Itália sempre foi uma nação rica. Desde os seus primórdios brindou a humanidade com alguns dos maiores génios da história. Berço da latinidade e da civilização ocidental, a bota da Europa – ou aqueles que a pensaram e criaram – influenciou profundamente o desenvolvimento cultural e social do continente.
O futebol… Bem, esse campo tem muitos exemplos e alguns extraordinários. Da baliza ao ataque, ícones foram passando a tocha de geração em geração. Tradição típica do calcio, famoso pela paixão, longevidade e lealdade. Mas ninguém, seja nerazzurro, rossonero ou bianconero, ousa questionar a história de um pequeno jogador de Flero, personificado num enorme génio, que, usando os seus pés e o cérebro, ganhou o direito de estar entre os grandes: Andrea Pirlo.
Nem todos os craques tiveram (e têm) uma história de vida comovente, marcada pela superação face às dificuldades sofridas desde o berço. Vários casos, espalhados pelo mundo fora, de verdadeiros homens que se viram entre a espada e a parede e que, por isso, foram obrigados a procurar a emancipação mais cedo do que o esperado.
Pirlo nasceu a 19 de maio de 1979 em Flero, norte de Brescia, no seio de uma família abastada. Irmão de Ivan e Silvia e filho de Livia Gatta e Luigi Pirlo, empresário de sucesso que mais tarde fundou uma empresa do setor metalúrgico na cidade. A narrativa até podia terminar aqui, mas a relação com o futebol foi amor à primeira vista...
A ligação era de tal forma forte que, juntamente com o seu carácter, mais parecia um escudo impossível de ser penetrado. Das ruas de Flero às longas horas de jogo com o irmão, a mentalidade ganhadora e o talento já se notavam à distância. Até para qualquer estranho.
«Ele jogava na areia com o irmão Ivan e os seus amigos, que eram dois anos mais velhos. As pessoas paravam para observá-lo e diziam: 'Este miúdo é fantástico'. Ele só pensava no futebol. Era um rapaz calmo, silencioso, mas não introvertido. Nunca andou mal acompanhado, em parte porque ficava em casa no pátio a jogar com o Ivan até à hora de jantar. Havia uma pequena rivalidade entre eles, mas nada de ciúmes», recordou Livia à FourFour Two.
Desde os primeiros pontapés em Flero, à famosa Dana Cup '92, destinada aos mais pequenos, pelos Voluntas Brescia, Pirlo liderava e expressava-se com os pés. Mas, acima de tudo, tinha uma mentalidade de campeão.
«Os balneários eram pequenos e, de modo a não criar filas, organizei a marcação de penáltis no final dos treinos. Quem não marcava, saía, até que ficasse apenas um jogador. Bom, esse era sempre ele», revelou o já falecido Roberto Clerici, seu treinador na altura, ao Corriere della Sera.«Ele tinha noção das qualidades dele. Às vezes deslumbrava-se demasiado com a sua própria capacidade de passe e tinha de lhe dar umas palmadas no rabo - no bom sentido, obviamente! Nunca fez muitas faltas porque ele queria jogar futebol e não queria impedir os outros de jogarem, também. Fazia as coisas mais difíceis sem cometer um único erro. Apesar da família dele estar confortável, financeiramente falando, ele nunca necessitou de motivação extra e isso é muito importante», acrescentou. Na verdade, Pirlo nunca gostou de abordar esse tema.
Essa confiança sempre fez parte da sua personalidade. Pegava na bola e iniciava uma guerra contra o mundo que nem todos compreendiam. Já como jogador do Brescia, no escalão júnior, muitos interpretavam as suas atitudes como arrogantes, tanto que alguns colegas recusavam mesmo passar-lhe a bola durante o jogo.
Curioso que o destino até podia ter sido Bérgamo e a Atalanta. Cesare Prandelli nunca mais esqueceu essa transferência falhada pelo presidente temer um «incidente diplomático»: «Ele deixou-me sem palavras; nunca tinha visto nada assim. Tinha a impressão que toda a gente estava a observá-lo a ele apenas e a pensar a mesma coisa: 'Este é o tal. É o novo talento'». Mas o mesmo destino viria a juntá-los na seleção, anos mais tarde.
Quem não se importou muito com essa arrogância e ousadia foi Mircea Lucescu, treinador da equipa principal do Brescia. Aliás, virou fã de um puro médio-ofensivo, ou trequartista à boa moda italiana, que em pouco mais de um ano já colocava a cabeça do plantel sénior em água nos treinos: fintar um e outro, voltar atrás e repetir a dose. «Eram 10 tentativas de homicídio» em cada sessão, brincou Pirlo.
Em maio de 1995, com uns tenros 16 anos, e sem barba, o pequeno médio, que muitos diziam não sentir emoções, estreou-se como sénior e bateu logo um recorde na Serie A, despertando a atenção do mundo. O jogo era a feijões, até porque Brescia e Reggiana já tinham descido de divisão matematicamente, mas Pirlo teve a oportunidade da sua vida.
Mais tarde, aos 17/18, conquistou o título da Serie B (segundo escalão), fazendo-o como um dos regulares no onze e, acima de tudo, com classe nos relvados, tanto que o presidente do Brescia, Gino Corioni não hesitou em agarrar-se ao ouro que tinha em mãos: «Ele vai ser o nosso símbolo. Vou segurá-lo até quando conseguir se continuarmos na Serie A». No final da época, o Brescia caiu. E o Inter - de Lucescu - não olhou a meios.
Como nerazzurri, partilhando balneário com craques como Ronaldo, Baggio e Djorkaeff viveu a «fase mais difícil» da sua carreira. Treinadores saíram e entraram numa espécie de roleta russa que o próprio não soube lidar - Lucescu e Simoni ainda deram várias oportunidades -, mesmo com dois empréstimos frutíferos a Reggiana e Brescia.
O primeiro proporcionou a braçadeira de capitão na seleção sub-21 e num autêntico recital no Euro 2000 da categoria: melhor marcador, melhor jogador e um troféu no palmarés que motivou uma chamada de volta de Marcelo Lippi para o Giuseppe Meazza. Mas o segundo...
Lippi acabou por sair devido aos maus resultados e Marco Tardelli, lenda italiana que havia liderado a talentosa geração sub-21 à glória meses antes, assumiu o cargo. Mas, desta vez, a relação entre ambos azedou e a necessidade de voltar a casa falou mais alto, ainda que numa altura tardia da época. Obra minuciosa do destino.
Faltavam pouco mais de 10 jogos para o fim do campeonato. Pirlo voltou a Brescia, voltou a partilhar balneário com Roberto Baggio e conheceu um Carletto - não o de San Siro - absolutamente fulcral para o resto da sua carreira.
Após a chegada do então jogador do Internazionale, o técnico Carlos Mazzone viu-se obrigado a resolver um quebra-cabeças rapidamente: como encaixar Pirlo sem prejudicar a dupla Baggio-Hübner na frente? Recuá-lo uns metros no terreno, algo que, juntamente com as suas características, era como ver um maestro liderar uma orquestra, à imagem de um quarterback no futebol americano.
De trequartista para regista, ou, como os ingleses apelidam para deep-lying playmaker, Pirlo experienciou uma das mais bonitas metaformoses do futebol com 20 anos.«Como trequartista, a falta de espaço podia bloquear a sua qualidade técnica, mas, como regista, essa foi aperfeiçoada», disse Mazzone anos depois. «Aqui, Pirlo fazia a bola cantar. E, apesar de ser novo, ele tinha a noção perfeita para onde ele queria ir. Falei com a equipa sobre isso também e disse-lhes que a partir daquele momento teríamos que ter fé no Pirlo, que era o nosso organizador de jogo. Ele não precisou de ser motivado. Apenas contei-lhe histórias de outras equipas minhas que tinham jogado daquela forma», revelou.
Para definir Pirlo nessa posição e, sobretudo, o jogo com Baggio em simultâneo, basta observar o golo frente à Juventus a 1 de abril: «Esse foi o dia em que Pirlo, o regista, floresceu», assinalou Mazzone, para descrever tamanha obra de arte. Começava a era do Pirlo role, a posição de regista que mais ninguém viria a desempenhar.
Uma espécie de «basta!» e cerca de 17 milhões de euros - e Dražen Brnčić na direção oposta - levaram Andrea Pirlo para o AC Milan, numa janela de transferências em que outras trocas entre os dois rivais causaram polémica.
Tal como Mazzone, outro Carletto viria a ser fundamental para colocar o Pirlo role nos píncaros. Para todo o mundo observar e desfrutar, ao mesmo tempo que o Pirlo trequartista desaparecia para sempre.
«A ideia veio do Carlo Ancelotti e acho que fui um dos primeiros jogadores a assumir esse papel em campo. Não sei se seria correto dizer que fui pioneiro, mas, do ponto de vista tático, é óbvio que jogar nessa posição permite-me definir o tempo de toda a equipa, ditar o ritmo do jogo. Sinto-me como em casa, nessa posição. E é verdade que, mesmo quando estava a começar [como número 10], tinha a tendência de procurar a profundidade para ficar com a bola. Talvez essa seja a razão pela qual me sinto tão confortável nesta posição», reconheceu, posteriormente, à FIFA.
Na mágica árvore de natal típica de Ancelotti - 4x3x2x1 ou 4x3x1x2 -, Pirlo era a raíz. O coração. O cérebro. Via o que mais ninguém enxergava e controlava a sala de operações como e quando queria, pelo que recebeu a alcunha de «metrónomo» pela forma como pautava o ritmo de jogo da equipa.
Foram muitos os sabores e o palmarés não mente: quase 10 títulos para todos os gostos e feitios com outras tantas distinções individuais. Mas os dissabores também apareceram e em força. O «Milagre de Istambul», em 2005, foi motivo para uma reflexão profunda.
«Depois de Istambul, nada fazia sentido. A final da Liga dos Campeões de 2004/05 simplesmente sufocou-me. Inventámos uma doença com sintomas múltiplos: 'o síndrome de Istambul'. Não me sentia jogador e isso já era bastante arrasador. Mas pior do que isso, nem homem me sentia», revelou, na sua autobiografia. A carreira chegou mesmo a estar em causa.O destino, como provou anteriormente, é tramado e preparou a vingança, em 2007: a «Vingança do Diabo», segundo os adeptos milaneses. A glória na Liga dos Campeões voltava a ser atingida.
Com a maglia azzurra [camisola azul, da seleção italiana], a estaleca demorou a aparecer. Mesmo destacando-se nos escalões inferiores, os selecionadores teimavam em não elevar o seu estatuto.
O céu, esse, foi atingido em 2006. E era bem azul! Com Marcello Lippi no comando e inserido num conjunto talentoso, mas muito unido e lutador, Pirlo partiu a loiça toda.
«Eu não sinto pressão. Não penso nela. Passei a tarde de domingo, 9 de julho de 2006, em Berlim, a dormir e a jogar playstation. À noite, saí e fui campeão do mundo», disse, numa das suas tiradas mais famosas de sempre.
Seguiram-se algumas desilusões: Europeu 2008, com Donadoni e, em especial, o Mundial 2010, novamente com Lippi. Anos depois, o futebol juntou, por fim, Cesare Prandelli e Pirlo.
Juntamente com uma experiente squadra, no Europeu 2012, o ouro esteve a uma curta distância, não fosse a implacável Espanha de Del Bosque derrubar tudo o que aparecesse pela frente. Porém, desse Euro, todos se lembram de um momento de génio nos quartos-de-final.
«Vi que Hart estava muito motivado, no centro. Queria meter-lhe um pouco de pressão. Pensei que o mais fácil para isso era marcar o penálti como o marquei», disse Pirlo, no final de um encontro decidido nas grandes penalidades, frente à Inglaterra.
«Em 1992, tinha 13 anos, e vai marcar um penálti na Dana Cup, da Dinamarca. Andrea leva a bola e aproxima-se do círculo exatamente com o mesmo rosto da outra noite em Kiev. Não se ouve uma mosca, vai em direção do guarda-redes com a bola debaixo do braço. Acaricia-a. Assume a corrida. Desacelera. Schhhhf. Bola leve, leve. Golo. Pela primeira vez, fiquei sem palavras». Clerici teve um déjà vu nessa noite de 24 de junho de 2012.
Sem mais conquistas e climaxes, Pirlo colocou um ponto final na seleção, em 2014, para dar o lugar aos mais jovens. Antes disso, claro, ainda marcou um golaço de livre direto, na Taça das Confederações, em 2013, para assinalar a 100ª internacionalização. Bem ao seu estilo.
De preto e vermelho, em Milão, foram praticamente 10 anos. Quase todos maravilhosos. E chegaram ao fim, em 2010/11, quando ninguém esperava. Dedos foram apontados a Berlusconi e Galliani por não quererem renovar com um jogador já trintão e a verdade, que chegou a estar escondida, veio à tona pela voz do próprio.
San Siro disse adeus a uma lenda e, a uns bons quilómetros de distância, uma velha e astuta senhora deu as boas-vindas. Aos 32 anos, Pirlo assinou um contrato longo pela Juventus, naquela que foi uma cartada sublime dos responsáveis bianconeros que Buffon nomeou de «contratação do século».
Em Turim, liderado por Antonio Conte, técnico que passou a admirar, ajudou a construir uma hegemonia impressionante no futebol do país. Já numa versão mais cool, de barba e cabelos grandes, mas sempre com a mesma classe. A comandar deste trás, como um verdadeiro líder. Aos 33 anos, calou os mais desconfiados pelas lesões sofridas no ano anterior com números impressionantes: 36 jogos, três golos e 13 assistências.
«Quando me apaixonei pelo vinho? Desde novo. Com o meu irmão Ivan, divertíamo-nos a ir às adegas e examinar as etiquetas, a escolher o melhor. Sempre gostei de um bom copo de vinho ao jantar. Se nos estágios também? Na véspera dos jogos era permitido um copo de vinho tinto ao jantar. E eu nunca deixei de o beber», disse ao BresciaOgggi.
Foram muitos jogos nas pernas, muitos passes efetuados, vários campeonatos, muitas Taças e uma final da Liga dos Campeões em 2015 que o deixou lavado em lágrimas. Nesse mesmo ano, Pirlo colocou um ponto final na ligação com o futebol italiano: 20 anos de pura magia e quase 500 jogos na Serie A que chegavam ao fim. Faltava um último desafio, antes de pendurar as botas.
«Nunca se pode dizer nunca. Quando for mais velho, talvez faça uma escolha como a do Del Piero [foi da Juventus para o Sidney FC]. No passado, estive perto de ir para um campeonato estrangeiro e sempre pensei que pode ser uma experiência positiva», havia reforçado, anos antes, ao Corriere dello Sport. Os papéis da pré-reforma estavam entregues com uma transferência para o New York City, filial americana do Manchester City na MLS.
«Com problemas físicos todos os dias, não podemos treinar como queremos, porque temos sempre alguma coisa. Na minha idade, chega. Não é possível jogar até aos 50. Farei outra coisa», admitiu, meses antes de terminar com a carreira, em 2017. Aberta, agora, está a possibilidade de voltar de outro lado, de fato e gravata.
Nunca houve, nem nunca haverá um jogador tão único como Andrea Pirlo. O jogador que rejeitou Barcelona e Chelsea por «ser demasiado velho»; que aprimorou a técnica de livres diretos com um «pensamento Eureka na casa de banho» ao estudar, minuciosamente, Juninho Pernambucano; que classificou o aquecimento antes dos jogos como «masturbação para os preparadores físicos» e que se deu ao luxo de «jogar vários jogos apenas com o pé esquerdo» por culpa de uma lesão na perna dominante.
Nasceu com tudo, mas encontrou, no futebol, um poço de superação e motivação. Levou a essência do bel paese [belo país] para o relvado, encarnando as mentes mais ilustres da história italiana. Os mais chegados apelidaram-no de L'Architetto [o arquiteto], mas também foi maestro, Mozart e professor. Acima de tudo, foi um Botticelli, um Caravaggio, um Michelangelo que pintou com os pés. O último artista numa era de atletas, como no Goal.com tão bem o definiram.