Aqui
Não sei se já o disse, mas nunca me canso de o repetir: a casa dos meus avós é a 200 metros do Campo dos Bargos, a casa do Famalicão. No meio fica outra religião: a igreja de Calendário. Aos domingos, há muitos anos, saía de casa com o meu avô pelas três menos vinte (os jogos eram à três) passávamos a rua para ir chamar o Nela, vizinho e quase meu avô também, ladeávamos o cemitério, víamos a torre da igreja “que de sombra nos cobriu a infância” e fazíamos a ladeira de paralelo até ao campo. Mostrávamos o cartão de sócio e entrávamos para os cativos. Eram três menos cinco. Quando as equipas entravam, ouvia-se “então hoje vai jogar com o Menad na esquerda?”, e sentávamo-nos. A claque cantava, as palmas rejubilavam corações, começavam os impropérios contra a mãe do senhor vestido de preto e era impossível ouvir-se o sino da igreja a bater a hora certa.
Esta crónica é triste porque no jogo com o Benfica eu ouvi o sino. E estava em casa, a acompanhar o jogo pela televisão – e a casa da minha avó só foi a minha até aos meus quatro anos. Estava em Lisboa e ouvi o sino a bater as horas certas. Quase chorei. Porque me lembrou que estou longe dos meus avós, votados à solidão dos oitenta anos por causa de um vírus assassino, e porque percebi que estamos todos longe de quem amamos e longe do que amamos – o nosso clube.
Ouve-se o árbitro a falar com os jogadores; ouve-se o Defendi a gritar “Patrick!”, o Fábio a ouvir “Estás só! Estás só!” e rodar sobre si mesmo para mais um passe de letra. Ouvem-se os gestos do João Pedro Sousa a informar o Anderson que tem de marcar o espaço, não o jogador. Ouve-se o Veríssimo calado porque não tem nada para dizer e, se tiver, não há quem o deixe. Ouvimos todos o jogo mas falta-nos o que o emociona.
No jogo com o Benfica só se viram as lonas a cobrir a bancada. E na parte Norte da bancada nova, as tarjas dos Fama Boys. Na parte Sul, dos visitantes, ninguém. Mas diga-se que, mesmo com alguém (como quando o Benfica nos visitou para a Taça), esse alguém pouco se ouvia. Os Bargos são conhecidos por assistências recordes mas de adeptos do Vila Nova. No entanto, também eles fazem falta para dar colorido à festa. Ou para permitir o prazer de os ver tristes porque estamos nós felizes.
Este ano, os grandes não passaram nos Bargos. Despedimos o Silas como tínhamos ajudado a despedir o Leonel Pontes – e teve sorte o Sporting por ter havido só dois jogos na época, senão tínhamos despedido mais alguns treinadores. Fizemos o Conceição pensar que tudo estava a começar mal e depois dissemos-lhe , neste último jogo, “já está quase”. E tivemos o Benfica por duas vezes a empatar “um igual” mas sempre perdendo no merecimento.
Há muitos anos escrevi um poema que, a certa altura, dizia “a tristeza de não sermos dois”. Acho que se perdeu o verso e se perdeu o poema, porque a frase é demasiado corrente para ter sido só de minha safra. Mas é isso: há uma enorme tristeza em não sermos dois com o nosso clube. Numa altura em que o Famalicão está em sexto, a um ponto da qualificação para a Liga Europa, uma coisa impensável há pouco mais de dez anos (quando, não é mau relembrar, estávamos nas distritais), nós não podemos celebrar cada vitória, cada golo, cada jogada. Não podemos lá, nos Bargos, não podemos em casa sozinhos. E, pior do que tudo isto, não podemos abraçar os nossos avós que, já não capazes de irem aos Bargos connosco porque a idade não deixa, não merecem estar sozinhos a celebrar, entregues ao sino que também ouvem quando não deviam. Não merecem.
E hoje não há “ali”, nem “acolá” porque a crónica é demasiado triste para isso. Os nossos velhotes não merecem que a vida lhes acabe assim. Não merecem.
Jorge Reis-Sá
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