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    O Melhor dos Jogos
    Carlos Daniel
    2020/10/01
    E0
    Este espaço, do jornalista Carlos Daniel, pretende ser de abordagem e reflexão sobre o futebol no que o jogo tem de melhor. Quinzenalmente, uma equipa será objeto de análise, com notas concretas que acrescentam atualidade.

    Tem ainda menos 5 centímetros que Messi, na prova repetida de que, como os piores venenos, também os melhores perfumes estão nos frascos mais pequenos. A Atalanta é um projeto extraordinário assinado por Gian Piero Gasperini, mas que depende decisivamente daquele 1,65m de gente que ilumina como um farol e orienta como um GPS. Podemos dizer que também há Zapata e Muriel, contratações bem fisgadas, e que agora chegou Miranchuk, na linha de Malinovskyi, mas, e para mais num momento em que permanece deprimido e ausente Ilicic, o vice-rei da equipa, não pode haver dúvidas de que esta Atalanta só existe assim com ele em campo: Alejandro Gomez, desde criança alcunhado de Papu.

    Usa o 10, que não há número que lhe caísse melhor, e em todas as equipas foi ele e mais dez, desde a puberdade, que lá é uma pibe idade, no Arsenal de Sarandi, depois já num histórico do país, o San Lorenzo de Almagro. Aos 23 anos aterra em Itália, brilha em três épocas no siciliano Catania mas, sem que qualquer emblema vizinho o requisite, acaba chamado pelo dinheiro do Metalist, uma equipa entretanto desaparecida. Esteve só um ano no frio da Ucrânia, que o Atalanta o resgatou para o calcio, na melhor hora. Vai para a sétima época no clube de Bérgamo, onde bateu todos os recordes de assistências numa época (15, na época passada) desde que há recolha criteriosa desses dados (2004/05) e fez mais de 50 golos, só no campeonato. Hoje já ninguém tem dúvidas de que, apesar de tudo o que por lá fizeram Donadoni, Evair, Bonacina, Caniggia, Doni ou Stromberg, Papu Gomez ficará, bem destacado, como o melhor jogador da história da Atalanta.

    Questiono-me sempre se poderia ser tão grande num clube gigante, remetido para tarefas de obrigação coletiva ou amarrado a fatias mais estreitas de terreno. Convenço-me cada vez mais de que não, que um criativo desta dimensão, mesmo vivendo um degrau abaixo do planeta de Messi, Ronaldo ou Neymar, também precisa que todo o relvado seja seu recreio. Qualquer génio carece de liberdade. Escrevo isto e lembro-me de Hagi, outro dos meus ídolos eternos, herói precoce no Steaua, onde o Real Madrid o foi buscar, fantástico no Brescia, onde o Barcelona o foi buscar, insuperável, por fim, no Galatasaray, onde a história o fez assentar, sempre melhor numa equipa onde reinasse do que onde tivesse de partilhar o trono. Quem não o viu, encontra-o facilmente na internet que é agora toda a nossa memória. Não percam, seja para descobrir ou rever, os golos da Roménia à Colômbia no Mundial de 94 e o que marcou pelo Gala ao Mónaco, num jogo da Champions em 2000. Com a bola parada vi muita gente capaz de apontar ao golo desde ângulos inverosímeis – Mihajlovic, Pirlo, Juninho Pernambucano – mas com ela em movimento não vi nenhum como Hagi, o Maradona dos Cárpatos.

    Papu Gómez lamenta as poucas internacionalizações que tem – o que só envergonha os vários seleccionadores da Argentina da última década, todos eles promotores de tantos jogadores banais - e também só ter encontrado Gasperini aos 28 anos, onde o lugar de enganche, por trás dos avançados, lhe foi entregue numa espécie de jogo experimental por ausência do esloveno Kurtic. Nunca mais voltou à faixa esquerda por obrigação. Agora vai lá quando lhe apetece, e deambula pelo campo com o saber que a experiência acrescentou a um talento raro. Hoje, aos 32 anos, pode dizer-se que organiza, assiste e finaliza com idêntica qualidade e sempre a nível muito alto. Os primeiros jogos desta nova época são recados firmes para que aproveitemos até ao último trago a carreira deste argentino de palmo e meio. Foi muito mais que os 3 golos e 3 as assistências. Foi até mais que duas vitórias da Atalanta, ambas fora, com 4 golos marcados em cada, perante Lazio ou Torino, não um qualquer Benevento ou Crotone. Foi perceber que havia um jogador que habitava um nível acima de todos os outros. No jogo na casa do Toro dei mesmo por mim a pensar que se ele estivesse a jogar nas costas de Belotti e Zaza, em vez de dar apoio a Muriel e Zapata, o resultado poderia ter sido exactamente o inverso. Esta crónica nasceu nesse momento, em homenagem a Papu Gómez, o génio mais pequeno do mundo.

    PS: A Atalanta chegou a aceitar deste Verão uma proposta árabe do Al Nasr de 15 milhões. Papu Gomez recusou ser coberto de ouro e preferiu ficar para jogar mais uma Liga dos Campeões. Ainda bem, que já basta termos deixado de ver Banega a jogar entre os melhores.



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