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    Campo Pelado
    Pedro Jorge da Cunha
    2023/01/02
    E7
    «Campo Pelado» é o espaço de opinião do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Uma homenagem ao futebol mais puro, mais natural, onde o prazer da camaradagem é a única voz de comando. «Campo Pelado».

    * Chefe de Redação

    As obsessões de infância não nos escapam facilmente. A memória é um carcereiro cruel, guarda as chaves desses dias com a diligência e o zelo de um relojoeiro.

    Só isso pode explicar as imagens claras que guardo dos anos 80. Nomeadamente dos livros mais marcantes para mim dessa altura.

    As intermináveis horas a devorar os álbuns de Astérix e Obélix, com romanos lingrinhas sovados página atrás de página; as gargalhadas provocadas por Rantaplan, o cão mais estúpido do Old West, nas aventuras mais rápidas do que a própria sombra de Lucky Luke; a velocidade imaginária de Michel Vaillant, em bólides de F1 nas ruas de Paris ou em rallys de dureza heróica, enfim, a lista é longa e maravilhosa.

    Adormeci muitas noites também a folhear o conto de Ali Babá e os 40 Ladrões. Para quem não o conhece, o resumo é simples: um pobre lenhador árabe descobre, por mero acaso, uma caverna que serve de esconderijo a uma quadrilha de assaltantes. Segue-os e percebe que, por artes mágicas, a gruta se abre quando alguém grita ‘Abre-te, Sésamo!’.

    Lá dentro, nas profundezas rochosas, jaz um interminável tesouro. Ali torna-se rico, mas o irmão, que o seguira, esquece as palavras-chave para entrar e sair da caverna, acabando por ser apanhado pelos gatunos. 

    Lembrei-me da beleza gráfica da história ao saber da ida de Cristiano Ronaldo para a Arábia. Não no encalço de ladrões, mas de um tesouro incontável, pelo menos na humilde perspetiva de um ser humano comum.

    Cristiano passará de rico a estupidamente rico, e continuará a poder receber um Rolls Royce e um iate sempre que lhe apetecer.

    É uma escolha legítima, compreensível aos olhos de quase todos, mas é uma escolha que acarreta consequências. Cristiano saberá disso melhor do que ninguém.

    Tal como o pobre irmão de Ali Babá, Ronaldo será aprisionado. Estará rodeado por um futebol fraco, distante da elite e olhado de forma preconceituosa pela cultura eurocêntrica e ocidental. Vai afastar-se ainda mais do topo, por opção própria, e o que mais me interessa é perceber o que quererá ele, a partir de agora, da Seleção Nacional.

    Cristiano, com 37 anos e a jogar no United, seria sempre uma unidade relevante – se percebesse e lhe explicassem olhos nos olhos o seu papel; Cristiano, de 37 anos e a competir na liga saudita, será, provavelmente, um empecilho.

    O único motivo para Cristiano escolher o Al Nassr é a fortuna faraónica que o aguarda. Nada mais. Como diria Jerry Seinfeld, 'not that there's anything wrong with that'. 

    Insisto: é absolutamente legítimo da parte dele escolher este destino, como também é legítimo ao próximo selecionador nacional olhar com pouco entusiasmo para o mesmo.

    Não vejo outra explicação, a não ser o vil metal.

    Desportivamente, a liga saudita estará ao nível da II Liga portuguesa. Terá alguns projetos mais apelativos, sim, mas o nível médio é pobre, muito abaixo do que vale ainda hoje o futebolista Cristiano Ronaldo.

    Socialmente, a família de CR7 viverá isolada numa gaiola dourada, mas dentro de um país cujas leis fundamentais permanecem agarradas a uma mentalidade própria da Idade Média e contrária aos mais básicos direitos humanos.

    Cristiano falará publicamente na terça-feira e tecerá loas entusiasmadas ao projeto do Al Nassr e ao próprio futebol árabe, candidato a receber o Mundial de 2030 – e adversário da organização conjunta Portugal-Espanha. Os spin doctors tratarão de garantir isso. 

    O melhor português de sempre poderá ser feliz, fazer 50 golos por anos e vender milhões de camisolas no mundo árabe. Não poderá é continuar a reclamar um estatuto que já foi dele.  

    Está no seu direito.



    Comentários

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    motivo:
    LM
    Adivinhos
    2023-01-11 01h54m por lmanuel
    Nada como uma crónica a criticar o Ronaldo (por mais que se diga "está no seu direito", compreende-se" etc e tal). Percebe-se claramente o sentido crítico deste "coment".
    A verdade é que esta técnica jornalista lusa é muito frequente em jornalismo desportivo. Todos são iguais mas uns são mais iguais que outros. Outros são mais desiguais que uns!
    O Ronaldo e 37 anos. Uns dirão que isso exica as suas decisões pelas dificuldades em se manter fisicamente ao melhor nível. Eu digo...ler comentário completo »
    CA
    50 golos por ano??'
    2023-01-08 18h41m por Cacau_13
    Nao sei se tem assim tantos penalties.
    Ronaldo optou. . .
    2023-01-08 10h48m por Artemis
    . . . por secundarizar o nível desportivo, pelo que é impensável que numa selecção normal haja lugar para jogadores que expressam tão explicitamente as suas prioridades.

    A não ser que a selecção portuguesa, ao modo de Malta, das Ilhas Faroé, de San Marino, etc, queira agora criar quotas para jogadores em registo amador ou semi-amador.

    Mas da FPF tudo de mau (muito mau, péssimo até. . . ) é expectável.

    tecerá loas entusiasmadas
    2023-01-02 22h13m por cmtcosta
    Não entendi, Pedro.
    Ronaldo
    2023-01-02 16h33m por kropotkin
    Boa crónica.

    Resta saber se o novo seleccionador de Portugal vai ter coragem para o deixar de fora da convocatória.

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