Alexandria Ocasio-Cortez é a nova coqueluche da política americana do lado democrata e tem sido notícia nos últimos meses por várias razões. Em primeiro lugar, porque rompeu com o establishment do partido democrata, ganhando a nomeação nas primárias sem o apoio dos multimilionários que costumam financiar as campanhas eleitorais. Depois do primeiro choque, a confirmação em Novembro último: Ocasio-Cortez foi eleita congressista, a mais nova de sempre a chegar a Washington, com apenas 29 anos. E o que trouxe ela de diferente à política americana, para além das ideias firmes que defende? Autenticidade. Os jovens americanos, sobretudo os urbanos e os das classes medias/baixas e imigrantes de segunda e terceiras gerações reconhecem-se no percurso de Ocasio-Cortez e na sua forma de estar. Todas as suas palavras, seja através da TV, do Twitter ou do Instagram, captam a atenção de muitos eleitores e a sua presença no congresso tem sido uma lufada de ar fresco, não só num partido envelhecido e sem ideias, preso a certas formalidades do passado, mas também num Congresso mal visto pela sociedade em geral nos Estados Unidos da América – “drain the swamp”, lembram-se? A fórmula Ocasio-Cortez parece neste momento ser o melhor antídoto para derrotar Trump, um personagem que finge ser autêntico, mas que todos sabem, e alguns ignoram propositadamente, que o verdadeiro Trump é aquele da gravação num autocarro em 2005. Claro que ela não deverá ser a rival de Trump em Novembro de 2020, contudo o candidato que sair vencedor das primárias democratas deverá ter em consideração que a mais nova congressista de sempre tem, por estes dias, um capital político impossível de ignorar e ostracizar, assente numa visão mais à esquerda do que o habitual nos Estados Unidos da América – ou terá estado o país do Tea Party, de Dick Cheney, Sarah Palin ou da Fox News demasiado perto da extrema-direita nos últimos 20 anos?
E sim, isto é uma crónica sobre futebol. Espero não vos ter cansado até agora mas nos últimos meses temos assistido a vários exemplos de autenticidade no futebol que nos fazem acreditar que nem tudo está perdido, que o futebol não será estragado na totalidade devido a negociatas, fundos ou personagens obscuras. Que há ideias e valores que continuam a provar que este é o desporto popular por excelência. E não é preciso sermos perigosos radicais, como Ocasio-Cortez não o é.
Vamos a exemplos. Em Portugal, um jogo do último escalão do futebol distrital em Lisboa levou milhares de pessoas a um estádio devoluto, tudo para ver um confronto entre dois históricos do futebol português, Estrela da Amadora e Os Belenenses, num domingo à tarde, um pormenor importante. Em Santo Tirso, quase sempre que o clube local joga no Estádio Abel Alves de Figueiredo temos direito a enchente. Não muito longe dali o Famalicão sonha com um regresso ao principal escalão do futebol português com casas cheias, mesmo que a Liga marque jogos a uma segunda à noite, e o clube da casa ainda presenteia os adeptos adversários com pães com chouriço.
Mas o exemplo mais gritante, e o que me trouxe a esta reflexão, é a dualidade que podemos sentir após visionarmos duas séries documentais muito semelhantes na sua génese. Falamos de All or Nothing (Amazon) e de Sunderland ‘Til I Die (Netflix), sobre as épocas 17/18 City e Sunderland, respectivamente. Na primeira, temos o retrato do sucesso, da opulência, das viagens aos emirados. Na segunda, sentimos que o abismo e a desolação de uma comunidade nos entram casa dentro.
Claro que ver os bastidores de uma equipa de Pep Guardiola é algo precioso, não o negamos. E o produto final é muito bom porque temos direito a entrar na intimidade de uma grande equipa, numa época em que as estrelas estão muito distantes dos adeptos. All or Nothing dá-nos muito material para absorver e somos confrontados com pormenores interessantes na logística de uma equipa de topo do futebol inglês e europeu. A série documental vale, por isso, por pequenos detalhes que normalmente nos escapam.
Só que depois assistimos ao desenrolar de uma época desastrosa do Sunderland e não conseguimos ficar indiferentes à angústia dos funcionários do clube, a começar na chef de cozinha e a acabar em Chris Coleman, por quem se ganha um enorme respeito e carinho. E vemos também uma comunidade umbilicalmente ligada ao clube da terra, que sofre com cada golo do adversário e vibra com cada ponto obtido como se de uma questão de vida ou morte se tratasse. No final da série, raras serão as pessoas que não quererão abraçar Coleman, Jonny Williams ou aqueles adeptos sofredores. Alguém quererá ir para os copos festejar a conquista do título com o dono do Manchester City, um tipo bem vestido, com um discurso fluído e cativante? Ou não preferiremos ir todos para um pub do nordeste inglês consolar os adeptos de um histórico clube inglês, cujo dono está apenas interessado no seu bem-estar, tal como Trump prefere a sua torre homónima em detrimento dos interesses nacionais? Se quiserem mostrar a um amigo que não goste de futebol toda a beleza deste desporto e todo o impacto que ele tem na sociedade, não deixem de aconselhar a série com produção Netflix. Está lá quase tudo, menos os troféus.
O futebol é um negócio, poucos são aqueles que conseguem fugir a esta lógica e ignorar grandes noites europeias, craques como Mbappe a irromper no espaço mediático ou, claro, fingir que a rivalidade Messi/Cristiano não existe - e que sorte a nossa poder desfrutar destes e doutros craques em equipas milionárias. Mas é preciso impedir que o futebol passe de um negócio para uma constante negociata. Nos EUA, o povo cansou-se e votou Trump num misto de frustração, ignorância e vontade de abanar as coisas. Os resultados não são bons e esperemos por mais pessoas como Alexandria Ocasio Cortez – também, e sobretudo, no partido Republicano - para abanarem o sistema como ela está a fazer: com ideias, com discurso positivo e, lá está, com autenticidade. No futebol português estamos, salvo as devidas distâncias, num ponto semelhante. Queremos mais lágrimas de Oliver após um golo, queremos mais treinadores a dizer "gajos" espontaneamente do que outros com discursos formatados e aborrecidos. E queremos menos selfies ou fotos tiradas por mulheres seminuas antes de cada apito inicial. Se a Liga se preocupasse mais com os adeptos, estes nunca ficariam em filas de meia hora à porta dos estádios, perdendo invariavelmente os inícios dos jogos, ou jamais comprariam bilhetes para um jogo com quinze dias de antecedência sem saberem em que data e hora o espectáculo iria decorrer.
É com ideias que se combate este caminho. Não me interpretem mal, não sou catastrofista. Mas gostaria que as boas ideias e aquelas que nos fazem sentir paixão pelo jogo vingassem mais, principalmente em Portugal. E poderão ser ideias de jogo, como as que Ivo Vieira trouxe este ano para Moreira de Cónegos, ou as de Luís Castro nos últimos anos na Primeira Liga. Não é mais bonito falar da bela equipa do Moreirense do que escutar pessoas a olhar para diferenças milimétricas num fora de jogo assinalado? Sim, o espaço mediático do futebol está, em Portugal, contaminado por discursos ignorantes e de ódio. Se nos Estados Unidos da América temos a Fox News e pessoas como Sean Hannity a intoxicar a discussão política, em Portugal basta olhar para a quase totalidade dos programas de futebol nas televisões para percebermos o estado futebol português. É verdade que uma boa parte das novas gerações felizmente não sabe quem são aqueles que semanalmente gritam na televisão, jurando defender o clube do coração mas que pouco percebem de futebol. Só que eles lá vão fazendo escola e espalhando verborreia conforme lhes dá jeito, tal como os profissionais da Fox News.
Mirem-se nos exemplos do Betis e, porque não, do Sunderland, mirem-se nos exemplos de Quique Setién e Sebastián Beccacece, treinador do Defensa y Justicia. São também ideias de jogo como estas que nos ajudam a reconciliar com o futebol semanalmente. E nem é preciso entrar em campo – há coisas tão simples como bons horários para ir aos estádios ou uma planificação atempada dos calendários, preços baixos dos bilhetes, ou até protecção dos clubes contra a entrada selvagem nas SADs de investidores com nomes de código. Enfim, eu sei que estou a lengalengar, mas a falta de respeito pelos adeptos de estádio causa-me uma certa urticária. Como uma vez vi escrito numa tarja de adeptos do Bayern Munique, o futebol sem adeptos não vale um cêntimo. Basta olhar para o Jamor.