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    Leicester City: os obreiros do conto de fadas

    Texto por Ricardo Miguel Gonçalves
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    Poucas são as grandes histórias que começam numa casa de apostas, seja no mundo do futebol ou qualquer outro, mas o Leicester City, campeão da Premier League em 2016, é certamente uma delas. A 5 mil euros para cada euro apostado no início da época, a ideia de um Leicester campeão era dez vezes mais improvável que a descoberta do monstro de Loch Ness, ou 2,5 vezes mais improvável que a eleição de Kim Kardashian para presidente dos Estados Unidos da América. Mesmo no futebol, a inesperada – e para os portugueses dolorosa – caminhada da Grécia até à conquista do Euro 2004 rendeu aos apostadores 150 euros por cada euro, significando que era um acontecimento 33 vezes mais provável do que o campeão inglês de 2015/16 ser o Leicester City.

    Para que a história seja compreendida totalmente é preciso contá-la desde o início, ou talvez até um pouco antes. Depois da conquista do Championship em 2014 e consequente promoção, o Leicester City não encontrou sucesso imediato na Premier League, pelo contrário. Na temporada de 14/15 a queda dos foxes de volta ao segundo escalão parecia já garantida, no início de abril, a oito jornadas do final, o Leicester estava na última posição da tabela, com apenas quatro vitórias nos trinta encontros disputados, mas foi aí que começou o conto de fadas: sete vitórias e um empate nos jogos finais garantiram a manutenção e deram um primeiro aviso ao mundo sobre as capacidades da equipa.

    O futebol no início de um sonho

    Apesar da escapada milagrosa à despromoção, Nigel Pearson não impressionou e foi demitido no final da temporada. Para o seu lugar surgiu Claudio Ranieri, experiente treinador italiano que vinha de uma má experiência com a seleção grega, em que foi despedido e viu o presidente da federação pedir desculpa pela sua «infeliz contratação» para treinador. A escolha do Leicester pareceu, no mínimo, estranha.

    Ranieri chegou e rapidamente implementou o seu estilo. 4-4-2, compacto, com as ideias de organização e ética de trabalho, com o objetivo de garantir equilíbrio numa equipa limitada.

    O foco de Ranieri estava principalmente na solidez defensiva. Para proteger os defesas centrais Morgan e Huth, que, embora imponentes no ar, eram algo lentos, os foxes defendiam com duas linhas de quatro jogadores muito próximas. O meio-campo defendia recuado, tanto a dupla Kanté e Drinkwater como os extremos, mas o seu principal trabalho era partir para o contra-ataque após a recuperação de bola. Tanto o extremo Albrighton como Jamie Vardy eram dos jogadores mais velozes da liga, e foi a partir das suas corridas que o Leicester chegou à vantagem inúmeras vezes. Como o próprio Ranieri disse:

    «A minha equipa é como a força aérea – woosh, woosh! – Adoro!»

    No início do campeonato, o que mais se destacou na maneira de jogar do Leicester foi a pressão constante, especialmente dos avançados. O recém-contratado Shinji Okazaki, embora não fosse o melhor goleador, mostrou serviço desde o primeiro dia. O japonês marcou um golo decisivo para garantir a segunda vitória em duas jornadas, mas o que lhe fez ganhar o carinho dos adeptos foi a garra com que pressionava os adversários, mesmo de posições recuadas. Fez com Jamie Vardy uma das duplas mais improváveis da história do futebol inglês.

    11 jogos abastecidos por Red Bull

    Um cocktail de Red Bull, vinho e café esteve muito provavelmente na origem de Jamie Vardy, um ícone na epopeia do Leicester. Maior que a sua loucura só mesmo a apetência para golos, e mais incrível que a época que viveu em 2015/16 só… Todas as outras. Desde ter que abandonar jogos mais cedo por estar em liberdade condicional após lutar num bar, até ser perseguido em campo pelos adeptos adversários depois uma celebração provocadora, o avançado inglês viveu uma carreira surreal.

    @Getty / Michael Regan
    Dispensado da academia do Sheffield Wednesday aos 16 anos, Vardy esteve perto de deixar o futebol. Em vez disso, assinou pelos amadores do Stocksbridge Park Steels, onde recebeu pouco mais de 30€ por semana para jogar entre turnos de 12 horas na fábrica onde trabalhava. Até que, aos 23 anos, surgiu a oportunidade de entrar no futebol profissional. Primeiro, no oitavo escalão do futebol inglês, depois no quinto, onde Vardy foi continuando a marcar, e então surgiu o Leicester City.

    É difícil pensar numa ascensão ao estrelato como a de Jamie Vardy, mas o mais difícil de acreditar é que, quando o avançado marcou em casa do Bournemouth (1x1) na quarta jornada da sua segunda temporada na Premier League, Vardy ainda tinha muito por onde subir, pois foi após esse jogo que recebeu a sua primeira convocatória para a seleção inglesa.

    Na jornada seguinte marcou ao Aston Villa, seguido de um golo decisivo frente ao Stoke, depois bisou contra o Arsenal, e por aí fora. Uma caminhada que começou em agosto iria durar até ao final de novembro quando Jamie Vardy marcou no seu décimo jogo consecutivo, igualando o recorde fixado pelo holandês Ruud van Nistelrooy, em 2003, ao serviço do Manchester United. E quem seria o adversário do Leicester no jogo decisivo? Os red devils. Vardy não tremeu e logo aos 24 minutos marcou, depois de um passe nas costas da defesa adversária. O jogo terminaria empatado 1x1, mas Vardy levou o recorde para casa.

    Depois disso, os golos deixaram de aparecer todos os jogos, mas não deixaram de ser frequentes. Jamie Vardy continuou incansável na pressão e na procura de oportunidades de golo e o conto de fadas em Leicester não teria acontecido sem os pontos que o avançado ganhou sozinho em jogos que pareciam condenados à perda de pontos. Nesse ano, Vardy foi o segundo melhor marcador da prova com 24 golos, menos um que Harry Kane, uma marca espetacular para qualquer avançado, mas, como dizia Ranieri, «Vardy não é um avançado, é um cavalo fantástico.»

    O Tinkerman

    Claudio Ranieri não era nenhum desconhecido quando chegou à cidade de Leicester. O italiano começou a carreira de treinador em 1986 e desde aí esteve ao comando de equipas como Fiorentina, Valencia, Chelsea, Juventus e Mónaco. Apesar da passagem por grandes clubes, o palmarés do técnico não é tão grande como gostaria. Campeão da Serie C e Serie B em Itália, da Ligue 2 no Mónaco, algumas taças e supertaças, mas nunca tinha sido campeão nacional até chegar ao King Power Stadium.

    @Getty / Shaun Botterill
    A alcunha The Tinkerman foi-lhe atribuída pela imprensa inglesa, 11 anos antes de assinar pelos foxes, quando o então treinador do Chelsea ganhou uma reputação de rodar demasiado o plantel, nunca dando oportunidade do mesmo onze jogar. Apesar da alcunha ter ficado, no Leicester Ranieri nunca revelou esta faceta, mas tudo o resto que Ranieri mostrou em Inglaterra estava de volta mais de uma década depois. A humildade, as brincadeiras com jogadores e jornalistas e o sorriso constante, estava tudo de volta.

    No Leicester City, implementou o mesmo sistema que lhe deu sucesso, 17 anos antes, em Valencia, pautado pela solidez defensiva em 4-4-2 com vista ao contra-ataque, a pressão dos avançados, tudo se manteve igual, o sucesso é que foi maior do que a Copa del Rey e Taça Intertoto conquistada em Espanha.

    «Dilly ding, dilly dong», ouviram os jogadores do Leicester sempre que faziam algo mal durante o treino, enquanto viam Ranieri a abanar um sino imaginário. Foi intenso, no início, fazer o plantel interiorizar a tática de um novo treinador em poucas semanas, mas com o passar do tempo passaram a ouvir menos o ‘sino’, que se tornou numa piada corrente do plantel.

    «Desde cedo quando algo estava errado eu dizia ‘Dilly ding, dilly dong, acorda, acorda!’ No natal comprei um sino a cada um e ofereci como prenda», contou mais tarde o treinador.

    A bateria francesa, a raposa do deserto, e tantos outros

    Talvez aquilo que construiu o conto de fadas do Leicester não tenha sido nem o treinador, nem jogadores, nem presidente, nem sequer uma força divina, mas sim um conjunto de tudo, que no contexto em que aconteceu deu certo e permitiu o desenrolar de um dos acontecimentos mais incríveis da história do desporto. Ainda assim, quando se fala no Leicester City campeão, é difícil não recordar os atletas que, semana após semana, deram tudo em campo para concretizar um sonho.

    O capitão Wes Morgan e o guarda-redes Kasper Schmeichel, filho do lendário Peter, foram os únicos totalistas da equipa campeã, mas houve outros nomes consistentes na ficha de jogo. Robert Huth foi o parceiro de Morgan no centro de uma defesa que contou com Danny Simpson na direita e na esquerda com o austríaco Christian Fuchs, que chegou ao clube a custo zero e foi um dos destaques da conquista.

    A correr pela faixa esquerda estava geralmente Marc Albrighton, embora por vezes surgisse o ganês Schlupp no seu lugar: ambos sabiam dar a largura que a equipa precisava e tinham velocidade de sobra para ferir no contra-ataque de Ranieri. No centro do terreno coabitavam um construtor, Danny Drinkwater, e um destruidor com o nome de Kanté. A meia direita era o espaço reservado à raposa do deserto: Riyad Mahrez.

    Todos estes atletas desempenharam o seu papel na conquista do troféu, mas é justo afirmar que uns foram mais importantes que outros. Na equipa campeã do Leicester havia, para além de Vardy, dois jogadores que tinham tudo para voar mais alto.

    @Getty / Laurence Griffiths
    Kanté era de uma espécie matreira. Muitos se deixaram enganar pela pequena estatura do francês, bem como o sorriso que tem sempre estampado na cara, e rapidamente se arrependeram. A defesa do Leicester viu o seu trabalho muito reduzido graças aos esforços do médio, que fez mais desarmes e interceções que qualquer outro jogador na liga. Veloz, agressivo, incansável, N’Golo Kanté era como um furacão em campo, como até comentou Claudio Ranieri:

    «Correu tanto que pensei que tinha baterias nos calções. Um dia vou vê-lo a fazer um cruzamento e depois ele próprio a cabecear.»

    Kanté viria a ganhar a Premier League novamente no ano seguinte, dessa vez com a camisola do Chelsea, e novamente enquanto jogador-chave na equipa campeã, mas não foi o único jogador do Leicester a repetir o feito.

    Riyad Mahrez foi instrumental no sistema de Ranieri. O extremo direito foi o segundo melhor marcador da equipa com 17 golos, bem como o líder das assistências, e as suas exibições em 2015/16 valeram-lhe o prémio de Futebolista do Ano da PFA (Associação de Futebolistas Profissionais), onde foi o primeiro africano a ser distinguido.  Fosse a serpentear entre a defesa adversária, ou através de bolas paradas, o pé esquerdo do argelino criou inúmeros problemas às defesas adversárias.

    Dois anos após a conquista da Premier League, Mahrez tornou-se na venda mais cara da história do Leicester quando foi transferido para o Manchester City, a troco de 68 milhões de euros. Em Manchester, sob o comando de Pep Guardiola, Mahrez voltaria a ser campeão Inglês.

    O Sonho

    No dia 2 de maio de 2016, toda a equipa do Leicester City esteve reunida em casa do inevitável Jamie Vardy para ver o jogo entre o Chelsea e o Tottenham, pois bastava os Spurs perderem pontos para o Leicester ser campeão Inglês pela primeira vez na sua história de 132 anos.

    Os Spurs ainda estiveram a vencer por 0x2 ao intervalo, mas na segunda o Chelsea marcou dois golos que definiram o empate. O apito final trouxe gritos, lágrimas e uma grande celebração aos jogadores de um clube que, seis anos antes, estava a ser despromovido à terceira divisão, e que um ano e 15 dias antes estava em último lugar na Premier League.

    @Getty / Michael Regan
    Claudio Ranieri não viu o jogo decisivo: já antes tinha avisado que, caso o Leicester chegasse ao título nesse dia, ele seria o último homem em Inglaterra a saber, pois estaria a voar desde Itália. Ainda assim, teve tempo para celebrar. Na semana seguinte, venceram o Everton por 3x1 e o técnico ajudou Wes Morgan a levantar o troféu, pelo qual tanto lutaram.

    O treinador italiano foi o primeiro a reconhecer que dificilmente repetiriam o feito, mas, ainda assim, havia imenso para experienciar ainda em Leicester, pois o King Power Stadium iria, pela primeira vez, receber jogos da Liga dos Campeões da UEFA.

    «Sabemos que para o ano vai tudo ser diferente, mas os adeptos estão a sonhar. Continuem. Porquê acordar?»

    Comentários

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    motivo:
    Leicester
    2021-05-02 14h32m por Alaska
    Sem dúvida , o titulo alcançado pelos foxes comandados por Claudio Ranieri em 2015/2016 é um dos acontecimentos mais marcantes da história do futebol mundial.
    Saudades
    2020-03-19 22h35m por linkinparkfc
    Das conferencias de imprensa do ranieri. . . .
    -o diliding dilidong
    -querer matar o quique flores
    -o pinóquio
    -o arsene wenger esquecer-se das derrotas contra o ranieri
    -a pizza
    -o talhante
    -e o banho de champanhe quando foram campeões