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    História
    Evolução do Jogo

    Râguebi: o primo direito

    Texto por João Pedro Silveira
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    Futebol e râguebi... tantos anos passados de evolução e transformação das regras de ambos os jogos escondem uma verdade que muitos adeptos desconhecem. É que o râguebi e o futebol são apenas variações do mesmo jogo. Râguebi e futebol são duas modalidades de um conjunto de jogos que evoluíram de forma diferente do velho football inglês que se jogava no começo do século XIX.

    Essa lista inclui variantes como o futebol gaélico, o rugby league ou râguebi de 13, o futebol americano, o futebol canadiano, o futebol australiano e ainda o international rules football. Pelo caminho ficaram algumas variantes de football que se perderam, tanto pela menor popularidade da versão como pela queda em desuso do seu código de regras. 

    A evolução distinta das variantes de futebol, o porquê da escolha de um caminho ter vingado e outros não, a sobrevivência da variante mais forte, a razão que levou o football association (que nós jogamos) a conquistar a Europa, África e América do Sul e a ser uma modalidade marginal nos países anglo-saxónicos onde o râguebi e outras variantes locais de futebol prevaleceram sobre o soccer são questões pertinentes, especialmente de um ponto de vista darwinista, mas não serão a matéria deste texto.

    Estudantes jogam râguebi na famosa Rugby School, o local onde tudo começou.
    Se bem que Darwin e a sua famosa «A Origem das Espécies» (1) fossem coevos desta história, não há memória que o naturalista alguma vez tenha chutado uma bola ou segurado a «oval» debaixo do braço.

    Aqui fala-se apenas de futebol e râguebi, ou de football association e rugby football union, a forma como são conhecidas oficialmente as duas modalidades, tendo por base o nome das duas associações fundadoras das modalidades. De Cambridge a uma taberna em Londres, de estudantes de Eton e Rugby, à história do rapaz que um dia pegou na bola com as mãos e começou a correr com ela, esta é a história da separação entre o râguebi e o futebol.

    Os primeiros códigos

    Os jogos de futebol há muito que eram jogados na Inglaterra. Descendentes do velho «mob football» que se jogara pelos campos e cidades de Inglaterra na Idade Média, diversas variações do jogo chegaram até ao século XIX em pontos distintos de Inglaterra.

    Durante as primeiras décadas de novecentos era comum os diversos colégios ingleses praticarem a sua versão de futebol. A confusão de códigos de regras tornava-se clara quando esses rapazes chegavam às universidades e queriam jogar o seu adorado futebol com as regras que tinham aprendido. 

    Apesar das diferenças esses jogos tinham vários pontos em comum. Eram disputados por duas equipas, num terreno demarcado. Cada equipa defendia um lado do campo e a outra equipa tentava marcar pontos fazendo atravessar a bola pela linha do fundo ou através de dois postes. Os jogadores só podiam usar o corpo para fazer mover a bola, fossem os pés, as mãos e ocasionalmente a cabeça ou o peito. Podiam chutar, rematar, fintar, correr, driblar... As similitudes faziam acreditar os apaixonados pelo jogo que seria possível criar um código unificado de regras. 

    Notícia de jornal que relata a fundação da Football Association. Aí pode-se ler o nome de Campbell, dirigente do Blackheath, nomeado tesoureiro da FA.
    Ainda nos últimos anos do século XVIII algumas escolas criaram as suas próprias regras, em especial sobre o conceito de fora de jogo. Nesses tempos um jogador estaria «off side» se simplesmente estivesse entre a bola e a baliza (ou meta) que fosse o seu objetivo, os passes para a frente eram proibidos e a bola só podia ser avançada ao pé por intermédio de «scrums» (2). Contudo as regras tendiam a afastar-se cada vez mais, como podemos ver se analisarmos os códigos de regras publicados entre 1810 e 1850 em Winchester, Rugby, Harrow e Cheltenham. 

    Coube a Eton em 1815 o primeiro código de regras - no sentido em que hoje conhecemos - seguido depois pelo código de regras de Aldenham, publicado dez anos depois. 

    Seria em 1845 que a Escola de Rugby, um colégio localizado na pequena cidade com o mesmo nome no Warwickshire, publicou o seu famoso código de regras. 

    Tentativas de unificação: Cambridge

    Ex-alunos de Rugby há muito que levavam as suas regras para as universidades. Em Cambridge, um ex-alumnus de Rugby, Albert Pell, organizava regularmente jogos na Universidade por volta de 1839, mas a grande dificuldade de Pell e dos seus colegas era conseguir um compromisso entre os diversos códigos de regras. Cada jogador queria jogar da maneira que aprendera a jogar em casa e não era fácil conseguir harmonizar as diferentes vontades. 

    Seria em Cambridge em 1846 que a situação se começou a resolver quando H. Winton e J.C. Thring, dois ex-alumni de Shrewsbury, convenceram um grupo de antigos alunos de Eton a formarem um clube de futebol na universidade. Seria este núcleo inicial que combinava etonianos e rapazes de outros colégios que participaria num conjunto de reuniões que se foram desenrolando ao longo do ano 1848. 

    Estátua de William Webb Ellis a em Rugby a celebrar o momento fundador da modalidade.
    Os relatos contam que cada representante levou um exemplar das regras dos seus colégios de origem e depois foram debatendo ponto por ponto um novo conjunto de regras. Este conjunto misturava as regras de Rugby (passes para trás e pegar a bola com as mãos), com as de Eton (com os dribles e o fora-de-jogo) e as de Charterhouse (com um jogo de dribles e passes para a frente), além de contribuições dos restantes colégios. 
     
    A nova regra de fora-de-jogo do código de Cambrige ditava: «se a bola ultrapassar um jogador e vier da direção da sua meta, ele não poderá toca-la até o campo adversário a tiver chutado, a não ser que haja três ou mais adversários em frente dele». 

    Esta regra estaria incluída no conjunto de regras adoptado pela Football Associaton (FA), instituição que nasceu em 1863, depois de uma famosa reunião na Freemason´s Tavern em Londres. De 26 de outubro a 1 de dezembro realizaram-se seis reuniões que definiram o futuro do jogo e firmaram a cisão entre o football association e o rugby football. 

    A cisão de Blackheath
     
    Treze clubes de diversas partes de Inglaterra reuniram-se na capital aceitando o repto de Ebenezer Cobb Morley, dessa reunião surgiram as primeiras treze regras, que com poucas alterações ainda são as regras que hoje regem o futebol.
     
    Um dos pontos mais polémicos da reunião prendia-se com a proibição de se usar as mãos durante o jogo e a possibilidade de se proceder a tackles para derrubar o adversário. As regras de 1848 permitiam ambas as situações, mas a maioria dos clubes estava disposto a impedi-las. 

    Na última das reuniões na Freemasons, o representante do Blackheath FC, Francis Maule Campbell, informou os colegas que o seu clube abandonaria a recem criada Football Association. Blackheath sempre jogara de acordo com as regras de Rugby e assim queria continuar. Uma das regras mais polémicas que a maioria dos clubes se opunha era a antiga regra que permitia o «hacking», ou pontapé e joelhada no queixo, bem comum durante as «scrums». Seria a recusa do «hacking» que enfureceu Campbell, que achava que o desporto perdia virilidade e se tornaria num «jogo de meninas».
     
    Diz-se que Campbell, bastante irritado, jurou que iria trazer um grupo de onze franceses que seria capaz de bater as equipas dos restantes clubes só com uma semana de treino.

    Blackheath seguiria jogando sob as regras de Rugby e em 1871 estaria entre os fundadores da Rugby Football Union (RFU). Curiosamente Campbell estaria na fundação tanto da FA como da RFU, tendo assim papel fundamental na história dos dois desportos. Não deixa de ser curioso notar que o «hacking» seria também proibido nas novas regras de Rugby, um ano mais tarde da sua criação, com acusação que a sua permissão tornava o jogo demasiado perigoso e violento.
     
    Uma corrida para a história
     
    A lenda, não confirmada e mais tarde contestada, é que em 1823 durante um jogo de futebol na escola de Rugby, um rapaz pegou na bola com as mãos e começou a correr em direção à linha de fundo, evitando todos os adversários que o tentavam placar. Para a lenda esse é o momento fundador da modalidade. 
     
    Há uma placa na escola, colocada em 1895, que comemora o momento e honra o rapaz, e até o próprio troféu de vencedor do Campeonato do Mundo de râguebi recebeu o nome do jovem estudante que nessa tarde pegou na bola com as mãos. O seu nome era William Webb Ellis e ainda hoje em dia se visitar a escola de Rugby encontrará uma estátua sua com uma bola oval na mão. 

    O «Haka», cerimonial que a seleção neo-zelandesa apresenta momentos antes do pontapé de saída, em cada jogo internacional que participa.
    Até a sua sepultura, em Mentón, pequena cidade da Provença, no sul de França, onde viveu os seus últimos anos, é cuidada pela Federação Francesa de Râguebi. 
     
    Contudo o verdadeiro papel que este mancuniano teve na "invenção" do râguebi é muito discutido. Na investigação de 1895 tentou-se entrevistar possíveis testemunhas do evento. Mas dos poucos que tinham sobrevivido desde esse dia de 1823, nenhum tinha presenciado o acontecimento ou sequer se lembrava da história ser contada na altura.
     
    Por outro lado, a proibição de correr com a bola nas mãos nos jogos de futebol em Rugby está documentada anos depois do acontecimento, o que levou alguns a questionarem a veracidade da história.
     
    Convém recordar que a investigação de 1895, ano em que Ellis se tornou o «herói fundador» do râguebi era um período de grande tensão dentro da modalidade, com a cisão entre a Rugby Football Union e a Rugby League.
     
    Talvez tentando «puxar galões» à sua antiguidade e supremacia histórica, os homens de Rugby tenham criado este mito fundador que permitia aos rugbeains manterem uma certa autoridade sobre a modalidade, quando efetivamente estavam a perder o controlo sobre a mesma.
     
    Amadorismo vs Profissionalismo

    Os créditos pela "invenção" da Rugby Union Football não devem ser creditados à escola de Rugby mas sim ao Blackheath FC. A escola de Rugby não faria parte da RFU por muitos anos.

    A RFU fundada em 1871 era composta na sua maioria por clubes do Lancashire e Yorkshire, onde o jogo era uma paixão da classe operária, ao contrário do sul, onde era uma diversão das classes abastadas. 

    O râguebi expandira-se com os emigrantes que partiam de Inglaterra para os Dominions (3) da Coroa de população maioritariamente branca provocando grande paixão na Austrália e na Nova Zelândia. 
     
    Em Inglaterra o número de adeptos e praticantes crescia, com multidões a assistirem aos jogos mais importantes na região de Yorkshire onde se realizava a Yorkshire Cup.

    O jogo começou a atrair cada vez mais espetadores mas os jogadores continuavam impedidos de receberem qualquer tipo de pagamento. Como a maioria dos jogadores nortenhos era proveniente da classe operária, estavam limitados em horários de treino e a maioria dos jogadores tinham de ter muito cuidado para não se lesionar. Quando lesionados tinham de arcar com a conta do médico e provavelmente ficar em casa, assustados com a possibilidade de perder o emprego. 

    Os clubes nortenhos queixavam-se da maior representação dos clubes do sul na RFU e acusavam esses clubes de terem castigado os clubes do norte que tinham ajudado os seus jogadores quando estes tinham estado de baixa. A divisão norte-sul aprofundava-se, com os clubes mais abastados (e amadores) a ameaçarem banir os clubes que recorressem ao profissionalismo para sustentar os seus atletas.

    O segundo cisma

    Enquanto o râguebi se debatia com o caminho a seguir o futebol trilhava o caminho da profissionalização. A Football League nascera em 1888, formada por 12 clubes do norte de Inglaterra. O sucesso da prova, vencida na primeira edição pelo Preston North End terá influenciado os dirigentes dos diversos clubes da RFU a pensarem na ideia de criar uma liga profissional para o râguebi. 
     
    A Taça Webb Ellis, ou a Taça do Mundo, o mais importante troféu do mundo do râguebi, tem a equivalência no futebol na Taça da Campeão Mundial da FIFA.
    Com os clubes do sul a bloquearem qualquer tentativa de alteração ao estatuto do jogador amador, a ideia de uma associação nortenha surgiu em agosto de 1895. Após uma reunião em Manchester, 22 clubes reuniram-se no George Hotel em Huddersfield e nesse dia 29 de agosto fundaram a Northern Rugby Football Union, mais conhecida pelo acrónimo NU.

    Durante os anos seguintes o jogo desenvolver-se-ia de forma diferente nas duas associações, acabando por divergir no número de jogadores, no sistema de pontuação, nas punições e na distribuição de jogadores em campo e nas «scrums», entre outras diferenças. Hoje em dia são considerados dois desportos distintos.
     
    Um desporto global
     
    O râguebi permaneceu um desporto de cavalheiros e 100% amador e assim haveria de ser até quase ao fim do século XX. Durante o século passado o jogo estabeleceu-se definitivamente nas quatro Home Nations: Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda, mas também em França, na Itália e nas potências o hemisfério sul: Austrália, África do Sul, Nova Zelândia e mais recentemente a Argentina. 
     
    Desporto de paixões, o râguebi cresceu com o Torneio das Cinco Nações, assim chamado depois da inclusão da França em 1947 (4) e com um cada vez maior número de países que praticavam a modalidade.
     
    O sucesso do râguebi esteve em causa com as polémicas em volta do Apartheid, com diversas equipas e seleções a furarem o bloqueio internacional imposto ao regime sul africano, assim como com o falso amadorismo e a hipocrisia dos valores não declarados que ameaçava minar a confiança dos adeptos no seu amado desporto.
     
    O fim deste estado de pseudo-amadorismo e mais tarde o fim do Apartheid e o regresso da nova África do Sul de Mandela à família do râguebi ajudou a recuperar a credibilidade do jogo.

    O primeiro mundial realizou-se só em 1987, mas edição após edição o evento tornou-se num dos mais importantes do planeta, gerando muitas receitas e atraindo milhões de espetadores, jogo após jogo. 

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    (1) A Origem das Espécies (em inglês: On the Origin of Species), do naturalista britânico Charles Darwin, apresenta a Teoria da Evolução. O nome completo da primeira edição (1859) é «On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life» (Sobre a Origem das Espécies por Meio da Selecção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida). Somente na sexta edição (1872), o título foi abreviado para The Origin of Species (A Origem das Espécies), como é popularmente conhecido.
    (2) Em Portugal no râguebi o termo técnico empregue é «formação ordenada», sendo raro o uso do original inglês «scrum». Já o termo francês «mêlée» é ainda muito usado entre nós pelos adeptos e comentadores do jogo da bola oval. 
    (3) Domínios eram entidades políticas semi-independentes que se encontravam sob o domínio da Coroa, fazendo parte do Império Britânico e da Commonwealth. Desde o século XIX a lista de Domínios da Coroa incluiu o Canadá, a Austrália, o Paquistão, a Índia, Malta, o Ceilão, a Nova Zelândia, a Terra Nova, a África do Sul e o Estado Livre da Irlanda.
    (4) O torneio é hoje conhecido como «Seis Nações» depois da entrada da Itália na prova em 2000. 

    Comentários

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    motivo:
    CA
    Parabéns
    2015-10-14 20h11m por Cafarchio
    Congratulações aos editores e toda equipe (ou equipa) deste site que desde 2008 eu tanto aprecio aqui do Brasil. O Rugby dos meus hermanos argentinos vem orgulhando nós sul-americanos. O Brasil esta tentando crescer na modalidade também. O nosso capitão, Fernando Portugal, tem se esforçado muito e já colhe os frutos. A federação de Rugby brasileira é um exemplo de organização e se a modalidade crescer, vai tornar-se exemplo para a CBF deixar de ser uma balbúrdia. Enfim, sou apaixonado p...ler comentário completo »
    Agradecimento
    hm por zerozero.pt
    Muito obrigado.
    PO
    provas de empréstimo séria e confiável
    2015-10-02 12h49m por Poli10
    Olá, provas de empréstimo séria e confiável

    (E-mail: poli_laurent@hotmail. com)

    Eu vir por este testemunho presente você atesta que é obrigado senhor POLI LAURENT eu então percebe o meu projeto. Eu estou notificando-o que é ele que me concedeu um empréstimo de € 60000 para meu projeto. Sugiro que você entre em contato pelo seu endereço de e-mail para obter mais informações no que diz respeito as suas condições para a concessão de crédito muito simples, rápido e ...ler comentário completo »
    Magnífico documento
    2015-09-26 19h59m por Thirteenth
    Parabens ao Zerozero por este belo pedaço de história, numa altura em que está a decorrer mais um Mundial desta modalidade. Sabe bem de vez em quando saber um pouco mais de outros «futebois».
    Agradecimento
    hm por zerozero.pt
    Muito obrigado.
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