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      O Melhor dos Jogos
      Carlos Daniel
      2019/11/14
      E3
      Este espaço, do jornalista Carlos Daniel, pretende ser de abordagem e reflexão sobre o futebol no que o jogo tem de melhor. Quinzenalmente, uma equipa será objeto de análise, com notas concretas que acrescentam atualidade.

      Voltou o mito físico. As equipas portuguesas não ganham na Europa? Há um problema de intensidade. Os jogadores mais criativos não garantem vitórias em todos os jogos? Troque-se por robustos, para ganhar duelos. E é ver tantos dos narradores televisivos - até dos muito bons que têm surgido – a sublinhar com entusiasmo e a cada transmissão o “andamento” de uma equipa ou a “potência” de um jogador, como se algum dia Matuidi pudesse valer mais que Pjanic. Leio até que é necessária uma “revolução física” em Portugal e espanto-me, tão longe já estamos do tempo em que o futebol se trabalhava por fatias e como se não fosse verdade o que nos ensina Damásio, que “cérebro e corpo são ingredientes da mesma sopa”. Num certo tempo era a estatura, que os futebolistas cá do retângulo olhavam alemães e ingleses como se do Gulliver se tratasse. Já não sucede. Depois era a preparação física, com métodos importados que faziam correr mais. Já não há segredos a esse nível e se há coisa que os portugueses exportam é precisamente o saber do treino. Um dos problemas estará mesmo aí, que os melhores treinadores portugueses trabalham quase todos fora do país e a elite, seja qual for a atividade, não passa de uma primeira camada. E sim, há a questão orçamental, que impede maior equilíbrio na Liga, somada a vícios antigos - algum anti-jogo próprio dos latinos ou os concertos de apito próprios dos nossos árbitros - que levam a um tempo útil de jogo que envergonha. Se o problema fosse só de “andamento”, como poderia o Braga ganhar no campo do Wolverhampton ou o Vitória de Guimarães olhar nos olhos o Arsenal e por duas vezes? A questão é bem mais de qualidade que de intensidade.

      Para começar, nenhum dos chamados grandes tem sido garantia de espectáculos interessantes. O Benfica foi dominador e rigoroso defensivamente nos Açores? Globalmente sim, como tem sido por regra, no tal registo defensivo que é um paradoxo, quase uma charada: tem uma das melhores defesas da Europa porque não sofre golos em Portugal, mesmo se sofre sempre golos quando joga na Europa. Confuso o suficiente, de facto. Falta intensidade, dizem uns quantos. Acontece que a diferença individual do ano passado para o momento atual tem essencialmente três nomes - Félix, Rafa e (ainda um pouco de) Jonas - e nenhum deles é o protótipo do monstro físico. O FC Porto no Bessa foi intenso e combativo? Foi, como é também quase sempre, mas, nesse como noutros jogos, com futebol mais seguro que formoso, mais competente que criativo, mais rigoroso que inspirador. E não é seguramente por falta de jogadores potentes ou rápidos que a qualidade de jogo portista não tem sido melhor. Aliás, é ver como um jogador do perfil de Nakajima, como de Óliver antes, tenta ir ao encontro de uma ideia de jogo que claramente não caminha ao encontro dele. E o pouco que joga o Sporting não pode ser creditado à fragilidade morfológica de Eduardo e Doumbia nem à falta de robustez dos seus centrais e laterais. Pelo contrário, o melhor que apresenta garante-se na leveza com que a bola circula pelos pés de Bruno Fernandes e Vietto, sendo que nenhum chega a 1,80m, nem provocam juntos qualquer sobrecarga num elevador.

      Enquanto isso, talentos óbvios mas sem “arcaboiço” - e esta palavra antiga do futebol ilustra uma certa visão arcaica - como Daniel Bragança, Tiago Dantas ou Fábio Vieira (Vítor Ferreira também serve), esperam que alguém repare definitivamente que lhe sobra em cérebro o que falta no corpo. Outros há que tiveram de esperar menos, em qualquer dos ditos grandes, meteoros que a robustez fez subir depressa mas descer rápido também, pouco depois. O que está a faltar ao campeonato português não se mede em quilos e centímetros. Aliás, simplesmente não se mede, que qualidade será sempre diferente de quantidade.

       

      Nota coletiva: O Liverpool é talvez a melhor equipa de que me recordo em situações de contra-ataque. Na sombra dos fabulosos Salah e Mané e do coriáceo Van Dijk, a tendência é normalizar os demais. Acontece que também entre os “potentes” reinam os “inteligentes”: há dois laterais de qualidade mas Alexander-Arnold é mesmo extraordinário, porventura o melhor do mundo hoje; e num meio campo que parece de cromos repetidos sobressai uma raridade chamada Wijnaldum, à vez médio defensivo ou ofensivo, a jogar por dentro ou por fora, segundo avançado ou falso 9, o melhor ator secundário que existe num relvado.

      Nota individual: Paulo Dybala – independentemente do desagrado de Ronaldo, e da dificuldade em conjugá-los que Sarri honestamente assume, ver de novo o melhor Dybala é uma grande notícia para o futebol. Ele faz num palmo o que a tantos custa fazer em metros. E a facilidade com que passa bolas à baliza define os eleitos. Tem Golo? Não, tem muito mais que isso. Tem um talento incrível, também a finalizar.



      Comentários

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      motivo:
      RI
      . . .
      2019-11-16 20h24m por ricardinhu
      Uma boa análise ao contexto actual.
      Dois belos exemplos de jogadores (Óliver e Nakajima) com enorme capacidade não encaixam nas ideias do treinador.
      Óliver um autêntico construtor de jogo, com uma grande capacidade técnica. Nakajima um puro 10, grande capacidade de transporte de bola e de passe. Num meio campo a 3, Óliver e Nakajima encaixavam como uma luva, neste contexto de jogo nem um nem outro.
      Já em tempos houve quem dispensou muito talento (o Bernardo é um des...ler comentário completo »
      Carlos Daniel
      2019-11-14 17h51m por pedropereira934
      Artigo fantástico, outra coisa não era de esperar. Uma pena que não o possamos ver mais vezes a comentar futebol. Gostaria que um dos seus próximos fosse sobre o Barca atual. A extrema dependência de Messi e a incapacidade de Valverde em tirar rendimento de grandes jogadores creio que seriam excelentes temas para analisar. Parabéns e continuação do excelente trabalho.
      Mitos
      2019-11-14 13h20m por zecic
      Lembro-me de ouvir muita gente dizer: o Bernardo Silva é bom, mas é nos juniores, quando jogar nos séniores se não ganhar corpo nunca vai ser jogador. . . Também me lembro que diziam que o Moutinho fora de Portugal nunca seria jogador. . .
      Hoje, são 2 jogadores que ganham imensos duelos. . . físicos! Em plena Premier League onde se joga com imensa intensidade. . .

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