Simone construiu uma carreira de respeito (sobretudo na Lazio), apesar de ter demorado mais a dar o salto. Parecia, a bem da verdade, estar sempre um passo atrás de Pippo, esse miúdo com um dom especial.

Lutar e marcar para chegar ao topo

Tudo começou no Piacenza e a escalada até aos seniores não tardou. Em 1991, aos 18 anos já fazia parte, de forma temporária, da primeira equipa que acabou por perder a batalha contra a a promoção para a Serie A. Foram três jogos apenas, mas estavam dados os primeiros pontapés.

qEle pode ser muito bom treinador porque tem um grande entusiasmo - ama futebol. Queria sempre jogar e quando o deixava no banco ficava chateado comigo durante dias. Não podíamos falar um com o outro durante esse período, parecíamos dois estranhos
Carlo Ancelotti
Face à evidente falta de oportunidades, seguiu viagem para o AlbinoLeffe, do terceiro escalão. Começou por ser suplente, mas assim que a máquina engrenou, deixou saudades. Foram 13 golos em 21 jogos insuficientes, ainda assim, para conquistar um lugar em Piacenza, cidade que rejubilava com a subida de divisão. Aproveitou, por isso, o Hellas Verona, da Serie B. Nova cedência, novo sucesso especialmente acarinhado pela massa adepta. Não subiu, mas ficou no coração dos gialloblù e no radar do clube de formação.

Em 1994/95, surgiu finalmente a oportunidade para Pippo no Piacenza. Antes disso havia vencido o Europeu sub-21 - final ganha a Portugal - ao lado de figuras como Christian Panucci, Fabio Cannavaro e Francesco Toldo e parecia cada vez mais preparado. Na época de afirmação, Inzaghi marcou 15 golos no campeonato, cinco atrás do melhor marcador, Giovanni Pisano, e festejou o título de campeão.

Irrequieto, eterno insaciado e com ligação direta às balizas adversárias, Pippo estreou-se no principal escalão a menos de 100 quilómetros de distância porque um Parma bem saudável financeiramente não duvidou em desembolsar 3 milhões de euros para adquirir o seu passe no mercado de transferências. De Stoichkov a Baggio, o plantel estava apetrechado de craques e, mesmo tendo-se intrometido entre os titulares, a produção foi desapontante, levando a que, numa questão de meses, fosse apontado à saída.

Pippo não queria estagnar e forçou uma mudança para a Atalanta que, por um montante baixo, conseguiu uma autêntica pechincha. Com isso, calou os críticos que decidiram aparecer: 24 golos, Capocannoniere [melhor marcador] de 1996/97 e Jovem Jogador do Ano à frente de avançados de alto gabarito. Um amor pelos golos que estava mais forte do que nunca: «Não é o Inzaghi que está apaixonado pelos golos; os golos é que estão apaixonados por ele. Ele nasceu para jogar futebol e pode ter sucesso também como treinador (...)», disse Emiliano Mondico, seu treinador na altura.

Mal-amado no futebol, amado em Milão

Os números vieram a calhar para a Juventus. A última peça do puzzle do ataque estava identificada, mas as características e o estilo de jogo causavam apreensão, uma vez que, a completar o trio, estavam virtuosos como Del Piero e Zinedine Zidane. Ao longo de três épocas, marcou 89 golos em 165 jogos, conquistou títulos e foi vital para o domínio doméstico e europeu e passou a estar nas bocas dos analistas como um dos avançados mais prolíficos do mundo.

Fez muitos golos ao lado de Del Piero @Getty / Claudio Villa/ Grazia Neri
Pippo Inzaghi tinha, entre outras, a capacidade de provocar uma espécie de crise existencial aos mais críticos: o volume aumentava e diminuía sempre que duvidavam das suas qualidades. Uma e outra vez, e outra, e outra...

Um dos assuntos mais debatidos era o egoísmo. A imprensa italiana, baseando-se nas reações de Del Piero durante os encontros - levantar os braços em desespero para receber um passe -, começou a suscitar questões sobre uma eventual má relação entre ambos. 

«Gostaria de dizer que o Alessandro del Piero é meu amigo, uma pessoa que admiro muito. Muitos jornalistas escreveram que não somos amigos - isso é mentira», disse, anos depois, à FFT. Quanto às acusações de ganância... Não havia muito a fazer.

«A minha teimosia é famosa em Itália. A verdade é que eu vivo para marcar golos... Mas tenho de confessar que por vezes fui demasiado egoísta». Típico de um homem-golo.

As dificuldades técnicas eram evidentes. Não era muito participativo no jogo coletivo e o domínio de bola era defeituoso em muitas ocasiões. Era pouco ortodoxo para um ponta-de-lança, posição tão nobre e ao alcance dos maiores predestinados. Pippo não era um predestinado. Era precisamente o contrário. E tinha perfeita noção das suas debilidades.

O seu jeito desajeitado causava apreensão nas defesas. Medo. Pânico, até. Parar Inzaghi era uma tarefa tão árdua como a de impedir um habilidoso. Nem os melhores dos melhores estavam seguros porque o que tinham pela frente mais parecia um constante desafio à lógica: métodos pouco convencionais ou bonitos e, ao mesmo tempo, eficazes. Muito eficazes.

Missão cumprida em Turim @Getty /
Um caso de estudo estudado em Milão. No verão de 2001, 30 milhões de euros do AC Milan - mais o passe do jovem Cristian Zenoni - estiveram na génese de uma mudança bombástica com justificação simples: a chegada de David Trezeguet a Turim.

História... para ambos os lados. Para o universo rossonero foi como a queda de um meteorito. Enquanto Zenoni mostrava dificuldades para se cimentar como bianconero, no lado vermelho e preto da Cidade da Moda nascia uma parceria de sonho após a saída de Bierhoff. Com Shevchenko, a simbiose era perfeita: irreverência e técnica com oportunismo e (mais) veia goleadora.

Começou, assim, uma maravilhosa epopeia de 11 anos. Muitos altos, muitos baixos e lesões graves que atrapalharam temporadas. E o ponto mais contraditório é que Inzaghi, já Super Pippo, nunca acabou por ser um indiscutível, mesmo durante os anos dourados de Carlo Ancelotti. Jogou muitos jogos, inclusive ao lado de Sheva, mas era relegado quase sempre para segundo plano. Um plano que não era seu, definitivamente. Sempre que ficava no banco, segundo Carletto, «o seu olhar era assustador».

Mas todas essas épocas serviram para aprimorar um instinto incomum no futebol. Uma arte pouco valorizada. Aquele sexto sentido típico de um predador tinha uma razão de ser. E não era uma questão de sorte.

Lenda em Milão @AC Milan
«O Inzaghi conseguia vídeos dos adversários e estudava-os durante dias a fio. Sabia tudo sobre eles. Era obcecado. Muitos pensavam que o Pippo era apenas sortudo, mas nunca teve a ver com sorte - era tudo devido a skill e preparação. Ele ficava enervado com os extremos se eles não cruzassem bem nos treinos», revelou Gennaro Gattuso sobre o seu companheiro de muitas lutas.

Ler, anotar e estudar o rival... Ser e pensar como um defesa: onde estou, como vou atacar a bola e como evitar o avançado de chegar a ela? Inzaghi tinha resposta para todas as questões porque as contornava. Um erro, um único erro cometido era fatal. Fatal como uma seta envenenada no coração ou uma bala disparada por um sniper.

Entre golos decisivos em fases adiantadas, frente a Lyon, Bayern Munique ou Estrela Vermelha, e em finais, para sempre na memória dos rossoneri ficou o bis na finalíssima da Liga dos Campeões em 2007, frente ao Liverpool, dois anos depois do Milagre de Istambul. E houve uma história muito curiosa na véspera que, no livro 'Liderança Tranquila' de Carlo Ancelotti, Adriano Galliani, braço direito do então presidente Silvio Berlusconi, fez questão de a recordar.

qAté pode jogar com 10 [jogadores ofensivos] desde que Inzaghi não jogue. Se jogar, será um pouco mais difícil
José Mourinho, antes de um Real Madrid x AC Milan [2010]
«Fui ver o último treino... Pippo Inzaghi, o nosso avançado, estava completamente fora de si - não conseguia dominar uma bola. E tínhamos outro avançado forte, o Alberto Gilardino... Quando estava ao lado do Ancelotti a ver o Inzaghi a falhar todas as bolas, disse-lhe: 'Porque é que não deixamos o Gilardino jogar? Parece estar em muito melhor forma do que o Inzaghi'. O Carlo disse simplesmente: 'O Inzaghi é um animal estranho. Talvez amanhã seja a noite dele'». Ancelotti tinha a sua lógica baseada num feeling. E foi mesmo a noite de Super Pippo...

Dois golos plenos de oportunismo e um deles em que simplesmente se atravessou à frente de um livre de Andrea Pirlo e traiu Pepe Reina. Tudo propositado!

«Ele disse-me depois: 'Depois de trinta anos no futebol, desenvolvi um instinto e aprendi a confiar nele. Gilardino está em melhor forma, mas o Pippo é o Pippo'».

Mais do que estratégia, tática e detalhismos, para Pippo o importante eram os golos: e não é esse o fim do futebol?

Campeão do Mundo... em 30 minutos

As críticas vindas de cima nunca pararam e algumas foram proferidas por vários ilustres da história do desporto. Era «um dos jogadores mais sortudos do mundo» cujo fenómeno ninguém compreendia, a antítese do modelo ideal de avançado.

«Na verdade, ele não consegue jogar futebol, de todo. Está sempre na posição certa», disse Cruyff. «Ele deve ter nascido em fora-de-jogo», brincou Sir Alex Ferguson. «Ainda hoje não consigo explicar como é que ele marcou tantos golos. Não conseguia driblar, chutar fora da grande área. Tinha metade do talento de jogadores que tiveram metade do seu sucesso», apontou Vincenzo Montella. «No AC Milan fazíamos um meínho todos os dias, mas o Inzaghi não participava porque ele estava sempre no meio a correr atrás da bola», revelou Jaap Stam, o temível Jaap Stam, duro de rins, que o classificou de «mergulhador batoteiro» e que admitiu: «Nunca tive medo dos avançados que marquei. Entrava para o campo e olhava para eles nos olhos. Talvez o único a fazer o mesmo tenha sido Pippo Inzaghi. Olhava de igual forma para mim, sem rodeios (...)». 

Ao todo, em 21 anos de carreira, foram 317 golos marcados em todas as provas. Foi Campeão do Mundo em 2006 a jogar 30 minutos contra a Rep. Checa, a quem marcou o único golo na prova. Esteve, também, no Mundial 98', 2002 e no Euro 2000. Para além disso, conquistou três Scudettos, um Mundial de Clubes, duas Ligas dos Campeões... e muito mais.

«Golos são como uma boa droga. Nunca fico satisfeito». Basta, por exemplo, recuar até 2002/03, para um duelo sem nada em jogo contra o Torino. Marcou um hat-trick, incluindo o sexto e último golo. Depois, deu-se o festejo. O festejo de Inzaghi. Os jogadores do Torino ficaram furiosos com aquela correria louca e gerou-se uma enorme confusão, levando a que tivesse que pedir perdão no fim. Para si, todos os golos eram «como uma experiência mágica».

E em boa verdade eram. Sempre no sítio certo e com um timing perfeito como se regulado por um relógio. Afinal, não é uma arte? Encontrar espaço onde ele não existe, pensar e executar mais rápido que o marcador direto, desdobrar defesas, estender guarda-redes no chão, viver na corda bamba do fora-de-jogo. E mesmo já trintão fazia tremer os oponentes.

Pippo Inzaghi
Itália
Total
57 Jogos  3520 Minutos
25   0   0   02x
ver mais �
Em Milão, viu passar Shevchenko, Ricardo Oliveira, Ronaldo, Alexandre Pato, Borriello, Huntelaar, Gilardino e trabalhou no limite para, mesmo partilhando balneário com alguns dos maiores nomes do futebol mundial, se tornar uma lenda. Fê-lo, também, para ser um dos melhores marcadores da história do clube (130), da Liga dos Campeões (70) e da seleção de Itália (25), onde, no primeiro treino, chocou os colegas pela «capacidade técnica horrível».

«Se não nasceste um Ronaldo ou um Kaká podes-te tornar um grande jogador pelo comprometimento, serenidade, perseverança e amor pelo que fazes». Um ícone.

D

Fotografias(25)

Pippo Inzaghi (ITA)
Pippo Inzaghi (ITA)
Comentários (0)
Gostaria de comentar? Basta registar-se!
motivo:
EAinda não foram registados comentários...
Tópicos Relacionados