Eu vejo a Liga portuguesa, talvez já vos tenha dito. Não vejo a inglesa, nem a espanhola, nem a alemã, como metade dos entendidos da bola. Também não acompanho os troféus de Singapura, nem do Sri Lanka e não conheço as jovens promessas do Burundi, como a outra metade. Em compensação, vejo todos os jogos que posso da segunda divisão – fica assim que agora não me lembra o nome da Liga. O que, de momento, não ajuda grandemente o meu estado de espírito, bem presente o jogo na Amoreira ontem à tarde.
Depois vêm pessoas e explicam-me que só assisto a jogos de treta, que não devo gostar é de futebol e isso tudo. E dão-me exemplos que é suposto convencerem-me, como: “ainda há atrasado estava a ver o Tondela vs Moreirense e mudei para o Liverpool vs City e, epá, que diferença, parecia outro desporto”. E eu esforço-me por não me rir muito. A propósito de Tondela vs Moreirense...
No Tondela vs Moreirense deste fim de semana, um jogador do clube beirão tentou dar uma valente canelada num minhoto. E até conseguiu, só que na sequência do movimento acabou por lhe pisar o calcanhar. O árbitro apitou a falta clara e mostrou amarelo ao faltoso. Entretanto o VAR alertou-o, o árbitro visualizou o lance e expulsou o jogador do Tondela. Vocês sabem que eu acompanho o Moreirense na esperança de perceber o motivo da substituição de Ricardo Soares. A propósito de Ricardo Soares…
No Gil Vicente vs Benfica de Domingo, um gilista foi expulso por ter visto dois amarelos, bem mostrados, por acertar com os braços no adversário, quando saltavam ambos à mesma bola. Outro jogador, curiosamente não gilista, acertou uma valente cotovelada nas ventas de um oponente, sem bola em disputa. Amarelo.
Louve-se a uniformidade de critério, pois já em Alvalade, um dia antes, outra cotovelada nas fuças de um algarvio havia sido punida com a mesma cor: amarelo. Deixemos por agora a grande penalidade que impediu o Farense de pontuar.
Uso estes exemplos por serem gritantes e fresquinhos, de modo a que ninguém possa argumentar que não se lembra. Seguramente muitos de vocês farão o favor de me lembrar de outros em que o beneficiado terá sido o FCP, para o que aqui me traz hoje, é-me tinto e até agradeço.
Sendo certo, e já devem ter percebido que não procuro consensos e não proclamo imparcialidade, que o FCP é grande porque se fez grande, à custa de trabalho e talento, contra ventos e marés e sempre – sempre! – olhado de soslaio e com desdém pelos senhores da capital do Império. Chamem-lhe complexo, chamem-lhe provincianismo, chamem o que vos apetecer ao que podiam designar simplesmente por verdade. De todo o modo, para o exercício de hoje, entra no mesmo saco - ficando prometida adequada desinfeção quando o retirarmos – ainda que, na minha opinião, beneficie bastante menos do que outros desta sua condição de “grande”.
Eu vejo a Liga portuguesa, faço-o há muito tempo. O ano passado gostei mais de a ver do que no ano anterior e este ano mais do que no ano passado. Em média, trabalha-se muito razoavelmente, com bons treinadores, com estruturas que me parecem querer aprender e fazer as coisas como deve de ser. A prospeção melhorou e alargou horizontes. Os nossos clubes ganharam uma capacidade de atrair talento inédita e há jogadores interessantes em quase todas as equipas. Ainda assim, diz que o Burnley vs Wolverhampton é um jogo melhor do que qualquer Santa Clara vs Guimarães. O que não se percebe é que em Portugal se aplica uma variante muito retorcida do Principio de Peter.
O bom do Peter diz que um fulano que é excelente em determinada tarefa, nem sempre deve passar ao nível seguinte porque pode muito bem dar-se a fatalidade de ser uma bela bosta. Isto é, há um patamar limite à sua competência, a partir do qual ele passa a ser incompetente. Os clubes em Portugal, os “outros”, são confrontados com um Principio de Peter tácito. Não tem sequer relação com as suas capacidades, embora por vezes possa acontecer. É que todos são lembrados semanalmente de que não vale grandemente a pena melhorarem ou esforçarem-se para lá do seu mediano patamar. O nível seguinte está-lhes vedado, é privado e reservado.
Este é o primeiro problema do futebol português. Os nossos árbitros até podem nem ser os piores, mas têm perfeita noção do que produz eco e do que provoca ricochete. Sabem muito bem que a vida é mais fácil sem se meterem com os matulões, mesmo que isso signifique dar uns murros à traição aos mais pequenitos. Aliás, o barulho que provoca um erro que beneficie um dos grandes, é feito na medida em que prejudica os outros grandes. O clube diretamente ofendido nem sequer conta para o totobola. O Farense é um exemplo gritante disto mesmo. Esta época, nem é preciso irmos mais atrás.
Quanto poderíamos diminuir o fosso se tudo fosse mais justo? Até podemos discutir a centralização dos direitos, motivo primordial para se construir uma Liga – em todo o mundo menos em Portugal - mas o passo anterior é todos serem, efetivamente, iguais perante a porra das leis do jogo. E não são. Assim, qualquer Alavés continuará a afastar-se alegremente de qualquer Rio Ave e não há telespetador chinês que nos valha.
É certo que os dirigentes podiam ser melhores e gerir mais eficazmente os parcos recursos que lhes são disponibilizados. Sobretudo quando um trabalho de prospeção bem feito, ou uma sorte do caraças, ou uma pérola da formação que os Glutões da bola não roubaram, por mera distração, aos 12 ou 13 anos, lhes proporciona um desafogo financeiro nunca sonhado. Mas aqueles que o conseguem, acabam a esbarrar no tal do muro de Peter. E lá ficam, espalmados na parede, alvo de chacota dos que em vez disso se governaram e os apontam, rindo: “olha, vês, nem pau nem bola, eu ao menos sento-me à mesa dos grandes e como camarão. Do mais pequeno, está claro, que as gambas são para os patrões”. Perguntem na Vila das Aves as saudades que já têm do seu Desportivo.
Tanta palavra só para dizer a todos os que às vezes têm vontade de desistir que não o façam. Ainda que levem umas cotoveladas que toda a gente se vai esforçar por não ver e, ainda mais, por não mostrar, não desistam. Eu estou aqui e não serei o único. Vejo os vossos jogos e aprecio o talento que descobrem e torço para que sejam sempre melhores e que os bons de entre vós tenham sucesso. Menos contra o FCP, mas quanto a isso não posso fazer nada. Pode alguém ser quem não é?